texto por Gabriel Pinheiro
E se a britânica Agatha Christie tivesse escrito um romance ambientado em um grande veículo tripulado, onde um corpo é encontrado sob circunstâncias misteriosas? E se essa obra acompanhasse um grupo de passageiros, de origens e perfis marcadamente distintos – e acima de quaisquer suspeitas – se tornando alvo do olhar sagaz de um investigador, que, atento aos detalhes, busca desvendar esse crime inesperado? Bom, talvez você me diga que esse livro já foi escrito e se passa durante uma viagem no lendário Expresso Oriente. Mas omiti alguns detalhes: nessa história, nazistas estão a bordo de um zepelim que voa pelo espaço aéreo brasileiro. “O crime do bom nazista” é o novo romance de Samir Machado de Machado pela Todavia Livros.
Brasil, 1933. o Dirigível LZ 127 Graf Zeppelin flutua pelos céus do Recife. “Avançando por entre as nuvens com uma serenidade que disfarçava sua marcha veloz. (…) Naquele momento, sessenta e sete toneladas flutuavam com elegância sobre Pernambuco”. Partindo da Alemanha, as terras brasileiras são o destino de alguns dos passageiros, que circulam pelas instalações, entre os diminutos quartos e o salão para refeições. Nele, se conhecem e conversam, entre xícaras de café ou taças de drinques. Entre os passageiros, estão um policial, um crítico de arte, uma baronesa, um médico e um comerciante. Da tripulação, dois membros se relacionam mais detidamente com esse, digamos, excêntrico grupo: o comandante e o comissário de bordo. Um dos personagens citados será assassinado.
Remetendo às melhores histórias do gênero policial, sobretudo as clássicas, como as da Rainha do Crime ou de Arthur Conan Doyle, “O crime do bom nazista” trabalha de maneira exemplar aqueles elementos que tornam essas narrativas tão irressítiveis. Há um assassinato, aparentemente, de difícil resolução, circunscrito em um ambiente controlado. Um grupo singular de personagens torna-se alvo do escrutínio de um atento investigador. Num contexto de ascensão do nazismo na Alemanha, descobrimos que cada um deles teria motivos para cometer tal crime.
Até aqui, o novo romance de Samir Machado de Machado já seria uma leitura deliciosa para os apreciadores de uma boa história de mistério. Mas há muito mais sob sua superfície. Ao falar da Alemanha nazista e todo o discurso de ódio que a sustentava, Samir fala também sobre o Brasil. Não aquele de 1933 – período onde a narrativa se desenrola – mas o que vivemos hoje, sobretudo a partir de 2018, com a eleição de um governo de extrema direita para a presidência. O autor conecta os discursos de outrora com os discursos de agora, expondo a violência que é a base do poder de ambos.
Se a literatura é capaz de apontar essas aproximações, é ainda mais assombroso quando o autor resgata acontecimentos documentados para expô-las. Por exemplo, em um momento do livro, um dos personagens cita o ministro nazista Goebbels: “A arte alemã da próxima década será heroica, ferrenhamente romântica, objetiva e livre de sentimentalismos. Precisa ser imperativa e vinculada às aspirações do povo, ou então não será nada”. Talvez você se lembre de um discurso parecido com esse. Não pela voz de Goebbels, mas pela do ex-secretário de cultura bolsonarista Roberto Alvim, em 2018, numa declaração vexaminosa. Noutro momento, a homofobia transborda pelo discurso de outro personagem: “Pessoalmente, eu preferiria que um filho meu morresse em algum ‘acidente’ do que fosse visto abraçado a algum bigodudo por aí”. Tal frase não nasce da ficção, mas de uma declaração do ex-presidente Jair Bolsonaro. A perseguição à comunidade LGBTQIA+ é, inclusive, um dos temas mais pungentes do livro – uma urgência outrora, uma urgência hoje.
“O crime do bom nazista”, entrega uma trama engenhosa, que nos instiga a desvendar o seu desfecho, numa leitura fluida e imersiva, unindo a ficção histórica, a análise política e a literatura policial. O real a todo momento invade a ficção de Samir Machado de Machado, que tece de maneira primorosa os muitos fios que conectam o nazismo e o bolsonarismo, duas ideologias que se encontram na violência do discurso, no ódio à diferença e no desrespeito às minorias.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.