texto de Bruno Moraes
fotos de Ivana Cassuli
vídeos: Marcelo Borges (shows) e Rodinei Silveira (depoimentos)
DIA 3 – 11 de fevereiro de 2024 – Domingo
Saiba como foi o Dia 1 / Dia 2 / Dia 4 / Dia 5
O terceiro dia do Psicodália novamente raiou cedo para quem não conseguiu proteger a barraca sob a sombra. A esta altura, os banhos gelados eram animadores, pois o calor estava alto. No domingo, porém, uma falta d’água na zona dos campings acometeu a parte da manhã e o início da tarde. Com apenas os banheiros da porção inferior da fazenda funcionando para tomar banho, tive de andar um bocado. Foi tempo para encontrar e conversar com algumas pessoas do público sobre o festival, e passar por mais uma viatura da PMSC.
A tenda da imprensa, que havia se tornado um ponto de encontros generalizado por ser o ponto com o maior número de tomadas, trouxe a possibilidade de conversar com Denise, uma mulher de 68 anos que estava fazendo dobraduras enquanto contava histórias. Cada parte da historieta levava a uma nova dobra no papel. Denise contou que, a princípio, esta era uma das atividades que faria como parte da Recreação Infantil, antes de tudo ser cancelado. Ela, que já foi membra do Conselho Tutelar, tem uma larga história como recreadora no Psicodália, e acha um absurdo que o poder público estadual tenha considerado o festival um ambiente impróprio para crianças.
Após tomar banho, no qual salvei um inseto da ordem Megaloptera de ser pisoteado no box, foi hora de preparar as pautas para as entrevistas do dia. Enquanto pesquisava sobre artistas que escolhemos para cada dia usando passes diários de internet que duravam uma hora, eu registrava as informações e perguntas em um caderno, para deixar meu celular lento e rebelde dedicado apenas a gravar o áudio das conversas, e poupar bateria, uma vez que o único ponto de recarga ficava na agitada tenda da imprensa.
Antes da rotina de shows no Palco Lunar, fomos prestigiar a apresentação da dupla de stoner, punk e grunge Dirty Grills no Palco da Rádio. A Rádio do Psicodália, além de tocar uma programação constante de música e avisos, é responsável por outras duas marcas do festival. A primeira são as famigeradas “Festas da Rádio” que começam às 2 da manhã — e eu não tenho energia para saber quando terminam. A segunda é a curadoria do Palco da Rádio, que promove shows de artistas locais, em maioria bandas ainda em começo de carreira. Formada em Florianópolis em 2021, Dirty Grills tocou um set de muito peso com títulos irreverentes como “Ao menor sinal de autodepreciação, aperte o botão do pânico”. A dupla está prestes a lançar seu segundo álbum, razoavelmente pouco tempo depois do EP de estreia “Faz Teus Corre, Irmão” de 2022.
Pouco tempo depois, começavam as primeiras notas do show de Jesus Lumma. A artista maranhense atualmente sediada em Joinville fez uma apresentação que era igualmente forte em ideias e energia. Explorando sonoridades que misturam MPB, pop, rock, brega e batidas de funk brasileiro, Jesus traz provocações políticas em letras criativas que grudam fácil na cabeça. Nunca antes um show me lembrou tanto a famosa frase da ativista política Emma Goldman: “Não é minha revolução se eu não puder dançar!”
A vibe irreverente e “cyber afetiva” de Jesus Lumma deu lugar à atmosfera caótica e abstrata da banda argentina Sur Oculto. O power trio executou uma hora de muito virtuosismo musical, utilizado em prol de uma estética carregada, onde jazz e prog-rock colidem com algumas pitadas do Nuevo Tango de Astor Piazzolla — mas uma versão muito, muito pesada e cheia de distorção. Timbres de sintetizador que criam atmosferas eletrônicas carregadas se alternavam com sons de piano e órgão, enquanto uma bateria marcando grooves funkeados conversava com o contrabaixo de Sebastian Tevez, único membro-fundador, que veio pela segunda vez ao Brasil com a nova formação: Maximiliano Mansur na bateria e Julián Rey no teclado.
