entrevista de Leonardo Tissot
A ideia de abandonar tudo que se tem — dos livros e discos até a namorada e o gato de estimação — e recomeçar a vida do zero tem seus atrativos. Mas será que funcionaria na prática? É possível continuar sendo quem se é sem todas essas coisas? E é possível deixar de ser quem se é apenas por ter jogado tudo pelos ares?
Lançamento da Brasa Editora, a HQ “Damasco”, da dupla Lielson Zeni (autor do Mojo Book “Lado B (ou uma história de amor para walkman)”) e Alexandre Lourenço (criador de “Robô Esmaga”), é um dos mais surpreendentes quadrinhos do ano. Inspirado em uma notícia real de um homem que colocou sua vida à venda no eBay, o livro é repleto de intervenções que entrecortam a história e dão um ritmo estranho, mas ao mesmo tempo fluido à leitura.
Na história, Saulo demonstra insatisfação com o dia a dia no escritório, a relação fria com a namorada Raquel, a tentativa frustrada de ter uma banda e a mediocridade da vida de forma geral.
Tanto o roteiro de Zeni quanto a arte de Lourenço apresentam uma complexidade que pode assustar numa primeira folheada em “Damasco”. Ao começar a leitura, porém, tudo se encaixa em harmonia, embora a HQ exija atenção plena para ser apreciada como se deve. A solidez narrativa é fruto de um trabalho de nada menos que uma década para encaixar todos os detalhes no lugar.
Conversamos com Zeni e Lourenço sobre o processo de criação de “Damasco”, o importante papel da música na narrativa, e por que os autores não acreditam numa adaptação da HQ para o cinema ou TV.
“Damasco” tem uma história relativamente simples, mas é vestida com um roteiro intrincado e uma arte que busca ir além das convenções dos quadrinhos. Tanto que vocês levaram 10 anos para concluir o projeto. Podem contar como surgiu a ideia do quadrinho e um pouco do processo de criação de vocês durante a produção da HQ?
Lielson: O roteiro foi pensado para valorizar a narrativa gráfica. Com “gráfica”, me refiro ao que pode ser expresso por imagem estática em uma superfície plana em relação a outras imagens da mesma categoria. Nesse sentido, eu acho que o que procuramos é justamente explorar as convenções e modelos narrativos dos quadrinhos. Os 10 anos foram entre a decisão “tá, bora fazer um gibi com essa ideia” e a execução mesmo. Meu roteiro levou muito tempo. Fiquei empilhando referências e conceitos, e então me livrando de referências e conceitos, o que tomou muito tempo. Tudo começa com a notícia que eu li de um cara que queria vender a vida dele. Isso me deixou muito intrigado, porque era ficção demais acontecendo no mundo. Também acho que reativou umas ideias antigas que eu havia trabalhado em um curso de roteiro. Mas lá a abordagem era outra, bem mais ingênua. Era uma coisa de alguém se desapegar de tudo que o cerca e que é confundido com sua personalidade. Tipo, os discos que você tem vão acabar, de alguma forma, ajudando a explicar quem você é. “Damasco” começou ingênua também nesse sentido, e acho que começou a dar certo quando eu entendi que era preciso dar um passo atrás e apresentar isso de outra perspectiva — que esse desapego era uma ideia meio atravessada do desapego budista. Eu tinha esse conceito e algumas referências, tipo o jogo “Shadow of the Colossus” e uns filmes e livros esquisitos. Aí decidi a estrutura do livro: ele começaria preto e iria ficando cada vez mais claro, até acabar com várias páginas em branco. Mas essa e mais um monte de ideias acabaram caindo. O processo envolveu muita conversa com o Alexandre, muita mesmo.
