texto de Marco Antonio Barbosa
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3
Com o perdão do clichê, o jazz está no DNA do C6 Fest. Ainda que, com o passar dos anos, o gene do estilo tenha se tornado cada vez menos dominante. A encarnação original do evento trazia “Jazz” no nome, colado a uma marca de cigarro; o TIM Festival manteve palcos dedicados ao gênero em todas as suas edições. A atual versão do festival dedicou sua segunda noite no Vivo Rio, na sexta-feira (19/05), ao jazz… ou quase. Entre ortodoxias, fusões e irreverências, salvaram-se todos.
A abertura coube à dupla DOMi & JD BACK. Chegam ao Brasil com o referendo de nomes como Herbie Hancock e Thundercat, que participaram de seu primeiro álbum – “Not Tight”, que alcançou o 1º lugar na parada de jazz contemporâneo da Billboard no ano passado. O som é sem dúvida jazz, e sem dúvida contemporâneo. Prodígios revelados por meio de vídeos no YouTube, DOMi (tecladista, francesa, enormes cabelos louros, usa palavrões como vírgulas) e JD (baterista, americano, cabeleira desgrenhada) têm respectivamente 23 e 20 anos, mas parecem ainda mais jovens. Vê-los desdobrando-se sobre composições de estruturas complexas e velozes improvisações é um espetáculo desconcertante.
O duo aplica um intenso virtuosismo para reinterpretar os chavões do jazz fusion setentista. Por vezes, a simbiose entre os dois parece a ponto de desmoronar. O baterista ultraveloz e EXTREMAMENTE técnico parece desafiar a parceira a acompanhar seus tempos mutantes; ela responde soltando complicadas linhas de synth bass (com a mão esquerda) e usando toda a extensão do teclado do piano elétrico (com a direita). Mas o “enfrentamento” dos dois é sempre lúdico, sem agressividade gratuita.
Além do repertório de “Not Tight”, que inclui músicas com vocal (“Odiamos cantar, mas na porra do disco nós cantamos – então vamos cantar”, anuncia Domi antes de “TWO SHRiMPS”), a dupla repassa covers de Wayne Shorter (“Endangered Species”) e do Weather Report (“Havona”). Os muitos fãs de jazz na plateia – reconhecíveis pelos cabelos grisalhos e os pulôveres atirados sobre os ombros – bateram cabeça de leve, em aprovação.
No show seguinte, retornamos a um território bem mais familiar, guiados por Samara Joy. Sim, a cantora americana que provocou a ira dos fãs de Anitta ao derrotar a popstar no Grammy de artista revelação, em fevereiro último. Samara tem a mesma idade de DOMi, mas parece ter o dobro… no melhor dos sentidos. Ela faz jazz adulto e classudo, sem espaço para fusões ou pirotecnias. Canta muito bem, evocando antecessoras como Ella Fitzgerald ou Sarah Vaughan; sua vasta amplitude vocal é temperada por claras influências de canto lírico e gospel. Acompanhada de um trio clássico (baixo acústico, piano e bateria), ela entrega exatamente o que o público mais conservador espera.
No repertório, previsíveis concessões à música brasileira, “Chega de Saudade” e “Flor de Lis”, cantadas em português quase perfeito e standards, bases perfeitas para a cantora esbanjar capacidade vocal e afinação. Neste quesito, os pontos altos foram a recriação de “Stardust”, com vertiginosas subidas e descidas de tom, e a longa intro à capela para “Worry Later” (Thelonious Monk). Mas o melhor mesmo foi o medley entre “Guess Who I Saw Today” (June Carroll) e “Lately” (Stevie Wonder), no qual Samara demonstra sua capacidade de imprimir ironia e dramaticidade à interpretação.
Para fechar a noite, a exuberância de Jon Batiste. O cara é um daqueles artistas aos quais o termo “fenômeno” pode ser aplicado sem restrições. Encaixada na noite jazzística do C6, sua música vai além e incorpora funk, blues, latinidade, influências afro e r’n’b clássico. Ele dança, canta pra cacete, toca guitarra e piano e lidera uma banda gigante na base da telepatia. Sempre sorrindo, brações musculosos à mostra, provoca suspiros no público feminino… e no masculino também. Se não fosse heresia, a única comparação possível seria com Prince.
O show é uma colagem non-stop de canções que parecem jam sessions e jam em formato de canção, com breves pausas dramáticas. Em meio ao saladão polirrítmico, há espaço para JB mandar longos e virtuosísticos improvisos ao piano, ou citar “Minnie the Moocher” brevemente. “De onde venho, as pessoas não ficam paradas quando toco esse som!”, ralha ele com a plateia, em tom de galhofa. Definitivamente hipnotizante.
No bis, o que deveria ser um momento de celebração e homenagem à música brasileira acaba se tornando quase um anticlímax. Jon Batiste convoca Dona Lia de Itamaracá para o palco, e conduz a banda em uma extensa jam cirandeira. Terminam todos descendo para a plateia, o bandleader se converte em coadjuvante, se virando na escaleta para acompanhar o ritmo pernambucano. Legal, todo mundo aplaudiu, mas talvez – apenas TALVEZ – tenha sido um pouco longo demais. Se não fosse heresia dizer isso.
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br).