Continuando este que foi um dos dias mais sonoramente diversos do Palco Lunar, foi a vez de Filipe Catto prestar sua homenagem à memória e ao repertório de Gal Costa. A artista, natural de Lajeado (RS), teve na figura de Gal uma de suas muitas inspirações femininas (junto a figuras como PJ Harvey, Alanis e Maria Bethânia) que deram força para se apresentar hoje como uma artista trans não-binária. Em um show que descende de seu álbum de homenagem a Gal “Belezas são Coisas Acesas por Dentro” (presente na lista de discos do ano do Scream & Yell), Filipe fez um show de força impressionante, seja pela potência de sua voz contralto, pelos arranjos e banda que prestaram uma homenagem com muita personalidade ao ícone da música brasileira que nos deixou em 2022.
Entre Filipe Catto e Manu Chao, consegui descer para a área de refeitório e comer uma das incríveis “Pizzadália”, um dos cinco sabores de pizza disponíveis na pizzaria do festival. Para além das pizzas, o Psicodália oferece como opções de refeição fresca os itens da Pládaria (bolos, tortas salgadas, sanduíches como hambúrgueres — incluindo opção vegetariana e vegana — além de opções de café) e um restaurante com opções de prato feito que contemplam diversos cardápios e restrições alimentares. Ao contrário dos preços exorbitantes praticados pela maioria dos festivais, as opções de alimentação no Psicodália variam em torno de R$ 8 a 30, de acordo com o tipo de prato, sua complexidade e quantidade.
Além disso, o festival tem a importante escolha de não restringir a entrada de alimentos e bebidas por parte dos participantes, apenas vetando o uso de copos descartáveis e embalagens recicláveis de baixo retorno para as cooperativas que trabalham com a coleta e destinação deste tipo de lixo, como garrafas do tipo long-neck. Djan Di Luiz, irmão de Klauss e também organizador do Psicodália, defende que esta é uma forma de tornar o festival um pouco mais acessível financeiramente para o público. “É impossível negar que isso impacta a arrecadação do Festival. Principalmente por ser um festival 100% independente. Mas a gente sempre tenta olhar primeiro para o lado humano. A gente também vai a festivais, e sabe o quanto pesa você ter de consumir tudo dentro de um festival durante cinco dias. Então a gente prefere que as pessoas estejam aqui do que deixarem de vir por conta deste gasto”, contou Djan ao Scream & Yell.
Também como parte do esforço para que as pessoas estivessem ali, o Psicodália criou pela primeira vez um programa de ações afirmativas, com ingressos a valor reduzido e um percentual de gratuidades, voltados a populações marginalizadas por questões de raça, gênero e vulnerabilidade socioeconômica.
Foi bom que eu tenha conseguido comer antes de Manu Chao se apresentar. Isto porque o show do ícone francês durou mais de duas horas de muita agitação. Assim como os icônicos álbuns “Clandestino” e “Próxima Estación: Esperanza”, Manu Chao também costura no palco suas músicas em um imenso pot-pourri, onde canções se emendam, citam umas às outras, vão e voltam. Uma verdadeira celebração da latinidade, do sonho de um mundo livre e sem barreiras e no qual, como afirmou de maneira emocionante algumas vezes no palco “Ninguém é ilegal!”, Manu combinou — como de costume — alegria e “infinita tristeza”. Em alguns pontos do show, lembrou da violência sistêmica contra o povo palestino que ocorria enquanto festejávamos, e segue ocorrendo.
Além das duas horas de show — que testaram mais a energia da plateia do que do trio de músicos que simplesmente não parava de cantar, tocar, pular, gritar “Obrigado, Psicodália!” e puxar cânticos da plateia — Manu Chao continuou a ecoar pelo resto dos dias do Psicodália no que acabou por virar um meme offline: o uso constante dos mesmos quatro samples ao longo do show, em especial a sirene ouvida na versão de estúdio de “El Hoyo” e o grito celebratório de um grupo de crianças que toca em “Merry Blues” fizeram com que grupos de pessoas aleatoriamente gritassem “Ê!!!” e imitassem as sirenes durante dias, além de cantar uma mesma marchinha puxada pelo menos quatro vezes pelo percussionista quando o show parecia que ia se encerrar.
Era uma vez o domingo, mas a segunda-feira não vai demorar a chegar…
Saiba como foi o Dia 1 / Dia 2 / Dia 4 / Dia 5
– Bruno de Sousa Moraes migrou das ciências biológicas para a comunicação depois de um curso de jornalismo científico. Desde então, publica matérias sobre ecologia e conservação da biodiversidade, e está se arriscando pelo jornalismo musical.