Alexandre: Com o roteiro do Lielson pronto, começou uma conversa sobre como transpor esses eventos em forma de narrativa gráfica. Foi um processo de muitas idas e vindas. Ele escrevia alguma coisa, mandava pra mim, eu desenhava alguma coisa e mandava de volta. Acho que a gente acabou interferindo no processo criativo do outro. E isso, acredito, deixou o resultado mais alinhado. Lembro que tivemos a ideia de tentar, de alguma forma, representar de forma gráfica o objeto que o protagonista estava se desfazendo. Tentar se aproximar disso no papel, tentar converter isso em narrativa, sempre foi interessante pra gente. Essa ideia sempre acompanhou: fazer um quadrinho que seja e saiba que é um quadrinho, que sinta como quadrinho e que não possa ser nada além disso.
E como o conceito bíblico de “Damasco” entrou na jogada?
Lielson: Em algum momento da pesquisa, encontrei essa iconografia da estrada para Damasco, em que Saulo se converte em Paulo, de perseguidor de cristãos ele passa a pregador — e não um pregador, mas o cara que deu boa parte da cara que as religiões cristãs têm hoje. Pra mim, isso da estrada, do raio divino e da mudança radical de vida me pareceu uma boa metáfora pra história que eu estava tentando contar.
Alexandre: Lembro de estar em casa um dia e receber uma mensagem do Lielson, puto, porque o Estado Islâmico tinha destruído uma série de monumentos e locais históricos e obras de arte na Síria. Lembro de ir entendendo toda essa parte “religiosa” de Damasco. De fazer o caminho atual da cidade até o caminho que Saulo/Paulo fez. Acho que a metáfora da cidade destruída hoje também fala um pouco do personagem. Sobre o que acontece depois da revelação.
A arte de “Damasco” propõe grandes intervenções na narrativa, sejam páginas em branco, alterações no andamento, na diagramação… O quanto disso foi roteirizado pelo Lielson e o quanto veio do próprio Alexandre durante a criação?
Lielson: Eu sugeri algumas coisas, o Alexandre outras, mas tudo teve a mão do Alexandre para dar um grau. Por exemplo, o capítulo do videogame e o da TV, eu propus bastante da forma. O capítulo que chamamos de “Paralelas”, em que os quadros se afastam, foi ideia do Alexandre. O dos talheres, eu propus ter uma receita no meio, mas o Alexandre mexeu bastante na proposta inicial. Importante falar que tudo que eu escrevi, eu imaginei que seria desenhado pelo Alexandre. Eu escrevi o roteiro falando com ele. “Damasco” não funcionaria na mão de nenhum outro artista. Muita coisa foi escrita pensando que eu tinha o Alexandre ao lado resolvendo os problemas. Acho que, no capítulo do escritório, eu só determinei ações, que ia ter um fluxograma e alguns diálogos, e deixei na mão dele.
Alexandre: O roteiro que o Lielson escreveu é muito fluido. Ele roteirizou o que acontecia na cena, no capítulo. Descrevia a ação e me indicava a sensação. Mas, mesmo assim, deixava tudo muito aberto para que essas ações tomassem caminhos variados. Fico satisfeito por ele ter escrito desse jeito. Não gosto muito da ideia de estruturas tão pré-definidas. Gosto do texto solto, da sugestão e do trabalho que acaba se complementando, justamente por não estar ou se comportar como fechado. Não sei dizer ao certo quem fez qual parte, quem teve qual ideia. Gosto de pensar em “Damasco” como um quadrinho feito por duas pessoas, e não roteiro de um, arte de outro. “Damasco”, acho, foi produzida em parceria. Claro, tem momentos em que alguém tem que sentar na cadeira e tomar a direção. Mas, pra mim, “Damasco” foi sendo construída durante a conversa enquanto se caminha.
Como tem sido a recepção do público em relação à HQ? Tiveram alguma reação surpreendente? Receberam algum comentário curioso ou inesperado?
Lielson: Até aqui tenho achado o retorno bastante surpreendente. Muita gente aceitando o jogo do livro, que indica a releitura, muita gente topando ler com mais calma. E o que acho mais interessante: pessoas que saem do livro com leituras bastante divergentes. Gente que se identificou demais com o Saulo, gente que repudiou o Saulo. Nós propusemos um livro que exige do leitor e, acreditamos, entrega uma satisfação proporcional ao seu esforço. E as pessoas têm aceitado essa proposta.
