entrevista por Homero Pivotto Jr.
Era março de 1996 quando os Ramones atravessaram o continente pela última vez para tocar na América do Sul. No dia 16 daquele mês e ano, Joey (voz), Johnny (guitarra), CJ (baixo) e Marky (bateria) fizeram sua derradeira apresentação em Buenos Aires — uma das cidades em que o grupo tinha público cativo. A cerca de 675 quilômetros da capital Argentina, em Uruguaiana (região oeste do Rio Grande do Sul), um então adolescente Frederico Rubim ia tomando gosto pelo punk rock influenciado por bandas como Ramones.
À época, o adolescente era cativado não apenas pela sonoridade, mas também pelas possibilidades do estilo musical tornado movimento. Entre elas, a de desafiar limites, seja o das convenções sociais ou mesmo os geográficos. Ainda que não seja autobiográfica, a nova história em quadrinhos do autor gaúcho carrega um pouco de sua própria experiência e leitura de mundo como cria de uma divisa internacional que teve a música como alento para inquietações.
Intitulada “Sobreviventes da Fronteira”, a publicação de 64 páginas narra a aventura de um grupo de amigos que entra num carro para assistir ao último show dos fast four nova-iorquinos em Baires. A obra está em financiamento até 4 de novembro. Confira valores e recompensas: catarse.me/sobreviventesdafronteira. “Conforme ia escrevendo, muito da minha experiência foi aparecendo e se misturando com referências de filmes e HQs que me influenciaram, e acabou formando esse caldo único. (…) Pouca gente sabe, mas era um costume de seres jurássicos como nós querer aprender a tocar um instrumento para ter uma banda. Os Ramones e o punk rock não só me despertaram esse desejo, mas também me deram um meio de expressão artística, de afirmação pessoal”, afirma Fred.
A trama tem como protagonista João Ramiro, “provavelmente o maior punk da fronteira entre Brasil e Argentina!”. Trata-se de “um raro fã de Ramones entre o grupo de colegas que curte muito pagode dos anos 1990 e um bom vanerão gaudério, que tem apenas um grande amigo: Matias – que bolou um plano para os dois assistirem ao último show dos Ramones em Buenos Aires, em 1996, a lendária despedida dos palcos da América Latina e uma das últimas apresentações do grupo. É aí que entra Magrão, que topa encarar uma viagem de carro com os amigos só porque ele entraria em qualquer roubada para visitar Albertina – una chica punk rocker que vive do outro lado da fronteira”.
Apesar de “Sobreviventes da Fronteira” ser o primeiro roteiro escrito por Fred, o quadrinista, ilustrador e designer gráfico que hoje vive com a família em Santa Maria (centro do RS) já tem experiência no meio. A estreia nos quadrinhos foi em 2016, com duas publicações pela editora Avec: “O Coração do Cão Negro”, em parceria com Cesar Alcázar, e “Le Chevalier – Arquivos Secretos”, junto com André Cordenonsi. Em 2020, teve o primeiro título publicado nos EUA (“The Marriage of Heaven and Hell”, pela editora Behemoth) e foi indicado ao Troféu HQMix com a webcomic “A Todo Vapor” — ambos os trabalhos em parceria com Enéias Tavares.
Fred também é o responsável pela arte de “Os Sussurros do Caos Rastejante”, graphic novel que faz parte da Coleção Cthulhu, do Jovem Nerd (também indicada ao Troféu HQMix, em 2023). O projeto adapta o cultuado Nerdcast RPG baseado na obra de H.P. Lovecraft, lançado no mercado em 2022 pela editora Jambô, casa editorial pela qual lançou também a HQ de horror “As Três Sepulturas”, em parceria com Fábio Yabu. Na música, integrou pelo menos duas bandas: Herói e Brinquedo Velho.
Na entrevista a seguir, Fred conta como o punk rock o fez enxergar para além das fronteiras, fala sobre inspirações e avalia o mercado de quadrinhos no Brasil.
Pra começar: sabendo que és fã dos Ramones, pergunto o quanto de autobiográfico e o quanto de vivências de amigos teus há na história de “Sobreviventes da Fronteira”? Considerando, ainda, que também és uma cria da fronteira, nascido em Uruguaiana.
