entrevista por Leonardo Tissot
A história é um tanto confusa, mas, dependendo de quem conta, pode-se considerar 2023 como o ano do primeiro centenário da guitarra elétrica. E se do protótipo criado por Lloyd Loar em 1923 surgiu um instrumento que encantou multidões mundo afora, também é verdade que encontrar um guitarrista verdadeiramente original nos dias de hoje não é uma tarefa das mais fáceis.
Mdou Moctar é alguém que transforma essas certezas quanto à relevância atual do instrumento em dúvidas. Canhoto, autodidata e incrivelmente talentoso, o guitarrista de 38 anos nascido no Níger, um dos 10 países mais pobres do mundo segundo a ONU, precisou superar dificuldades não apenas financeiras, mas também culturais e familiares, para alavancar uma carreira que impressiona pelo brilho das apresentações ao vivo, pela qualidade das canções (e de álbuns como o mais recente lançado pelo músico, “Afrique Victime”, que entrou na lista dos melhores discos de 2021 do Scream & Yell) e pela encantadora simplicidade no trato com a imprensa.
No papo com Scream & Yell, Mdou fala sobre a expectativa de tocar no Brasil, a importância de o público se conectar com as letras que escreve, a tristeza pela perda da Copa de 98 pela seleção canarinho e porque não gosta de ser chamado de “Jimi Hendrix do deserto”.
Tenho acompanhado o Instagram de vocês e visto que fizeram shows recentemente na Austrália e Estados Unidos. Semana que vem vocês tocam em Londres e depois vêm pro Brasil. Como tem sido essa experiência de tocar em tantos lugares diferentes?
É muito diferente do nosso país. Na minha cidade, tocávamos em casamentos, e aqui tocamos em grandes shows. É muito diferente, mas muito bom. Só temos um problema, que são as dificuldades impostas às pessoas da África para viajarem. O mundo está ficando doido. Temos muitas dificuldades com os vistos. Sendo africanos, gastamos muito dinheiro para podermos entrar em outros países.
Quais suas expectativas para o show em São Paulo?
Só preciso que as pessoas transmitam sua energia, isso me deixa feliz. Ver as pessoas aplaudindo e curtindo o show. Entregarei a mesma energia que receber do público de volta para eles. É o mais importante para mim.
Gostaria de fazer alguma outra coisa aqui no Brasil além do show? Assistir a uma partida de futebol, quem sabe?
Sim, gosto de futebol. Torcia pelo Brasil quando eu era mais jovem. Adorava o Ronaldo Fenômeno. A última vez que torci pelo Brasil foi na Copa de 1998, quando o Brasil enfrentou a França na final. Era Ronaldo contra Zidane. Depois disso, nunca mais assisti à Copa.
Por que não?
Torci muito pelo Brasil, mas depois que o time perdeu aquela Copa, nunca mais consegui acompanhar. Gostava muito do Ronaldo e fiquei triste quando ele perdeu. Eu tinha 14 anos na época.
Ouvi uma entrevista sua em um programa de rádio nos Estados Unidos na qual você falava que tocar guitarra no Níger está se tornando algo parecido com o futebol no Brasil, todas as crianças querem aprender. Pode falar um pouco mais sobre esse fenômeno?
Nunca estive no Brasil, mas já vi na TV que o futebol é muito popular aí. Então sinto que a nova geração do Níger gosta muito de música. Com o avanço da tecnologia, agora o acesso a instrumentos está mais fácil do que era há alguns anos. Levamos encordoamentos de guitarra para eles. A nova geração do Níger é muito talentosa. Algo muito bom está por vir.
Você já foi chamado pela imprensa ocidental de “o Jimi Hendrix do deserto”, mas tenho certeza que você também tem muita influência da música Tuareg. Pode falar um pouco mais a respeito de artistas locais que o influenciaram? Qual o primeiro músico que fez com que você se interessasse em tocar?
É sempre assim. Ali Farka Touré é o Hendrix do deserto, seu filho Vieux Farka Touré é o Hendrix do deserto, Bombino é o Hendrix do deserto, Mdou Moctar é o Hendrix do deserto… Não podemos todos ser o Jimi Hendrix do deserto. Acho ele muito talentoso, adoro a música dele, mas sou Mdou Moctar. O primeiro show que vi foi de um músico local, um guitarrista chamado Abdallah. Foi incrível ver como ele tocava e pensei: “preciso ser como ele”. O povo estava feliz, batendo palmas, dançando. Então decidi que eu precisava ser como ele, fazer as pessoas felizes. Mas tive dificuldades porque sou canhoto. E, na época, até mesmo uma guitarra para destro era difícil de se conseguir no Níger. Então, até eu ter acesso a um instrumento para canhotos, levou um tempo.
Pois é, é bem documentado que você aprendeu a tocar sozinho e até mesmo construiu sua primeira guitarra. Pode contar um pouco mais sobre como você começou na música?
É uma longa história, vou tentar resumir. Nunca tive ninguém para me ensinar a tocar. Na minha família ninguém me ajudou, eles só queriam que eu fosse bem na escola. Comecei a economizar o dinheiro que recebia para comer na escola. Às vezes, apenas comia em casa e guardava o dinheiro para a guitarra. Usei materiais como cabos de freios de bicicleta para fazer as cordas e alguns outros materiais que tinha à disposição para o corpo da guitarra. Foi bem difícil na época.
Hoje em dia, quando você pega uma Fender, é fichinha então…
[Risos] Sim, hoje é bem mais fácil.
Você é muito admirado como guitarrista, mas também canta e escreve letras que são bastante políticas. O quão importante é para você que as pessoas compreendam a mensagem que você está passando?
Isso para mim é o mais importante. Escrevo o que sinto, e muitas das letras refletem a realidade do que acontece na África. Muito crime, injustiça e outras loucuras que acontecem no continente. Quando vejo as pessoas dançando e batendo palmas, sinto que elas concordam com minhas ideias. Isso me deixa feliz. Espero que talvez algum dia as coisas possam mudar.
Vamos torcer para que isso aconteça. Você também se envolve em projetos que empoderam jovens músicos no Níger, especialmente mulheres. Pode falar mais sobre esses projetos?
Apenas tento ajudar jovens que, como eu, passaram por dificuldades. Sei o que eles sentem e tento ajudá-los. Doo encordoamentos de guitarra ou instrumentos para destros que recebo e não vou utilizar. Eles me perguntam sobre a carreira de músico e tento orientá-los. É algo que me deixa feliz.
Você também trabalha como ator e estrelou um filme que é um remake de “Purple Rain”, intitulado “Akounak Tedalat Taha Tazoughai” (em inglês, “Rain the Color of Blue with A Little Red In It”), em 2015. Como é a experiência de trabalhar com cinema? Tem planos para o futuro?
Adoro ser um artista, e sinto que ser um músico é como ser ator. Amo muito isso. O filme conta minha própria história. O “Purple Rain” original tem uma similaridade com a minha história, a família de Prince também não apoiava sua ideia de se tornar um artista. Atualmente estou escrevendo outro filme, mas ainda não terminei.
E podemos esperar por um novo disco também?
Sim, já está pronto. Estamos esperando o momento certo para lançar.
Ótimo. Quer deixar alguma mensagem para os fãs brasileiros que vão ao seu show?
Brasil, estamos chegando! Precisamos de uma boa energia de vocês para que o show seja bom também.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo!. A foto que abre o texto é de Nelson Antonio Espinal