texto de Ananda Zambi
fotos de Douglas Fischer
“Não há nada a perder, não há nada a ganhar, a não ser o prazer de ser o mesmo, mas mudar”: assim canta Lulu Santos na música “De Repente”, lançada no álbum “Normal” (1985). Após estrear em maio o show “Barítono”, em que comemora 70 anos de vida e quase 50 de carreira, numa apresentação transmitida pelo Globoplay e pelo Multishow, e fazer uma temporada nos Estados Unidos, o artista lotou o auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, nos dias 15 e 16 de julho. Ao assistir à apresentação de domingo, vê-se que Lulu permanece sendo um dos maiores músicos e entertainers do Brasil, mas agora abraça de vez as suas singularidades, sendo uma delas o tom de voz mais grave.
No material de divulgação sobre a nova turnê, o artista revela que admitiu tardiamente que era um barítono – ou seja, o tom de voz masculino que se encontra entre o baixo e o tenor –, e quem é músico sabe que cantar no seu registro vocal adequado, além de ser mais saudável e confortável pro artista, também tende a deixar a voz mais bonita. Abrindo a noite com apenas cinco minutos de atraso, o artista entrou no palco, decorado com cenário idealizado por Karen Araújo, sob uma introdução ao ritmo de funk, que logo se transforma em “Toda Forma de Amor”, música que celebra o amor sem restrições e que recentemente se tornou um hino da causa LGBTQIA+ – Já faz um tempo que, nos shows, o trecho “Eu sou teu homem / Você é minha mulher” tem o segundo verso alterado para “Você é o que quiser”. Em 2018, Lulu assumiu ser bissexual ao falar abertamente sobre seu relacionamento com Clebson Teixeira, o que também pode-se considerar mais um ato de auto acolhimento e conforto com o que se é. Na sequência, dois hits avassaladores: “Um Certo Alguém” e “O Último Romântico”.
Na verdade, Lulu Santos é um dos poucos artistas brasileiros cujos grandes sucessos não cabem em um só show. Em mais ou menos 2h30, o artista cantou a maioria das músicas dele que todos nós conhecemos e que, muitas vezes, não sabemos como ou de onde conhecemos, pois já estão entranhadas na nossa cultura midiática, popular e no nosso imaginário pessoal. Dividido em espécie de blocos, o show também contou com faixas como “Adivinha o Quê”, “Tudo Azul” (fazendo um medley com “Assaltaram a Gramática”, parceria de Lulu com o poeta Waly Salomão que ficou conhecida com Os Paralamas), “Tudo Bem”, “A Cura”, “Apenas Mais Uma de Amor”, “Sábado à Noite”, “Certas Coisas” e, claro, “Tempos Modernos”, uma das primeiras músicas gravadas pelo cantor e curiosamente uma das mais atuais do repertório do artista, que no espetáculo foi precedida por uma gravação da Sinfônica Ambulante de Niterói. Algumas canções causaram surpresa no set, caso de “Sincero”, “Condição” e “Caso Sério” (em homenagem a Rita Lee, morta em maio deste ano – Lulu chegou a gravar um tributo à artista, o álbum “Baby Baby!”, de 2017)), assim como com a exclusão de outras, como “Satisfação” e “Astronauta”, esta em parceria com Gabriel O Pensador.
Lulu Santos é um músico que sempre gostou de observar e de se apropriar das tendências do momento. Nos anos 1990 e 2000 em parceria com DJ Memê, lançou uma série de trabalhos com uma verve mais eletrônica, que resultou em sucessos como “Assim Caminha a Humanidade” e “Já É!”, que estiveram presentes no momento “baile” do show. Houve também um bloco “Zen-Surfismo” emendando “Lua de mel” – dessa vez homenageando Gal Costa –, “Sereia”, “De Repente, Califórnia” e “Como uma Onda”. E ao longo do espetáculo, Lulu demonstrou simpatia pelo funk, seja em sonoridades secundárias quanto em presença de palco. Para conseguir acompanhar esses vários momentos distintos, o artista conta com uma banda carismática e talentosa, como Sergio Melo (bateria), Hiroshi Mizutani (teclado e programação eletrônica), Tavinho Menezes (guitarra), Jorge Aílton (baixo e vocais) e Robson Sá (vocais e percussão).
É indiscutível que as músicas de Lulu fazem parte da nossa memória afetiva e que ela é ativada ao longo de toda a apresentação, mas um dos momentos mais bonitos do show foi quando o cantor reverenciou a equipe técnica, também chamada de “graxa”, chamando todos ao palco, falando o nome de cada um, sob fortes aplausos da plateia, que de fato se esquece que sem eles os eventos não acontecem. Ao final, Lulu cantou a clássica “Casa” e, por último, sua versão de “Descobridor dos Setes Mares”, de Tim Maia, estendendo a vibe do baile. Antes de sair do palco – sem bis, diga-se de passagem –, o artista declarou que em Porto Alegre se sente “muito bem lido”, “muito bem-interpretado”. É a capacidade de ser atemporal – sendo o mesmo, mas mudando.
– Ananda Zambi é jornalista e editora do Nonada – jornalismo travessia. Fotos de Douglas Fischer.