Não é uma história autobiográfica, acho importante dizer. Mas acho que, conforme ia escrevendo, muito da minha experiência foi aparecendo e se misturando com referências de filmes e HQs que me influenciaram, e acabou formando esse caldo único. Mas sim, o local onde se passa a história é claramente baseado na região onde eu cresci, no oeste do Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina. Já a inspiração para o título veio de uma banda punk que existiu de fato em Uruguaiana, um pouco depois dos anos 90, em 2006. A Sobreviventes da Fronteira foi idealizada e batizada pelo nosso amigo Luciano Ordai, professor e músico da cidade. Coincidentemente, ou não, eu e o sr. Homero Pivotto Jr. também fizemos parte desse bochincho, que durou apenas uma apresentação — o suficiente pra gravar o nome na minha cabeça para ser eternizado nesse quadrinho.
E como surgiu o argumento para a história?
Desde que comecei a publicar quadrinhos, o Oggh (Fabiano Denardin, editor da Hipotética) me incomodava para eu criar uma história que se passasse na fronteira, com cenários, gírias e expressões locais. De fato, o linguajar da região é único! Eu já tinha apresentado para ele uma ideia inicial, que era sobre amigos que cruzavam a fronteira para ir ver um show dos Ramones, e já sabia que o nome da HQ teria de ser esse. Mas nunca achei que eu tivesse capacidade de escrever a história toda, sou mais do desenho do que do roteiro. Daí em 2022, com a criação da editora, o Fabiano voltou a me botar pilha nessa ideia e esboçamos juntos a estrutura geral. Era para ser uma história de apenas oito páginas e entrar no Hipotetizine (fanzine da editora Hipotética), mas a empolgação tomou conta e acabamos seguindo o fluxo. Depois, sentei e escrevi o roteiro e desenhei. Foi divertido demais, minha experiência mais satisfatória com HQs até hoje. Acho que consegui transmitir tudo que eu queria.
De que maneira os Ramones, e o punk rock de maneira mais ampla, ajudaram a direcionar tuas escolhas de vida?
Pouca gente sabe, mas era um costume de seres jurássicos como nós querer aprender a tocar um instrumento para ter uma banda. Os Ramones e o punk rock não só me despertaram esse desejo, mas também me deram um meio de expressão artística, de afirmação pessoal. Se apresentar em público é meio que um tratamento de choque para a timidez e insegurança. É se colocar como um alvo voluntário de críticas, vaias, e eventualmente, garrafas e copos de plástico cheios de urina. Desde então, o “do it yourself” foi uma coisa que norteou boa parte das minhas escolhas, sabendo que o erro e a imperfeição às vezes geram qualidades artísticas únicas. Acho que isso me tornou menos apegado à técnica e mais ao sentimento, seja no traço de um desenho ou na performance de um guitarrista. Um solo de cinco minutos não torna uma música boa, assim como um desenho anatomicamente irretocável por si só não narra uma boa história. Mais tarde descobri também, por meio de bandas como The Clash e Bad Religion, que o punk podia ser uma forma de questionar e contestar o status quo.
Como o rock, pensando mais no punk até, pode ajudar um adolescente a querer quebrar algumas fronteiras?
Ah, não posso falar pela juventude de hoje, que vive outro momento. Mas 30/40 anos atrás, o rock era a maneira que a gente tinha de romper com o padrão, revolucionar as coisas.
O release do evento menciona Molejão, famoso grupo de pagode dos anos 1990. Como o conjunto entra na trama rocker? E mais: como percebes, olhando em retrospectiva, esses atravessamentos de estilos musicais dos anos 1990 aos quais fomos expostos?
É muito doido isso, né? O punk rock era uma forma que a gente tinha de contestar a programação que éramos obrigados a ouvir no rádio, na tv, e até mesmo na MTV (que às vezes era nossa única janela para coisas novas). Mas, ao mesmo tempo, era impossível desviar da cultura massificada que invadia nossos olhos e ouvidos diariamente. Da mesma forma, naquele espaço geográfico onde se passa a HQ, também havia a influência da cultura gauchesca e “castelhana”, que chegava do outro lado da Ponte Internacional Getúlio Vargas/Agustín Pedro Justo. A própria língua se mistura no encontro dos países, onde é comum o famoso “portunhol”.
Como foi pensado o perfil dos personagens, como o protagonista João Ramiro e os amigos Matias e Magrão, ou mesmo a ‘chica punk rocker’ Albertina?
Bom, é claro que todos os personagens que aparecem têm algo da minha vivência da época. O João Ramiro, por exemplo, é um garoto que não se encaixava muito dentro da cultura gauchesca e tradicionalista, buscando no punk rock algo que o permitisse se expressar. O Matias é bastante inspirado em amigos da cultura skate de Uruguaiana, que sempre foi bem forte. Já o Magrão é o típico cara “padrão” da cidade, que não manja nada de rock. A Albertina foi uma forma de homenagear os hermanos e hermanas punk rockers.