Alexandre: Sempre achei “Damasco” um livro esquisito. Não é muito linear. Construído em pedaços. Com essas leituras que vão se amontoando. Que fazem sentido, mas que podem ser entendidas como alguma coisa sem muitas pretensões. Por tudo isso, tive muita dúvida como o livro seria recebido. Achei que muita gente não ia gostar, que não ia dar o tempo do livro. Me surpreendi bastante. A gente teve um monte de resposta positiva. Um monte de leituras que nem passaram pela nossa cabeça (pela minha pelo menos) e que fazem muito sentido.
A música tem um papel coadjuvante, mas essencial em “Damasco”. Além de Saulo ter tido uma banda e conhecido Raquel em um de seus shows, menções a bandas como ruído/mm e canções de Radiohead, entre outras, ajudam a temperar a narrativa. Falem um pouquinho a respeito de como a música inspirou a HQ e como ela ajuda a contar a história.
Lielson: A música é estruturante em “Damasco”. Temos um capítulo todo sobre a venda do violão, em que Saulo toca várias músicas, montamos uma listinha. Ele saiu na Café Espacial #14, mas acabou fora do livro final porque trazia pouca informação nova e dava uma travada no ritmo. Ficamos inseguros de citar tantas músicas e acordar com os advogados do ECAD na nossa porta exigindo uma fortuna e apreensão do livro (risos). Mas acho que Saulo e Raquel são o tipo de pessoa que vivem nesse universo musical, dos pequenos shows, de se empolgar com lançamentos das bandas que amam, de ouvir música na rua, no metrô, enquanto trabalham. Acho que a música é um fator de constituição da identidade desses personagens e diz muito sobre eles.
Alexandre: Acho que a música que eles escutam e vivem faz parte desse recorte em que os dois existem. Saulo e Raquel têm essa vida que muita gente compartilha. Esse gosto por essas bandas que muita gente compartilha. A música parece se esgueirar e entrar em todos os nossos afetos. Ir com a gente em todos os lugares. É um jeito de construir personagem e retratar como as coisas são.
Em uma entrevista para o Ramon Vitral, vocês chegam a falar que não queriam que a história virasse “storyboard pra filme”. Dito isso, acreditam que “Damasco” se presta para uma adaptação para o audiovisual? Topariam uma proposta nesse sentido?
Lielson: A princípio, não vejo como “Damasco” seria filme, porque a gente fez com que a HQ usasse os recursos gráficos mesmo. Se alguém quiser tentar, adoraria ouvir a proposta. Mas tenho a impressão que poderia descambar pra uma comédia romântica bocó, o que é bem diferente do espírito do quadrinho.
Alexandre: A gente não fez “Damasco” pensando nisso. Gostaria de ver esse caminho que a gente percorreu em outro terreno. Seria legal ver soluções para o audiovisual que tentariam transpor o que se faz no papel em filme. Mas concordo com o Lielson. Seria fácil descambar para uma comédia romântica (o que não seria necessariamente ruim).
Planejam trabalhar como dupla em uma nova HQ? Podem adiantar alguma coisa?
Lielson: Estamos planejando uma publicação pequena, um zine, para o ano que vem. Mas ainda não consegui atravessar a avalanche de trabalhos como freelancer, que acabaram se acumulando por causa do nascimento do meu filho, e agora estou colocando a casinha em ordem. Essa ideia surgiu com o Alexandre me propondo um formato específico de narrativa. Agora eu preciso arranjar um roteiro que dê conta disso.
Alexandre: A gente sempre pensa em fazer coisas curtas, rápidas. Mas, recentemente, o Lielson também me falou de uma outra ideia pra um livro longo que eu fiquei bem interessado em ver se desenvolver. Acho que é uma coisa que vai permitir a gente explorar mais a linguagem. Espero só não terminarmos em 2034.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo!.