texto de Luciano Ferreira
A parceria entre Toni Halliday (voz) e Dean Garcia (baixo, guitarra e outros instrumentos), o núcleo responsável pelo Curve, já era de longa data quando resolveram iniciar um projeto de noise-eletrônico no início dos anos 1990. A conexão havia acontecido na década anterior através de Dave Stewart, do Eurythmics: Dean tocou baixo com o grupo e Toni havia sido contratada pela Anxious Records, de propriedade de Stewart.
A primeira experiência conjunta aconteceria no State of Play, banda pop funk forjada em estudio que ainda contava com Olle Romo e Julie Fletcher (esposa de Dean). “Balancing The Scales” (1986) foi o primeiro e único álbum do quarteto, que terminaria com brigas, ressentimentos e processo movido por Toni contra os outros membros, incluindo Dean.
Em 1989, Toni lançou o álbum solo “Hearts And Handshakes”, um trabalho pop a la Madonna com batidas eletrônicas e algumas guitarras. Esses elementos seriam levados para o Curve em um outro nível (e resultados). Esse disco contou também com a participação da dupla de estúdio Alan Moulder (namorado de Toni nessa época) e Flood na mixagem e engenharia, dois nomes que viriam a se tornar requisitadíssimos nos anos 1990.
Quando o Curve foi formado em 1990, a dupla, além de uma ligação – e desavenças deixadas de lado -, tinha uma trajetória no meio musical, embora nenhum dos seus projetos tenham ido muito longe. Com o Curve, porém, eles deram um direcionamento musical diferente do que já haviam experimentado até então. “Blindfold”, “Frozen” e “Cherry”, os três EP’s lançados em 1991, apresentam a sonoridade que seria a tônica da carreira da banda: batidas eletrônicas, torrentes de guitarras encharcadas de modulações e distorções, e a voz envolvente de Toni, que parecia finalmente encontrar o seu “ponto certo”.
Dentro de um cenário musical multifacetado – onde raves eram abastecidas por ecstasy e batidas eletrônicas, e conviviam gêneros como noise-rock, shoegaze, dreampop, neo-psicodelia, madchester e britpop em momentos diversos de suas existências -, o Curve usou como alicerce uma construção que flertava tanto com a cena eletrônica quanto com a cena shoegaze e até com o gothic-rock – várias das bandas dessas diversas cenas colocaram um ou os dois pés nas batidas sacolejantes, enquanto outras surgiriam no embalo. Os irlandeses do My Blody Valentine deram uma guinada radical nesse sentido, com o lançamento, ainda em 1990, do single “Glider”, que trazia a hipnótica “Soon”, repleta de noise e batidas eletrônicas.
Dezoito meses após o lançamento do bem recebido disco de estreia, “Doppelganger” (1992) – que trazia os singles “Faith Accompli” e “Horror Head” -, e uma série de shows e turnês cansativas, o Curve deu início ao processo de gravação sw seu segundo álbum de inéditas, “Cuckoo”, lançado em setembro de 1993. A banda entraria em hiato poucos meses depois, desgastados pela turnê que sucedeu ao lançamento do disco.
Para as gravações de “Cuckoo”, o Curve seguiu trabalhando com Flood e reforçou o “time” técnico com a adição de Steve Osborne. Por outro lado, o rompimento do relacionamento entre Toni e Alan Moulder teve reflexos no processo de gravação, com a vocalista evitando contato com o ex, responsável pela mixagem do disco. Ao mesmo tempo, Toni se viu às voltas com traumas relacionados a sua infância – o pai abandonou a família quando ela ainda era criança e a mãe era pouco afetuosa, conforme declarou em entrevistas -, e as letras do álbum trazem em seu cerne essa carga emocional genuína e com que ela teve que lidar ao longo do processo de gravação.
O título do álbum veio do livro “One Flew Over The Cuckoo’s Nest?” (1962), do escritor Ken Kesey, adaptado para o cinema – com o título nacional de “Estranho no Ninho” e vencedor de cinco Oscars – em 1975 por Miloš Forman com Jack Nicholson como protagonista. O impacto da obra de Kesey foi tanto que eles pretendiam colocar entre as faixas trechos de divagações do escritor – o que não foi aceito pela gravadora, inclusive por não haver uma autorização formal de Kesey, um cara avesso a formalidades.
“Cuckoo” abre com o single “Missing Link”, uma faixa pesada, distorcida e cheia de feedbacks, como poucas faixas lançadas pela banda até então, que exibia influências de Ministry e direcionava para exercícios imaginativos de um disco nessa vibração mais intensa. Na letra, Toni tenta definir a sensação da dupla após a turnê americana, totalmente estressados: “Eu tinha um coração, mas o enterrei em algum lugar / Eu tinha um cérebro, mas meu corpo, ele venceu a corrida”.
