texto por Leïlah Accioly
Das traças às graças, Letrux abre a caixa torácica de novo, rende-se às suas taras, assume-se como avis rara, raríssima, estraçalha os manuais do bom senso e ainda assim, soa mais comercial que nunca. Pergunta-se sobre o ovo ou a galinha sem se importar, o que importa é assumir-se bicho sem obviedade humana, descansar entre os leões capitalistas, segurar quando dá zebra com o boyzinho, consertar o caminho como as aranhas, ficar com o mel das abelhas, levando a tristeza dessas ferozes trabalhadoras pra longe e se concentrando no segredo que elas contam nos ouvidos. Das graças às troças, as desgraças viram sobremesa neste disco que, poeticamente, livra-se das nóias dos dois álbuns anteriores. Nada de servir de bóia, por mais que Letrux ame o mar, neste disco-ancoradouro, ela pega um dourado solar sobre a areia e finca em terra firme cercada de bichos amigos e inimigos, a criar sua própria fábula.
“Letrux como Mulher Girafa” (2023) é um segredo estrondoso, um disco-zumbido que se parece com um livro pop-up multicolorido, sendo possível ouvir cada imagem e ver cada som delicadamente tecidos por esta Louise Bourgeois da música brasyleira, que vem tentando repará-la e devolver a ela sua inventividade e intrepidez. Como uma hábil flaminga, animal que quer ser, ela costura com suas pernas quase invisíveis referências de uma simplicidade atroz (ou seria albatroz?), cerzindo-as num prazeroso e perturbador ziguezague com suas emoções sempre à flor da pele.
Este é um álbum muito mais pop que o barroco “Letrux aos Prantos” e soa, de alguma forma pouco explicável racionalmente como a sequência natural de “Letrux Em Noite de Climão”. Mas não se trata de pop descartável, hiper-palatável, mas de pop psicodélico. O pop está na forma como a música é entregue, mas sua base é, definitivamente, psicodélica. É pop porque sua audição é fácil, fluida como uma teia, é psicodélico porque se move como um carrossel com todos estes bichos que vão revelando suas cores, texturas, ruídos, caracteres e significados em ritmo vertiginoso, a girar e girar-girafa. E essa “giradelia” é tão minuciosa e multifacetada que o álbum conta com cinco vinhetas, como rascunhos de canções que não vingaram, adicionando uma das características-mestras da psicodelia, o enigma. A melhor delas é “Intervalo da pantera megera”, com seu piano-cabaré e um jeito de canção de Marília Pêra em musical setentista.
Enquanto isso, na faixa dividida com Lulu Santos, “Zebra”, a cítara elétrica que o artista toca escancara essa veia psicodélica, assim como a faixa final, “Teste psicológico animalesco”, traz um perfume de Rita Lee na fase Tutti-Frutti.
Quando as gaivotas começam a passar pela praia suave da colcha-concha de teclados de “Louva-deusa” vem uma pedrada, “como se diz pra alguém que eu não me apaixonei como você?” e é sobre um balanço praiano suingado que a cantora fala de uma das questões românticas mais difíceis e raramente tratadas pelo cancioneiro pop, o amor mais ou menos correspondido. Sobre esse terreno acidentado, deixado de lado pela maioria dos compositores, Letrux flutua com invejável elegância, providenciando esperança para os corações que não tomaram cuidado com a paixão e mandando a real para os que estão crédulos. Em “Hienas”, o tema se repete mas com mais deboche e acidez. “Não respeitou nossa história” é um verso dito no gozo do escárnio, atravessando o peito como veneno na ponta de uma flecha mas o “mato sem cachorro” é admitido sem sofrência e com a praticidade de quem já mordeu e foi mordida.
Em matéria de letra, Letrux está mais econômica e papo reto, precisa cirurgiã-criadora de poemas-criaturas decalcáveis para uma série de situações cotidianas e filosóficas, que é basicamente o que sempre fez e pelo que se notabiliza a cada lançamento, mas desta vez, de um jeito mais solto, à vontade e por vezes, singelo. Podem pensar que, por se tratar de um disco conceitual — outra preferência do psicodelismo — e com conceito baseado em bichos, as letras cairiam nalgum didatismo de almanaque mas o que temos aqui é uma Letrux encaixando suas questões nas sombras desses animais e recriando-os de acordo com suas próprias leis e percepções, que costumam fugir do lugar-comum. Pois, ajuda muito que aspectos menos óbvios dessas animalidades sejam abordados pela poeta, e que mesmo os óbvios, tenham uma luz ora difusa, ora colorida jogada sobre eles. Novamente, o efeito é caleidoscópico, próprio das obras psicodélicas, que distorcem elementos reais e cobrem-nos de alucinações.
