texto de Marco Antonio Barbosa
Saiba como foi o Dia 2 e o Dia 3
Emparelhados na noite de abertura do C6 Fest, no Vivo Rio (RJ), Kraftwerk e Underworld ofereceram na noite de quinta-feira (18/05) um curso-relâmpago na História da Música Eletrônica (tudo com maiúscula mesmo). O par de shows também demonstrou a diferença entre o atemporal e o clássico; entre uma proposta estética que já nasceu definitiva e transcende o momento de sua criação, e outra que retrata à perfeição a época de sua gestação e hoje é uma referência histórica.
O Kraftwerk, claro, tem uma ligação com as encarnações anteriores do C6. Foi ali, naquele mesmo espaço no Rio de Janeiro (antes da construção do Vivo Rio), que o grupo alemão se apresentou pela primeira vez na capital fluminense: uma memorável noite no Free Jazz de 1998, fechada pelo Massive Attack. Em 2023, apenas com Ralf Hutter como membro original, o quarteto fez o mesmo show de 25 anos atrás – da mesma forma que, quando visitamos o Museu do Louvre, vemos “a mesma” Mona Lisa pintada no século 15.
Pensando bem, não foi exatamente o MESMO show. Acompanhado por Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen, Hutter repassou quase todos os sucessos indispensáveis da história do grupo, mas também tomou algumas liberdades. As performances dos clássicos dos anos 1970 e 1980 foram baseadas nas versões do álbum ao vivo “Minimum-Maximum”, de 2004, com sutis (e às vezes nem tão sutis) variações em relação às gravações originais.
Exemplos foram os “scratches” sintetizados inseridos pelo próprio Hutter em “Autobahn”; os breaks pesados, quase industriais na seção instrumental de “Trans-Europe Express”; e a adrenalina electro-funk imprimida em “The Robots”. Já “The Model” veio igualzinha à versão de estúdio; talvez por isso tenha sido, de longe, a mais aplaudida pelo público.
(Público, aliás, que não chegou a lotar o Vivo Rio. A capacidade da casa, 4 mil pessoas, parece grande demais para comportar todos os cariocas interessados num evento como o C6 Fest. Depois as pessoas reclamam que “tudo só acontece em São Paulo”.)
Para os fãs incuráveis, o Kraftwerk ainda ofereceu as menos manjadas “Spacelab” (colada na dobradinha “Computer World/Numbers”) e “Planet of Visions”, além da suíte “Tour de France”, que juntou trechos da versão original de 1983 com os remixes/rearranjos do álbum homônimo de 2003. O encerramento, com a inevitável “Boing Boom Tschak / Music Non Stop”, teve espaço para cada um dos integrantes fazer solinhos improvisados em seus consoles (sim, aparentemente eles não ficam apenas lendo e-mails no palco). Tudo acompanhado daqueles vídeos incríveis nos telões, visuais simultaneamente retrôs e futuristas que ilustram a proposta de simbiose homem-máquina, o coração do conceito criado por Hutter e Florian Schneider (1947-2020).
Apesar da imanência eterna de sua música, assistir ao Kraftwerk ao vivo em 2023 traz nostalgia de uma época mais esperançosa: um tempo em que podíamos ter fé na tecnologia. Os robôs seriam nossos amigos; o amor seria computadorizado; a autoestrada sem limite de velocidade era sinônimo de progresso. Em tempos de NFTs, balbúrdia nas mídias sociais e corporações big tech observando cada pensamento, a utopia eletrônica dos alemães hoje parece uma realidade alternativa mais saudável.
Se o Kraftwerk faz o tempo parecer irrelevante, o Underworld é uma relíquia datada, mas no melhor dos sentidos. Karl Hyde e Rick Smith são símbolos daquela fase na qual era possível imaginar uma música eletrônica mais humanizada, com o punch do rock’n’roll. Cês lembram? Chemical Brothers, Fatboy Slim, Prodigy… esse sonho degenerou no populismo da EDM e na farofada dos superDJs, mas essa conversa fica para outra hora.
O que importa: a energia do duo ainda é a mesma dos anos 1990, cristalizada na performance de Hyde. Aos 66 anos, o cara canta de verdade – nada de playback – e dança pra caramba, tornando o show uma experiência eletrizante. O velho dilema da eletrônica ao vivo se resolve bem: afinal, é pra gente dançar ou pra olhar pro palco? Com o Underworld, tanto faz.
Apesar de não terem tocado o hit “Pearls Girl”, houve pouco a reparar no repertório, apresentado numa longa sequência sem pausas. A versão 2022 de “Juanita” abriu o set, que progrediu num pique só por “Push Upstairs”, uma delirante “King of Snakes” e pela hipnose mântrica de “Rez/Cowgirl”. Encerram com “Born Slippy”, como não poderia deixar de ser. A plateia, majoritariamente quarentona/cinquentona, dançava em abandono – transformando o baile da saudade em uma rave instantânea. Mas sem aditivos químicos: ainda era noite de quinta-feira e todo mundo precisava acordar cedo no dia seguinte.
Saiba como foi o Dia 2 e o Dia 3
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br).
O show teve bastante público, ainda mais para um dia de quinta e na circunstância econômica que nos encontramos. Ao criticar que o público da cidade não tem interesse nesse tipo de evento você esqueceu do valor altíssimo do ingresso. Eu só pude ir pois abriram a opção de meia-solidária. Tive dois amigos, um deles super fã do Kraftwerk, que não foram por questões financeiras. Sem contar que SP tem o dobro da população do Rio, que carece de bons produtores de eventos.