“Crystal”, a segunda faixa e segundo single do álbum, segue pelo caminho oposto: as batidas são opacas, permitindo a ênfase no baixo (cheio de groove) e nas guitarras, que agora surgem envoltas em efeitos e soam quase etéreas, assim como os vocais de Toni (cheio de camadas), trazendo de volta o Curve de outrora em conexão com o shoegaze e elementos um tanto sombrios de darkwave. Parte disso é possível encontrar em “Men Are From Mars, Women Are From Venus”, canção de veia totalmente eletrônica e bateria bate-estaca, cheia de efeitos atordoantes e riffs de guitarra que se chocam ao longo de todo o arranjo.
Muito dessa mistura do eletrônico com guitarras criando uma música densa, soturna e enigmática têm conexão com um outro trabalho lançado naquele mesmo 1993, “Songs of Faith and Devotion”, do Depeche Mode, álbum também produzido por Flood. O ano de 1993 ainda foi marcado pelo lançamento de “Zooropa”, em que o U2 adentrou de forma massiva nessa seara eletrônica e (também) foi produzido por Flood, responsável poucos meses antes por “Broken”, do Nine Inch Nails e “Automatic”, do The Jesus and Mary Chain.
Voltando a “Cuckoo”, a banda se permite um uso mais efetivo de elementos de música industrial. Ao mesmo tempo é perceptível a influência que o grupo exerceu na sonoridade do Garbage (formado naquele mesmo “ano eletrônico” de 1993), que pode ser considerada uma coirmã, aplicando em suas canções os mesmos elementos musicais dos ingleses, mas com uma veia mais acessível e pop. Na dúvida, basta ir direto para a ótima “Unreadable Communication” – espécie de paradigmas para bandas que seriam influenciadas pelo Curve. A faixa precede “All of One”, dos momentos mais etéreos do álbum, quando a sonoridade se conecta ao de bandas como Lush, mantendo suas doses de eletrônicas e elementos de industrial.
Usando as letras como forma de “exorcizar seus demônios”, em “Turkey Crossing” Toni parece mandar um recado direto para seu parceiro: “Eu terminei com você / Por favor termine comigo / Eu estou farta de você / Você está farto de mim / Isso só pode significar algo”. A canção tem guitarras ásperas e cortantes, baixo denso e batidas repetitivas, assim como em várias outras do álbum. Enquanto isso, “Superblaster” tem os mesmos elementos e até os BPM’s de “Faith Accompli”, em conexão direta com o hit do disco de 1992.
Em “Left of Mother”, a banda mostra uma outra faceta: a canção tem ambientação mais etérea e mostra um lado acústico e também orquestrado, com o uso de violino. É a faixa mais diferente do disco, onde a aspereza das guitarras dão espaço para um arranjo mais climático, ainda que denso. É mais uma das músicas em que Toni escreve versos que oscilam entre o subjetivo e a mensagem direta: “Eu nunca serei sua / Não, eu nunca serei sua / Você só me escolheu porque sou o mais próximo e você é preguiçoso / Você só me escolheu porque não consegue ver claramente / que sou tudo menos do seu tipo”.
O disco reduz a velocidade em seus momentos finais. “Sweetest Pie” e “Cuckoo” são canções de humor mais para o climático – a primeira com riffs de guitarra que parecem como uma motosserra rasgando o véu de placidez construído pelo vocal diáfano de Halliday. Fechando o álbum, a faixa título é totalmente soturna e, ao mesmo tempo, onírica e repleta de fragilidade na forma delicada como é cantada, quase como um sussurro. Halliday faz sua terapia em forma de versos, cantando sobre indiferença, sonhos desfeitos, encarar a dura realidade da vida e as dificuldades de ser uma garota: “Eu nunca fui apenas uma garota comum / Que passou por uma transformação / Porque minha mente era maior que o mundo / Minha escolha foi nascer menina, oh / Você me abandonou / Me deixou na rua para ser o que fosse / Você nunca me deu seu tempo / Me fez sentir suja e cruel”.
Ápice de um período em que o Curve experimentou um crescendo em sua carreira e nas composições, “Cuckoo” é o fechamento perfeito do primeiro ciclo da banda. Não foi tão bem sucedido quanto “Doppelganger”, mas depois dele a música do grupo não seria mais a mesma. Parte de sua mistura única daria espaço para uma sonoridade mais direta, influenciada por quem um dia a banda influenciou. Na edição de agosto de 1996 da revista Select , Toni diria: “Ainda acho que nosso segundo álbum foi o nosso melhor”. Em 2017, “Cuckoo” ganhou uma versão estendida, contendo o álbum original e um segundo disco com versões remix e lados B de singles, num total de 21 faixas.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.