introdução por Marcelo Costa
Faixa a faixa por Ian Ramil
Oito anos após seu segundo álbum, “Derivacivilização” (2015), Ian Ramil está de volta. Na vida comum, oito anos é tempo pra caramba. Na cultura pop, entre os 15 minutos de Warhol e o viralizar de um post em uma rede social, oito anos são praticamente três eternidades e meia. Ou mais. Na história recente do país, oito anos nos permitiram ver a maldade reaparecer das trevas ostentando ignorância, violência e fake news. E enquanto contávamos assombrados os números de mortos na pandemia, Ian Ramil contava, paralelamente, os dias da pequena Nina, cujo processo de entendimento da paternidade por Ian circundou a criação de “Tetein” (2023), seu novo disco, um projeto classudo de pop barroco que ele começou a desenvolver em 2016.
Ter um filho sempre foi um ato de amor e coragem, mas, talvez, essa geração de pais seja a mais consciente disso. Compartilho com Ian Ramil a sensação maluca de olhar pela janela (ou para a TV) e ver o mundo despedaçando e, no segundo seguinte, olhar com os mesmos olhos para o chão e ver um pequeno ser nascido quase que por mágica brincando de Lego e querendo atenção. O caos e o afeto. A leveza e a aspereza. A criança e o mundo que a espera. Porém, por mais que esses polos norteiem “Tetein”, é preciso admitir também que eles já estavam lá em “Ian”, seu disco de estreia em 2014, muito antes de Nina – há um universo habitável entre “Seis Patinhos”e “Nescafé”.
O que torna “Tetein” emblemático, na verdade, é a maturidade de Ian Ramil, que após a verborragia necessária de “Derivacivilização”, álbum vencedor do Grammy Latino na categoria “melhor álbum de rock em português”, e a chegada da paternidade retorna totalmente à vontade para cantar tanto sobre o tiozão do zap com camisa de futebol “que adora piada de negro e gay” (na poderosa “Macho-Rey”, feita com Juliana Cortes) quanto o cotidiano em família: “Posso passar o dia viajando com vocês”, ele canta na faixa título. “Toda história é minha história”, ele crava em “O Mundo é Meu País”, parceria com Luiz Gabriel Lopes. “Serei mil pares de pernas dançando em roda, em volta, assistindo o shopping center queimar”, ilumina a empolgante “Mil Pares”.
Mais profundo, provocativo e bem acabado dos três discos de Ian Ramil, “Tetein” é daqueles trabalhos que tanto funcionam numa audição desleixada (há vários refrãos e climas com poder para trazer o ouvinte absorto de volta caso ele se perca nos labirintos da rotina) quanto num mergulho via fones de ouvido (para o qual é mais indicado, inclusive, já que a beleza de algumas passagens e versos merecem total atenção). Abaixo, Ian Ramil conta um pouco sobre as inspirações e ideias que circundam as 12 canções que compõe “Tetein”.
“Tetein” faixa a faixa por Ian Ramil
01 – Tetein: “Uma das minhas favoritas do disco. Gosto de como ela é leve e nunca se repete e como a letra é pessoal, mas ao mesmo tempo palpável pra qualquer pessoa. Todo mundo já explodiu de satisfação com o cotidiano em algum momento.”
02 – Canção de Chapeuzinho Vermelho: “Retirei de um vídeo que fiz da Nina tocando piano no Audio Porto. Ela adorava cantar essa música quando pequena. No disco ela funciona como o início da história, a deixa pra entrada do Macho-Rey.”
03 – Macho-Rey: “Fiquei muitos meses tocando o riff até encontrar a melodia simples, centrada em uma nota só. Junto já veio a letra, que surgiu rápida, mas me parecia capenga. Um dia mostrei pra Juliana Cortes e ela entrou matando com a ideia do refrão.”
04 – Cantiga de Nina: “Nina tinha um mês e eu ficava cantarolando pra ela. Um dia no meio de um choro incessante cantarolei uma melodia singela, redondinha, com cara antiga. Registrei no celular em meio ao choro e passei os dias seguintes cantarolando e escrevendo a letra sem pressa.”
05 – O Mundo é meu país: “Em dado momento de um livro que eu estava lendo, a entrevistadora pergunta a Ariane Mnouchkine por que narrava em suas peças coisas tão distantes da realidade em que vive. Ariane responde algo como: ‘sou parte da humanidade e tudo que acontece com a humanidade me diz respeito’. Anotei a ideia em verso: ’toda história é minha história’ e fui dormir. No dia seguinte acordei com uma mensagem do Luiz Gabriel Lopes me dizendo: ‘Vamos fazer uma música?’.” Foi pelo zap.
06 – Lego Efeito Manada: “Acho que é a composição mais sofisticada do disco. Um dia o Ceron me mostrou uma demo do Poty e entre elas estava uma que identifiquei como um esboço. Eram os primeiros compassos, ainda sem letra, do que viria a se tornar Lego. Peguei aquela ideia e desenrolei nos dias seguintes. Depois concluímos juntos.”
07 – Mil Pares: “Fiz essa música em uma tarde. A Duda Brack me pediu pra fazer algo pro disco novo dela e fiz ´Mil Pares´, mas ela acabou gravando ´Macho-Rey´. Depois, no meu disco, me aventurei a construir esse universo de beats orgânicos dela. Um dos arranjos que mais gosto.”
08 – O Bichinho: “Pra mim é a mais importante do disco. Foi quando fiz que percebi que tinha uma linha ligando todas as composições que eu vinha fazendo. Escrevi numa tarde sozinho com a Nina em casa quando ela tinha 4 meses. É a mais delicada que já fiz. Quis que o arranjo fosse pelo mesmo caminho.”
09 – Teletransporte: “Essa é a mais antiga de todas. Compus antes de começar a gravar meu primeiro disco, mas tinha só melodia e violão, nunca consegui botar letra. Quase 10 anos depois, numa tarde preguiçosa com a Nina e o sol no quarto dela, fui teletransportado pra minha infância em Rosário do Sul e voltei com a letra.”
10 – Palavras-vão: “Essa é quase da época de Teletransporte. Já nasceu completa, mas nunca entrou nos meus discos. Eu ouvia muito o ‘Asleep On The Floodplain’ do ‘Six Organs Of Addmitance’ e fiz inspirado naqueles espaços todos que eles deixam. Eu sempre tive em mente que ela seria uma música importante pra algum momento meu. Ela é o respiro profundo de ´Tetein´.”
11 – Homem-Bomba: “Mais uma parceria com o Poty. Essa, ao contrário de Lego, chegou bem encaminhada. Entrei com versos e algumas melodias. Ela nos cutuca pra realidade externa.”
12 – Cantiga de Nina II: “No longo processo de produção do disco, em casa, entrei na viagem de trabalhar essa versão a capela, com um intervalo improvável de vozes, sem base harmônica. Só gravando intuitivamente e lapidando. Depois o Mosca trouxe esse reverb tremolo que deu a cola e elevou ela pra essa lisergia carinhosa.”
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. As fotos que ilustram o texto são de Carine Wallauer