entrevista por Bruno Capelas
É fácil falar da música brasileira e pensar em seus gigantes – uma porção de nomes que, felizmente, passa muito longe de se resumir a uma contagem dos dedos das mãos e dos pés. Mas a força da canção feita nesse país vai muito além desses grandes nomes, sendo também construída por coadjuvantes, músicos de apoio, letristas desconhecidos e produtores que ficam bem longe dos holofotes. Às vezes, é feita até pela mãe dos músicos, que oferece lanchinhos enquanto todo mundo ensaia. Essa é a história de “Terra Trio”, livro do jornalista Ricardo Schott.
Lançado pela editora Sonora neste primeiro semestre de 2023, o trabalho investiga a história do trio instrumental formado pelos irmãos Fernando Costa (bateria), Ricardo Costa (baixo) e José Maria Rocha, o Zé Maria (piano), que lançaram apenas um disco solo (“Terra a Vista”, de 1969), mas tocaram com um sem-número de astros da MPB – juntos ou separados, eles estiveram nos palcos e em estúdio com gente como Maria Bethânia, Nara Leão, Rosinha de Valença, Paulinho da Viola, Sidney Miller e muitos outros. Faltava, porém, registrar essa trajetória em livro.
“A história dessa turma tem que ser contada porque eles fizeram muita coisa que os cantores não poderiam ter feito sozinhos. A Bethânia tem uma baita voz, mas ela chegou aonde chegou sendo ajudada por muitos músicos”, diz Schott, em entrevista ao Scream & Yell realizada no início de março. “Escrever esse livro é fazer justiça. A ficha técnica hoje está sumindo, no streaming nem tem espaço para isso, mas as pessoas precisam de créditos.”
Mais do que apenas uma biografia do grupo, “Terra Trio” também é a história de uma mãe dedicada – dona Emilia, a matriarca da família, maior apoiadora da carreira do grupo. É graças a ela também que se deve boa parte da pesquisa para o material: além de abrir sua casa para festas e ensaios dos filhos, dona Emília também guardou toda sorte de recortes de jornais e revistas que envolvessem os filhos, em um álbum que serviu de base para o trabalho de Schott.
Com mais de duas décadas de carreira, Schott tem em “Terra Trio” apenas seu segundo livro – o primeiro, “Heróis da Guitarra Brasileira”, foi feito em parceria com Leandro Souto Maior (autor de “Jimmy Page no Brasil”) e saiu em 2014. Além disso, o jornalista também é responsável por textos enciclopédicos em sites como Discoteca Básica (não confundir com o podcast) e Pop Fantasma, que ajudaram muita gente a mergulhar na carreira de nomes conhecidos ou não – graças a ele, o entrevistador descobriu obras como as de Antonio Adolfo e a Brazuca, Guilherme Lamounier ou até mesmo ouviu… “London Calling” pela primeira vez.
Na entrevista a seguir, Schott fala mais sobre a história do Terra Trio, conta detalhes sobre o processo de apuração (“A Maria Bethânia é a voz mais bela que eu já ouvi num telefone”, diz) e lista as lições que a trajetória do grupo pode ensinar a músicos novatos e/ou independentes. Ele também conta um pouco sobre o dia a dia do Pop Fantasma e do Pop Fantasma Documento, site e podcast que toca atualmente – com ótimas histórias sobre “fatias de vida” de artistas e bandas, o programa de áudio foi um dos destaques do Melhores do Ano 2022 do Scream & Yell. Ah, e ainda tem cinco discos para levar para a ilha deserta, viu? Com a palavra, Ricardo Schott.
Como jornalista, acompanho o teu trabalho há muito tempo, talvez mais de duas décadas. Imagino que você tenha tido inúmeras ideias de livro ao longo da tua carreira. O que te fez decidir por começar contando essa história do Terra Trio?