Teu traço carrega uma aparente preocupação com detalhes, principalmente quando mostra elementos que existem no plano real — como a ponte fronteiriça Getúlio Vargas/Agustín Pedro Justo, que separa Uruguaiana de passo de Los Libres. Como desenvolveu esse cuidado?
Talvez a ponte seja o grande símbolo da dupla nacionalidade dessa história, então era muito importante que tivesse certa verossimilhança com a realidade. Acabou que fui até a Argentina comprar uns alfajores e acabei tirando várias fotos da ponte e outros locais do lado de lá.
E tua paixão por HQ, surgiu ainda quando morava na fronteira?
Eu era um piá extremamente tímido e retraído, e desde muito pequeno me isolava no meu mundinho lendo gibis e desenhando por horas. No colégio, era aquele colega que desenhava, fazia caricaturas dos professores etc. Daí, na quarta série, comecei a inventar meus próprios gibis e xerocava para vender aos colegas. Já era fanzineiro e não sabia. Aos 15 anos eu já publicava minhas tiras num jornal da cidade, e depois só continuei.
Como descreveria a vida de um adolescente que viveu na fronteira? E o que o rock representava nessa época, pelos idos de 1990?
Eu comecei a ouvir rock lá pelos 10 anos de idade, embalado pelo hype (nem existia essa expressão ainda, mas vai) do Rock in Rio 2. Mas assim, como o festival foi uma grande salada de todas as vertentes e estilos, não deu aquele “click”. Já quando conheci os Ramones, no alto dos meus 14, 15 anos, aí sim bateu a identificação! Era radicalmente diferente do que a maioria do pessoal escutava. Na escola, mesmo entre os que gostavam de rock, raramente tinha algum fã de Ramones, e isso era meio que uma maneira de a gente se diferenciar. Os poucos fãs de punk rock se conheciam, e é claro, acabavam querendo montar uma banda também. O rock, e principalmente o punk rock, eram uma maneira de escapar do padrão da cidade onde eu morava, demonstrar rebeldia, e com o tempo despertou em mim também a paixão pela música de uma forma geral.
De que maneira, na tua trajetória, música e história em quadrinhos se cruzam?
Pode soar estranho, mas essa é a minha primeira HQ com tema musical! Sendo meu primeiro roteiro, resolvi que seria interessante se eu escolhesse um tema que tivesse a ver com o que eu curto. Foi uma escolha óbvia.
Tu já tens alguns trabalhos em quadrinhos publicados. Como avalia a produção nacional atualmente, do ponto de vista de quem produz? Há espaços e demanda?
A produção nacional nunca foi tão pujante, tem muita gente produzindo coisas de todos os estilos imagináveis. Comercialmente, segue sendo um mercado muito pequeno. Os quadrinhos sempre foram uma arte marginal, mas hoje, com os altos preços de impressão em decorrência do valor do papel, mais a concorrência de outras formas de entretenimento, ficou um pouco para trás. Sem contar que há muito colecionismo e pouca leitura de fato.
Esse é mais um lançamento da editora Hipotética, selo literário independente que tem movimento o cenário no RS — até no país, na real. Qual importância de iniciativas assim para os artistas?
A editora Hipotética tem investido em obras de artistas nacionais e coisas mais underground de fora, que outras editoras não trazem. E o principal: com muita qualidade e profissionalismo. São pessoas apaixonadas pelo que fazem, que trabalham com muita competência. Eu jamais teria me lançado na aventura que é um financiamento coletivo sem o suporte deles.
Supondo que o carro em que os personagens da história viajam tivesse toca fitas — afinal, era metade dos anos 1990 —, quais sons do Ramones entrariam em cada lado da tape pra ir entrando no clima do show?
É claro que o João Ramiro e a Tina escolheram várias fitas dos Ramones e muitas outras bandas para embalar a viagem. Mas, como o carro é do Magrão, que não manja nada de punk rock, a playlist ficou meio misturada com hits aleatórios dos anos 1990. Na verdade, não vou citar nenhuma música, só avisar que fizemos uma playlist no Spotify com a trilha sonora da aventura.
Conheça Paulo Caramês, um sobreviventes da fronteira na vida real
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Meu conterrâneo, sou de Uruguaiana/RS, conheço o Ordai, muito legal, não conhecia o trabalho do Rubim