Nesse alucinante passeio com os bichos selvagens que Letrux domestica com suas palavras educadoras — como em “Crocodilo”, canção atmosférica com sensibilidade ladytroniana/misskittiniana em slow motion, cantada em inglês, que fala dessa personagem que sobrevive ao mistério do ovo e lança mão de um dos recursos psicodélicos mais exemplares, a manipulação/modulação/alteração da voz humana até o seu ridículo —, fica patente que um dos mistérios contidos neste disco, desde o ambíguo título, versa sobre esta eterna tensão entre devorar e ser devorada, que, no âmbito feminino, toma contornos mais dramáticos e políticos. Letrux come a mulher girafa ou é a própria? Como canta em “Hienas”, “se ainda tivesse me comido, tranquilo”. Em “Feras, essas queridas”, essa faceta temática está mais que declarada. Letrux é uma querida que come sua refeição com amor, destrinchando a presa com reverência e cuidado. Em “Louva-deusa”, a dúvida sobre como dizer para alguém que não está assim tão apaixonada transforma-se numa brincadeira com comer no sentido sexual. Já em “Leões”, uma faixa que pode ser imaginada como uma recriação de um outtake de Michael Sullivan nos anos 80, Letrux esgueira-se pra não ser devorada pelos seus algozes capitalistas, enquanto arrisca admirar as estrelas, não sem saber que estas são passado.
Infelizmente, a pasteurização presente na música brasileira massificada dá a entender que composições que unem carne e coração como essas, são coisa de estrelas passadas. Em pleno luto de cantoras como Rita Lee, Gal Costa e Astrud Gilberto, enquanto milhares se queixam de não chegarem estrelas novas aos palcos e TVs de um país em gravíssima crise de identidade e valores, mas que ao mesmo tempo, desafia suas tristes e violentas raízes como nunca antes, eu digo que, se estrelas podem não mais existir, Letrux é uma constelação inteira que merece iluminar muito mais gente que o segmento limitado em que está. Letrux chega a um patamar no cenário atual da música pop brasileira em que é, simultaneamente, abelha-rainha pairando acima da bicharada, dando as ordens de um tipo raro de bom gosto nada esnobe, algo em que o nosso país já foi craque, e operária atenta, humilde, trabalhadora até o talo. Ousa ir além como já é óbvio, mas consolida nesta iniciativa inusitada, fabular, em tempos de batidas tão batidas, sem esquecer que os corpos contemporâneos pedem pra bater, uma posição única de fabricante de sobremesas ácidas e doces para apetites que não se saciam com o que agora chamo de “música de selfie”: autorreferente, com um ângulo só sempre favorável, filtrada, sabor corante.
Musicalmente, este terceiro álbum “synthetiza” um som já com assinatura em negrito e itálico, equilibrando a sensibilidade climática do primeiro disco com as incursões densas e experimentalistas do segundo, encontrando um fiel da balança moderno-transcendente, uma espécie de nova disco, sofisticada mas sem afetações, da qual uma artista como Dua Lipa certamente se serviria. À semelhança das letras, a sonoridade economiza quando preciso e reparte-se em crimes e timbres quando libido. Os teclados sortidos de Arthur Braganti dominam o disco de cabo a rabos, construindo, sorridentes e numa miríade de sentimentos como as pintas, garras, línguas, pelos e faros dos bichos retratados, as melodias. A guitarra de Natália Carrera está mais áspera, rascante, sorrateira, cria intervalos e pontes com muita naturalidade, move-se felina, quase como se não estivesse ali em alguns momentos e em outros como se sempre tivesse estado. A produção de João Brasil privilegia a verve eletrônica da banda, puxando as composições para sua vocação mais festiva, finalizando-as com um verniz alto brilho.
Em termos de sentimento norteador, o turbilhão sentimental desolado de “Aos Prantos” cede lugar a um elétrico ritual de descarrego e exorcismo das feras, zebras e hienas que infestaram o cenário nos últimos anos, numa festa-banquete em que os insetos parecem restabelecer uma certa ordem. Louve-se essa deusa que se permite habitar sua própria cosmogonia e parir seu próprio folclore, muito sério e com muita sacanagem. Depois dos prantos, são mesmo bem-vindas umas boas lágrimas de crocodilo.
Leia o texto de Renan Guerra sobre “Letrux como Mulher Girafa”
– Leïlah Accioly é escritora, jornalista e designer. É responsável, ao lado de Letícia Novaes, pelo podcast Tarada por Letras