A história do Terra Trio entrou na minha vida por um convite do Marcelo Fróes, sócio da editora Sonora, e do Michel Jamel, que chegaram até mim por uma indicação da Chris Fuscaldo, da editora Garota FM. E a história do Terra Trio é importantíssima, contar a história deles é uma questão de justiça. Eles tocaram com gente como a Maria Bethânia, a Nara Leão, a Marisa Gata Mansa, em uma época de grandes shows com estrutura de musical. É uma estética que se vê em muitos shows de artistas pop lá de fora: não há um roteiro escrito, mas um show que conta uma história com começo, meio e fim. Foi uma estética que perdurou na música brasileira por muitos anos, como eram shows da Bethânia naquela época, como o “Rosa dos Ventos” e o “A Cena Muda”. Eram criações de gente como Fauzi Arap e Hermínio Bello de Carvalho, que traziam influência do cinema e do teatro e faziam discursos em formas de show – na época da ditadura, em que não se podia discursar livremente, muita coisa passava pela música, pelas letras, por escolhas do cenário. O Terra Trio foi muito ativo nessa época, ajudando a criar essa estética, um misto entre o que era teatral e o que não era, era um híbrido – algo que a Bethânia faz até hoje, mas que foi uma estética que vigorou aqui no Brasil, do show dirigido, em formato de temporadas.
Era um formato que a Elis Regina também usou muito, né? “Falso Brilhante” e “Transversal do Tempo” são dois casos bem explícitos disso…
Exatamente. O que eu vejo é que quando a música brasileira foi se tornando mais pop, essa lógica. foi se perdendo. Se você pensar na Rita Lee, até na Marisa Monte ou na Paula Toller, o lado pop foi pedindo uma certa urgência na forma de fazer show, já havia necessidade de outro tipo de linguagem. Não havia mais censura, o público era outro, os hábitos foram modificados. Mas, voltando para o Terra Trio, é importante falar deles porque eles são muito pouco comentados. Na maioria dos livros sobre música brasileira, eles são no máximo mencionados. Tem pouquíssimas entrevistas com eles em livros. Por outro lado, há essa sorte que poucas bandas têm de estar todo mundo vivo e lúcido, então dá para juntar todo mundo para bater um papo. Como definiu um amigo meu, é que nem contar a história do Gato de Botas e ele estar no livro para dar um depoimento. No livro, eles contam a história deles, sendo que estão em atividade até hoje – o Zé Maria toca na noite, o Fernando dá aula, o Ricardo é baterista do Paulinho da Viola. E eles têm uma vivência muito rica, que não é só a do músico criador, mas também a de operários da música, tocando com todo mundo. É algo na batuta do jazz: tem até um trecho do livro que eles falam que erram juntos. Se alguém acertasse, o resto da banda ia errar, então todo mundo errava junto pra não ficar diferente, eles entendiam um ao outro na respiração. Eu tenho outros projetos de livros, talvez algumas coisas de ficção – tem muita coisa guardada que eu nunca lancei. Também tem o “Heróis da Guitarra Brasileira”, que eu fiz com o Leandro Souto Maior, mas esse livro pintou pra mim e foi um presente. Era uma história que precisava ser contada e felizmente, eu pude contar.
De um lado, você tinha poucos registros sobre a banda. Do outro, eles estão vivos e lúcidos, contando as histórias, mas muitos fatos com um verniz de memória de 40 ou 50 anos passados. Como foi o seu processo de apuração e checagem pro livro?
Tem muitos registros de época sobre o Terra Trio, o que não tem é muita coisa em livro. Eu tive acesso a um material fenomenal que a mãe do Trio, a dona Emília, tinha na casa dela. É um álbum cheio de recortes de jornal, resenhas, entrevistas, anúncios de show, entrevistas com os artistas com quem eles tocavam. Nos anos 1960 e 1970, eles eram muito procurados pra falar da Bethânia e da Nara Leão. Na época, havia uma firma que se podia contratar, o Jornal de Recortes, que fazia uma espécie de clipping. A dona Emília, uma gênia, contratou essa firma para recortar tudo que saía sobre eles. E esse material ficou todo guardado num álbum de recortes lá em Ipanema. Eu até perguntei para o Zé Maria como é que isso tinha sido conservado, porque Ipanema tem maresia, tudo corrói… e ele falou que era guardado do jeito mais esculhambado o possível, mas milagrosamente o material tá ótimo. Nem tem marca de dedo, mas é milagre. Tá tudo muito bem conservado.
Que maravilha isso! Eu imagino que você tenha horas de entrevistas com o trio, mas com quem mais você conversou? Tem alguma história boa de entrevista?
