texto de Filipe Soares
Todo ano, grandes álbuns completam 50 anos de existência, e com a data vêm textos, vídeos, programas, podcasts, relançamentos, edições especiais e mais uma imensidão de coisas para te provar o quão grandioso ele é. Em 2023, por exemplo, “Goodbye Yellow Brick Road”, de Elton John, “Raw Power”, de Iggy and The Stooges, “Aladdin Sane”, de David Bowie, “Let’s Get It On”, de Marvin Gaye, “Band on the Run”, de Paul McCartney and Wing, “Catch A Fire”, de Bob Marley & The Wailers e (para ficar apenas em sete) “Dark Side of The Moon “, do Pink Floyd, festejaram cinco décadas de lançamento.
Você deve ter se deparado com especiais sobre alguns desses discos, mas existem obras que são esquecidas ou até mesmo ignoradas. Esse é o caso de importantes produções da América Latina que são exaltadas por uma bolha, mas permanecem invisíveis para a massa. “Pequeñas Anécdotas sobre las Instituciones”, lançado em 1974 pelo grupo Sui Generis, é um exemplo disso. Essa joia argentina se trata do trabalho mais interessante da dupla formada por duas das personalidades mais influentes da música argêntea: Charly García e Nito Mestre.
Escutar “Instituciones” hoje é perceber que as letras ácidas sobre as instituições que cercavam a sociedade civil argentina da época, de certa forma, continuam atuais – não só na Argentina, mas em boa parte da América do Sul, Brasil incluso. As músicas da dupla correspondem a um sentimento melancólico de que mesmo após 50 anos, continuamos numa estável instabilidade.
O terceiro álbum da dupla Charly García e Nito Mestre trouxe mudanças na sonoridade e na formação da banda. Ao contrário do disco de estreia, “Vida” (1972), com uma pegada voltada ao folk norte americano e influências de Elton John e Bob Dylan, “Pequeñas Anécdotas sobre las Instituciones” bebeu da fonte do rock progressivo de bandas como Pink Floyd, King Crimson, Genesis e Yes, que estavam em voga na época.
Inspirado por essas referências, Charly adotou o uso de sintetizadores, dando uma nova roupagem ao instrumental do grupo que, sendo um pouco grosseiro, se resumia a guitarra, teclado e flauta. Para acompanhar a evolução técnica e sonora que almejavam, Rinaldo Rafanelli (baixo) e Juan Rodríguez (bateria), que participaram do primeiro álbum, se juntaram definitivamente à dupla, ao lado de diversos convidados (León Gieco, Carlos Cutaia, María Rosa Yorio, David Lebón, Oscar Moro, Jorge Pinchevsky e Billy Bond).
A identidade intimista que Sui Generis sustentou nos primeiros trabalhos, apesar de ainda estar presente, não teve tanto espaço em meio aos arranjos elaborados das crônicas musicais de Charly, que assina todas as canções do disco – exceto “Tema de Natalio”, que ele divide com Rinaldo Raffanelli. Nas letras, o moralismo religioso, a corrupção cotidiana, a repressão e a morte viraram objetos de estudo, captados pela perspicácia crítica e um tanto existencialista da dupla.
A sensibilidade poética e melódica de Sui Generis faz jus a um trecho de uma resenha publicada em uma revista argentina à época, que diz: “uma dupla que está conseguindo algo que não é comum: o equilíbrio perfeito, o mesmo alto valor da música e da letra”.
A arte de capa, assinada pelo multiartista Juan Gatti, antigo parceiro de trabalho do cineasta Pedro Almodóvar, ajuda a engrandecer ainda mais “Pequeñas Anécdotas sobre las Instituciones”. A divisão da ilustração em pequenos quadros, como se fossem capas de contos, consegue expressar muito bem a proposta das músicas, ainda que não sejam representações óbvias e diretas. Os temas abordados no disco são transformados em um desenho que gera uma estranheza encantadora, uma arte psicodélica e hipnotizante, como o álbum em si.
