texto por Renan Guerra
O filme “Levante”, de Lillah Halla, foi o escolhido para a abertura da 31ª edição do Festival MixBrasil, que começou nesta quarta-feira (09), em São Paulo (e segue até o dia 19). E essa escolha tem um motivo: o longa fez uma interessante carreira internacional esse ano, sendo premiado pela Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), em Cannes, durante a Semana da Crítica do festival francês. Mas mais que isso, o filme de Lillah Halla é um manifesto bastante forte sobre gênero, diversidade e liberdade feminina, tópicos que dialogam de forma direta com o tema do MixBrasil desse ano: “A gente nunca foi tão mix”.
“Levante” acompanha a história de Sofia (Ayomi Domenica), uma jovem atleta que participa de uma equipe de vôlei bastante diversa, formada na periferia de São Paulo, sob a batuta de Sol (Grace Passô). Alvo de olheiros, Sofia está em vias de ganhar uma bolsa no Chile, porém nesse cenário decisivo ela se descobre grávida. E ela só tem uma certeza: não pode virar mãe agora. Mas como conseguir abortar sem dinheiro em um país no qual o aborto é ilegal? É essa a base da trama escrita por Lillah Halla e María Elena Morán.
O aborto é a parte central da narrativa do filme e é ele que tensiona a história, criando caminhos cada vez mais difíceis e complexos para a protagonista e todos os personagens em seu entorno. “Levante” mostra como a ilegalidade do aborto no Brasil coloca as mulheres – especialmente as mulheres negras e em vulnerabilidade social – em um espaço de culpabilização e total inoperância sobre seu próprio corpo. Mas em contrapartida a opressão desse cenário, o filme de Lillah Halla cria uma experiência de coletividade feminina muito forte: Sofia é apoiada por suas amigas de time, sendo que todas têm uma relação de bastante parceria com sua treinadora.
É desse encontro entre amigas que surgem os momentos mais leves e ternos de “Levante”. Para cada momento de tensão, repressão e violência, somos contemplados também com experiências de cuidado, de afeto mútuo, de prazer e de diversão entre as jovens – representadas aqui em uma confluência de corpos: mulheres negras, brancas, gordas, magras, cis e trans. Ditas todas essas coisas, poderia se ler “Levante” apenas como um filme discursivo, em que as ideias políticas e sociais se sobrepõem a narrativa, mas pelo contrário, o interessante do longa-metragem é que Lillah Halla consegue criar também uma narrativa tensa e urgente que nos coloca sob ansiedade constante. A ilegalidade do aborto, a falta de acessos financeiros das personagens e a constante sacralização do corpo do outro vinda das igrejas neopentecostais criam uma espécie de via-crucis para Sofia e o público é apenas o observador dessas tensões, como que de mãos atadas.
Toda a narrativa de “Levante” apenas cresce com um uso bastante coeso da trilha sonora, criada originalmente por Maria Beraldo (com participações de Juçara Marçal e Badsista), que já havia trabalhado na trilha do excelente “Regra 34”, um dos destaques da edição passada do MixBrasil. Além disso, há um excelente uso de faixas já conhecidas de artistas jovens que dialogam de forma muito interessante com os personagens que estão na tela, como canções de Lia Clark, Irmãs de Pau e Linn da Quebrada.
“Levante” é um filme que pulsa o nosso tempo e fala sobre demandas e necessidades das novas gerações e, talvez ele não dialogue tão diretamente com que não se vê atravessado por todas aquelas tensões do filme, por isso mesmo é fundamental que o filme de Lillah Halla consiga chegar ao seu público e que seja visto por quem está aberto ao seu universo. Tenso, duro e urgente quando o tema é aborto, “Levante” também consegue ser uma ode as diferentes possibilidades de feminino e de amizade e por isso vale ser visto e compreendido em todas as suas nuances.
Leia sobre outros filmes do Festival MixBrasil
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.