Eu queria muito ter conversado com o Chico Buarque e com o Caetano, mas não deu tempo – eram entrevistas que iam atrasar o processo todo. Mas falei com a Célia Vaz, que teve banda com os irmãos, falei com a Sueli Costa, com o Martinho da Vila, e consegui falar com a Bethânia rapidamente. Foi uma conversa muito adiada, e que eu queria que rolasse pessoalmente, mas foi por telefone. Lembro que no dia do papo com ela eu nem sabia direito a hora, só sabia que iam me ligar num número tal – precisei pegar folga no jornal que eu trabalhava e fiquei em casa o dia todo, mas foi um papo bem elucidativo. A Maria Bethânia é a voz mais bela que eu já ouvi num telefone. Ela fez esclarecimentos bem importantes, mostrou muito carinho por eles. Além disso, eu falei horas e horas com o Hermínio Bello de Carvalho na casa dele em Botafogo e foi um papo emocionante. Para quem for pesquisar sobre música brasileira, dá um jeito de falar com ele. Ele é um cara humilde, tranquilo, que fala muita coisa e tem muita história para contar, além de muito material. Ele vai falar horas de causos engraçados, coisas que ele lembra, coisas que ele viu, histórias de amigos, tudo de uma maneira muito cordial, muito carinhosa mesmo. Eu passei uma tarde na casa dele e saí de lá achando que não era mais a mesma pessoa.
A indústria da música no Brasil trata muito mal quem está nos bastidores, nas letras miúdas das fichas técnicas. Dá para fazer uma coleção de livros só sobre os grupos de apoio, né?
Acho que dá, e acho que isso é fazer justiça. A ficha técnica hoje está sumindo, no streaming nem tem espaço, mas as pessoas precisam de créditos. Cabe ao músico apresentar todo mundo, porque as poucas rádios que ainda mostram novidades também não falam, é bem complicado mesmo. A história dessa turma tem que ser contada porque eles fizeram muita coisa que os cantores não poderiam ter feito sozinhos. A Bethânia tem uma baita voz, mas ela chegou aonde chegou sendo ajudada por muitos músicos. Depois de determinado momento, existia o cantautor, o cara que se segura na voz e violão, mas mesmo essa turma não é independente [dos músicos]. Mas [cantoras como] a Bethânia, a Gal, a Elis, elas viviam sob o signo dos grandes espetáculos, de [ter o apoio de] uma puta banda. E eu fiquei impressionado, por exemplo, com a relação do Terra Trio com a história da tecnologia de show no Brasil, do jeito de microfonar ou usar luz. A ideia original do Fauzi Arap no primeiro show do Terra Trio com a Bethânia é que nem tivesse microfone. Ele vem de uma formação teatral e achava que o som se seguraria só com a acústica do teatro, e eles falaram que não ia dar. Por outro lado, o Hermínio Bello de Carvalho contou que o Fauzi colocou poucas luzes, mas o pouco que ele colocou parecia que eram 200 luzes. Ele sabia como iluminar bem o espaço com pouca coisa. São lições de como se virar, evitar problemas com equipamento que não era bom, histórias que servem de lição para jovens produtores, para quem tá começando a tocar e produzir. É importante que isso seja contado, porque é também memória de tecnologia.
Em tempos que a gente vive hoje, em que há tecnologia mas não há muitos recursos, a quantidade de artistas independentes que podem aprender com essas lições é enorme…
Exatamente. Naquela época, o pessoal se virava com o que podia, os músicos mesmos batiam na porta das empresas para pedir patrocínio: eles montavam guarda e não queriam nem saber, ficavam de guarda ou ligavam o dia todo. Naqueles tempos do Beco das Garrafas, onde se formaram os músicos de jazz e bossa do Brasil, se fazia cenário de show com copo de plástico – e aquilo virava um monstro. Essa noção de “viração” é muito importante para todo mundo.]
Apesar de ter sido lançado em 2023, o livro do Terra Trio não foi escrito agora, mas sim antes da pandemia. Como foi esse caminho tortuoso até o lançamento?