Gatti já era um artista experiente em 1974 tendo trabalhado para diversos grupos contemporâneos do Sui Generis, sendo responsável por encartes famosos — como por exemplo, o de Artaud (1973), do grupo Pescado Rabioso, considerado um clássico absoluto do rock latino-americano. Sua influência estética no rock argentino da década de 1970 é tão característica que não é exagero dizer que Gatti foi para o rock argentino o que a Hipgnosis foi para o rock britânico da mesma época.
Assim como qualquer obra de arte, o álbum engrandece quando se entende o contexto em que foi produzido e a segunda metade do século XX não foi nada fácil para os países sul-americanos vítimas do Plano Condor — acordo realizado em 1975 entre as ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai para combater opositores dos regimes militares. Apesar da perversidade das ditaduras ser um sintoma geral, assim como os outros países, a Argentina passou por situações particulares.
No ano de 1966, seguindo o exemplo dos vizinhos brasileiros, o general Juan Carlos Onganía liderou um golpe contra a democracia Argentina e instalou uma ditadura cívico-militar, autodenominada “Revolução Argentina”. O regime perdurou até 1973, quando Juan Domingo Perón retornou ao poder argentino para seu terceiro mandato (1946-1952, 1952-1955, 1973-1974). Perón, no entanto, morreu em julho do ano seguinte, dando início a uma infeliz bola de neve para o cenário argentino. Isabel Martinez Perón, então esposa do falecido presidente, assumiu o cargo, mas não conseguiu conter a instabilidade política, econômica e social que o país enfrentava.
Em 1976, aproveitando-se do contexto caótico, Isabelita Perón foi destituída da presidência e o tenente general Jorge Rafael Videla assumiu o cargo, iniciando um novo regime militar na Argentina. Em contraponto ao que a “Revolução Argentina” havia feito, o novo regime pregava o discurso de aplicação da ordem a partir de mudanças drásticas no país. A longo prazo, as decisões trouxeram ainda mais instabilidade política-econômica, além de serem responsáveis por instalar medidas de controle social por meio do combate à “subversão”, que incluía sequestro, tortura, assassinato e extradição de intelectuais, sindicalistas, estudantes, artistas ou qualquer indivíduo que representasse uma ameaça à ordem, segundo os critérios do regime.
Ainda que tenha saído quatro meses antes da Ditadura Militar retomar o poder na Argentina através de um golpe, Charly Garcia precisou mudar diversas letras do disco devido a escalada de violência que tomava as ruas do país na época. Não apenas quatro letras tiveram trechos modificados (“Instituciones”, “Las increíbles aventuras del Señor Tijeras”, “Música de fondo para cualquier fiesta animada” e “Para quien canto yo entonces”) com duas músicas (“Juan Represión” e “Botas locas”) foram censuradas, tendo sido liberadas para lançamento (como faixas extras) apenas na reedição do álbum em 1995.
“Pequeñas Anécdotas sobre las Instituciones” pincela tudo isso. É um manifesto sobre o declínio político-social do nosso continente. Charly e Nito conviveram, e ainda convivem, com esse drama sulamericano e, como bons artistas que são, transformaram em música suas frustrações, medos, revoltas e paixões com sua realidade. Em “Para Quien Canto Yo Entonces”, faixa de encerramento do disco que completa 50 anos em 2024 e que, na versão original, conta com León Gieco, na harmônica, a letra revela: “Yo canto para la gente porque también soy uno de ellos”
Em 1975, antes mesmo de produzirem o quarto álbum, a banda encerrou suas atividades. A repressão do regime militar, o desgaste (“Pequeñas Anécdotas sobre las Instituciones” foi muito bem recebido pela crítica, mas não repetiu o êxito de vendas dos dois discos anteriores da banda) e as diferenças criativas entre Charly e Nito fizeram com que a dupla só fosse vista novamente alguns anos depois. Ainda que tenham lançados mais trabalhos em conjunto, “Instituciones” encerra uma tríade de álbuns mágicos e é, hoje, um importante retrato de um momento ímpar da história do rock argentino. Um clássico que completa 50 anos!
– Filipe Soares é estudante de jornalismo, fã de cultura pop, churrasco com moda sertaneja e mosh com rock paulera