Pois é, a pandemia foi um negócio, nem tem nem o que falar. O livro acabou atrasando: ele foi feito entre 2017 e 2018, era para ter sido algo rápido. Lembro que fiz a apuração toda e escrevi em um período de meses, o lance de procurar a Bethãnia para conversar também acabou atrasando um pouco as coisas. No meio do processo, minha mãe morreu, e eu pedi um tempo para a editora. Não dava para eu escrever um livro que tinha uma mãe como personagem principal nesse momento, não dava. O livro foi inclusive dedicado a ela, mas eu precisei de um tempo. E é curioso: eu estava na metade da escrita do livro e me dei conta de que não conhecia o rosto da dona Emília, comentei isso com eles inclusive. Eles quiseram me mandar uma foto e eu disse que não queria – preferia passar o livro inteiro imaginando o rosto dela. Tentei na minha mente juntar o rosto dos três, imaginei ela loira, com traços específicos. No fim das contas, eu vi uma foto dela, é uma mistura deles, mas não é nada do que eu imaginava. Já o pai deles é muito parecido com o Fernando, mas o rosto da dona Emília é uma mistura. Enfim, voltando ao livro em si: os atrasos acontecem, teve a pandemia, todo mundo viu o que o governo Bolsonaro foi para a cultura – estamos pagando a conta e ainda vamos pagar por um tempo. Por outro lado, acho que o livro saiu na hora certa, num momento que as pessoas estão querendo ler muito sobre música brasileira, recentemente saiu muita coisa sobre MPB em livro. O livro do Terra Trio vem para somar, e vai se encaixar numa biblioteca em que a pessoa também pode pegar o livro do Renato Vieira sobre o Manoel Bareinbein ou o livro da Chris Fuscaldo sobre o Belchior, são histórias que se cruzam, uma coisa complementa a outra. O livro saiu numa hora muito certa.
Você tem outros projetos de livro?
Tenho, mas não sobre música brasileira. Tenho o projeto de um livro sobre o Pop Fantasma, uma coletânea do site. Não sei quando vai sair isso. Também tenho vontade de escrever um livro para jornalistas falando sobre a minha experiência ao criar o site. Não acho que o Pop Fantasma seja um case de sucesso, acho que é um site guerreiro, que não tem tantas visitas quanto deveria ter. Tudo que eu faço ali é na base do “pô, gostei, vou fazer” – o que faz com que num momento eu fale de reality shows ou novela e no outro momento sobre bandas que ninguém conhece. De repente, escrever alguma coisa falando sobre o processo de criar o site, sobre podcasts… eu queria muito inclusive ser chamado para falar sobre podcasts, que é a experiência de fazer o Pop Fantasma Documento é muito enriquecedora. Fazer roteiro para ser lido em rádio, saber o que falar para o outro te ouvir, isso é maravilhoso.
Vamos falar um pouco mais sobre o podcast, que tem uma escolha curiosa: ele não fala de discos, mas de fases dos artistas. Como é isso?
É um conceito que o pessoal do universo de roteiro fala muito: são fatias de vida. Então, enquanto estou fazendo roteiro de podcast, penso numa fatia de vida do personagem. Estou olhando aqui para os Titãs, vai ter um podcast sobre os Titãs nos anos 1990. Mais especificamente, sobre como era a vida dos Titãs nessa época, sendo uma banda pop e fazendo um som pesado, num período que o rock brasileiro não tinha acontecido direito? O rock brasileiro dos anos 1990 só vai acontecer com os Raimundos, em 1994, que foi a banda que fez todo mundo perceber que ainda tinha rock sendo feito no Brasil. No caso dos Titãs, já entrevistei eles muitas vezes, então tem essa riqueza. Fiz agora, na última temporada, alguns episódios do podcast sobre bandas que acho boas pra caramba, mas que ninguém ouviu falar direito, ou ninguém liga, como o Japan. Era uma banda muito mal amada na época deles, todo mundo achava a cara do Roxy Music, o David Sylvian ficava puto. É uma banda tida como imitação, mas que eu vejo como uma banda super original. E é engraçado, porque o Sylvian queria criar uma coisa super nova, mas não dava certo e ele não entendia porque não dava certo. Nossa vida é assim: no dia a dia a gente fica tentando fazer uma coisa diferente e vendo que não deu certo. Muito tempo depois você entende porque não deu certo, é preciso dar valor pra isso. Aí você aprende e faz o que dá certo, vai fazer bem, é um aprendizado para todo mundo. Tem muito isso na história das bandas, como Japan, Ultravox, Depeche Mode… não é todo mundo que dá certo de pronto, como o Led Zeppelin. Eu fiz um episódio sobre o Led Zeppelin em 1972, inclusive: é um ano engraçado, porque o Led não lançou disco, mas foi um ano definitivo para eles. Eles mudaram toda a escrita da história de shows com royalties altíssimos que o Peter Grant, empresário deles, passou a pedir. As pessoas iam pagar porque era o Led Zeppelin. Os Rolling Stones tinham tentado fazer isso antes e não tinha dado certo, mas com o Led Zeppelin deu, porque todo mundo queria ouvir e era uma banda que quase não dava show, não dava entrevista, não aparecia na TV. Foi um ano bem importante, e olha que quase saiu o “Houses of the Holy”, só não saiu porque teve problema com a capa. A capa era para ter sido uma raquete, mas o Jimmy Page não gostou, criou encrenca com o Storm Thorgerson, da Hipgnosis, que era a empresa que fazia todas as capas da época. Enfim, para mim tem sido uma descoberta muito grande poder mostrar fases da vida dessa turma para todo mundo. Esse ano deve ter mais hip hop no podcast, uma coisa que muita gente sente falta, deve ter mais música brasileira, talvez Caetano ou Gal, quem sabe.
Além do Pop Fantasma e do podcast, o que mais Ricardo Schott tem feito? Como está a vida?
A vida está bem braba, cara. Eu estou sempre procurando coisas para fazer, vida de jornalista. Sempre procurando frilas. O podcast tem um crowdfunding, e eu acho que as pessoas que apoiam o crowdfunding se sentem meio abandonadas. Eu entendo – e se o cara quiser ficar um pouquinho e sair, eu não julgo. Porque não tenho tempo de oferecer mais coisa, esse ano vão ter mudanças, vou repensar isso ainda. Estava fazendo um podcast exclusivo para quem apoia, mas vou repensar: esse ano, felizmente tive muita coisa para fazer, e acabei não podendo fazer o podcast com a atenção que eu deveria. Esse ano deve voltar, mas não deve ser semanal, estou pensando nessas novidades. Eu poderia fazer um podcast mensal, mas não quero, quero fazer semanal. Com apoio de quem ouve fica mais fácil.
E o arquivo do Discoteca Básica, hein?
Vou te falar que o arquivo do Discoteca Básica eu nem sei onde está, deve ter uns CD-ROMs guardados aqui em casa. Vou te dizer que, da última vez que olhei esses textos, achei que daria para aproveitar muita coisa. Mas vou te falar que também tem muita coisa ali que eu mudaria, reescreveria… tem muita coisa que eu escrevi com os preconceitos e o machismo que eu tinha naquela época. Valeria a pena revisitar, desde que eu modificasse, desde que eu pudesse editar, de mudar o que poderia ser engraçado em 2002 e não é mais em 2023. Tem muita coisa que leio hoje que eu não escreveria mais. Hoje, tenho um nível de preocupação diferente com o leitor, de que ele leia algo que tenha informação, emoção e que ele possa levar algo para a vida dele. Tanto que tem uma área que eu trato com muito cuidado no podcast, que eu chamo de Conselhos do He-Man, como os conselhos do final do desenho. Por exemplo, no episódio do Velvet Underground, eu lembro que quem quiser ter uma banda como o Velvet tem que lembrar que o Lou Reed era maluco, um líder narcisista, tem que tomar cuidado com certas coisas. Por outro lado, acho que essa tensão de ter muita briga, choque de ego, uma despirocada ou outra, isso faz parte de qualquer processo de criação. O Iggy Pop é quem ele é hoje porque ele era doidão, claro. Mas é importante prestar atenção, então tento meio que mostrar algo que qualquer um possa levar para sua vida. Quando eu tava fazendo o podcast do Júpiter Maçã, fiquei impressionado: ele não estava nem aí para nada, não ligava para o que pensavam dele. Estava lendo o livro do Cristiano Bastos, vendo entrevistas antigas, e ele fazia o que ele queria, era aquela coisa da alma pura mesmo, sabe? Isso às vezes trazia problemas para ele, como quando ele decidiu do nada ser Júpiter Apple e fazer “space bossa nova”, os músicos ficaram putos e reclamaram, aí ele decidiu largar todo mundo e ficar sozinho. É o que eu costumo falar: quando você admira um artista, é importante hackear algumas coisas da vida dele para você, entender como ele produziu, como ele encarava a arte dele. Sempre tem algo que você pode aprender, mesmo que você não seja músico.
O Discoteca Básica foi importantíssimo demais na minha formação, seja com coisas mais obscuras, como Antonio Adolfo, ou Guilherme Lamounier…
O Guilherme Lamounier foi uma descoberta incrível, fico feliz que tem muita gente que descobriu esse disco comigo. O Lamounier é um cara que precisa ser muito reverenciado. Eu sou amigo da Márcia Weber, a viúva dele, e sei que o final da vida dele foi de dificuldades. Nunca cheguei a me aproximar dele, mantive distância, ele também era um cara que não queria aparecer muito. Tem gente até que me pergunta se eu conversei com ele, ele já mandou recados para mim agradecendo textos, mandou CD autografado uma vez, mas nunca cheguei a ter contato. Com certas pessoas, fico feliz em manter uma distância respeitosa. Não tenho nada contra elas, mas acho que é uma questão da imagem na cabeça, de se aproximar no máximo num nível muito profissional. Recentemente eu falei do Celso Zambel, um músico paulistano que gravou um único disco pela Som Livre em 1979, o disco é um ovni, uma mistura de Arnaldo Baptista e Lou Reed, só ele e o André Geraissati tocando. O Celso virou meu amigo, a gente se fala sempre, mas o Celso é um cara muito tranquilo, me senti seguro em me aproximar dele. Mas ele é uma exceção, de modo geral, sou um cara tímido, é difícil me aproximar tanto de alguém.
É aquela distância do jornalista, né?
Tem isso também. É bom você guardar um pouco… também depende muito, né? Eu estava conversando com uma amiga minha sobre esses podcasts que tem hoje, de cinco, seis horas, tem meio essa coisa de você criar um clima para que o entrevistado fale coisas pra você que não falaria para a mãe dele. Eu já tive isso em alguns momentos de entrevistas, de repente estou conversando com um cara que eu crio um clima tão bom e ele conta algo que ele nunca contou, isso vira um furo.
Animal. Mas é isso, o Discoteca Básica foi muito importante pra mim. Acho que eu ouvi o “London Calling” pela primeira vez por causa de um texto teu.
Que legal isso. É bem foda você falar dele porque o “London Calling” para mim é um manual. Ele e o “Dark Side of the Moon” são discos como manuais, de música brasileira muitos discos do Gilberto Gil, do Caetano, do Raul e da Rita Lee tem esse papel. Eu ouvi o “London Calling” quando tinha 12 anos de idade e eu não sabia uma palavra de inglês. Com o tempo, adquiri conhecimento e fui entendendo as letras, fui percebendo o quanto esse disco é político, que é algo que você pode ouvir em qualquer fase da sua vida e aquilo vai bater em você, vai falar com as suas inseguranças, os problemas que você tem naquele momento. O “Hunky Dory”, do David Bowie, o “Ziggy Stardust”, também são dois manuais pra mim – e dois discos que eu ouvi sem entender inglês. Quando aprendi a língua e fui ouvir de novo, percebi que tinha entendido tudo do “Ziggy Stardust”. Sabe? É engraçado: eu não sabia o que aquilo queria dizer mas tinha entendido direitinho.
Schott, pra gente fechar: cinco discos para a ilha deserta?
Essa pergunta é complicada porque os meus discos sempre mudam! Cara, eu tô muito viciado no disco que a Demi Lovato lançou no ano passado, o “Holy Fvck”. Acho que é uma coisa que ninguém imaginaria que eu escutaria, algo tão pop. Pois é, mas eu tô ouvindo para caramba esse disco. Eu tenho um gosto musical que pega coisas pop. Se eu fosse pensar no meu passado, eu teria que levar o “Ziggy Stardust”. Outro é de uma banda que nem é das minhas preferidas, acho que eles tem várias canções que são espaço desperdiçado, mas eu levaria com certeza pra ilha deserta o “Country Life”, do Roxy Music, é um disco perfeito. Tô escutando bastante o primeiro disco solo do Tom Verlaine, que é um disco incrível, acho que chama só “Tom Verlaine”, eu já vinha ouvindo bastante antes dele morrer. E pra fechar, eu voltei a ouvir recentemente o “Dark Side of the Moon”… o Pink Floyd é muito louco. Eu queria muito ser o Pink Floyd! É sério: não importa o que aconteça, não importa o ano, acho que daqui a cem anos alguém vai falar do Pink Floyd – e eles vão dar um jeito de voltar e estar por ali. Fico impressionado com essa banda: é um projeto que os caras não se expõem tanto, davam entrevista quando queriam, e ao mesmo tempo, é uma coisa cabeçuda mas vende disco pra caramba. Eles conseguiram pegar na veia das pessoas que poucos artistas conseguiram. É uma magia, eu queria ser o Pink Floyd.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Baita entrevista, o pop fantasma é minha leitura diária!!!
A nossa também 🙂
Sou suspeito pra falar. Foi uma boa e didática entrevista. Bem conduzida e muito bem respondida. Entrevistador e entrevistado estão de parabéns.