texto por Marcos Bragatto
fotos de Daniel Croce
Já são mais de duas horas de uma apresentação daquelas em que todo mundo ali reunido conhece todas as músicas de cor e salteado, e canta verso por verso sem vacilar. Mesmo assim, algo parece faltar, a tal peça do quebra-cabeças tão perto e tão distante de ser achada. Isso porque o embalo do show em si deixa tudo meio enevoado, em um êxtase coletivo que desconecta o pensamento da emoção. É quando, súbito, tudo se resolve com uma notinha só, e o sprint final da agitação se impõe com um dos maiores hits de uma das maiores bandas do rock brasileiro em todas as épocas. É assim que o público se acaba de vez com “Bichos Escrotos”, no desfecho do show do Titãs, nesta sexta (28/4), em uma Jeunesse Arena lotada, no Rio.
É o segundo show da chamada “Titãs Encontro”, a turnê que reúne, pela primeira vez desde o final dos anos 1990, a possível formação clássica da banda, com o produtor e multi-instrumentista Liminha tocando guitarra no lugar de Marcelo Fromer, morto brutalmente em 2001. Ou seja, é possível ver de volta com os Titãs Arnaldo Antunes (vocais), Nando Reis (baixo e vocal), Paulo Miklos (sax e vocal) e até o batera Charles Gavin, fora da carreira de músico há tempos. Oportunidade rara para fãs das antigas, mas também para as gerações seguintes que não viram essa turma junta ao vivo. E estão todos lá, cantando sem parar. Não é mais o Titãs dos bons tempos, o que se percebe no andamento mais lento e certa falta de intensidade, sobretudo nas músicas mais pesadas e velozes, mas ainda assim são os Titãs reunidos, e as 2h20 com 31 músicas (30 delas gravadas no século passado) valem muito à pena.
Por isso quem espera pela nervosa abertura de roda punk em “Lugar Nenhum”, logo a segunda, ou na pedrada “Policia” (com Sergio Britto arrasando no gogó), tem que ficar com uns pulinhos a mais no meio do público, hoje de idade avançada como a dos membros da banda, e amaciada por dezenas de músicas lentas que o grupo passou a fazer para trilhas de novelas globais nas últimas décadas. Por isso e escolha do repertório, só da fase antiga dessa formação, com mais identificação com o rock e o pop de origem, ao menos em um primeiro momento, surte efeito. Nem mesmo o set acústico atrapalha, já que as cinco músicas escolhidas para a degola já não são grande coisa, como as babas “Epitáfio” e “Pra Dizer Adeus”, ou mesmo “Os Cegos do Castelo”, que estreou no primeiro disco do formato. Ou seja, não estragaram nenhuma música. E todo mundo cantou e foi lindo, claro.
O set acústico tem um dos momentos mais sensíveis da noite, com a filha de Fromer, Alice, cantando em “Toda Cor” e em “Não Vou Me Adaptar”. Escorada por Arnaldo, ela não tem carreira promissora como cantora, mas a participação realça pela representatividade do pai, cuja imagem exibida antes nos telões arrancou aplausos do público. O palco é do tamanho da importância e do interesse geral pela turnê – os ingressos evaporaram e datas extras surgiram -, com um telão gigante no fundo e dois de cada lado, cinco modernos octógonos de luz no teto e dois níveis de plataformas, sendo o mais alto sobre a bateria. É por ali que os oito músicos entram, em silhueta negra, e de onde o guitarrista Tony Bellotto dá a largada com o riff da sensacional “Diversão”, prenúncio de uma noite para se anotar no caderninho.
Com Liminha nas bases, Bellotto deita e rola nos solos e andamentos mais arrojados, fornecendo peso em dobro nas músicas da fase mais pesada; só do “Cabeça Dinossauro”, de 1986, são 10 faixas incluídas. Outros destaques instrumentais são o batera Charles Gavin, concentradíssimo na função, e Nando Reis, desfilando solos e estaladas no baixo, e não apenas nas músicas mais reggae/ska/pop em que ele canta. Antes de “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, Nando se diz assustado de como músicas tão antigas dos Titãs ainda soam atuais. Algumas sim, como “Homem Primata” e “Estado Violência”, por exemplo, mas muita coisa já mudou e já voltou pra trás de novo. Nessa seara, a banda deixa passar a chance de atualizar certas letras, era só incluir a burrice da internet em “Televisão” e – bola quicando – a Covid-19 em “O Pulso” – um certo ex-presidente negacionista, porém, foi incluso em “Nome aos Bois” (música de 1987 que compila facinoras como Pinochet, Hitler, Médice e Francisco Franco, entre outros).
O mais feliz de todos ali no palco é Branco Melo. Recuperado de cirurgias na garganta, tem agora uma voz esganiçada, mas canta (diferente, mas) bem mesmo assim. O hit “Flores”, com o saxofone de Paulo Miklos, é um dos grandes momentos da noite. Miklos vai bem como cantor solo e nos apoios, apesar de exibir uns quilinhos a mais que não comprometem. E a dancinha de Arnaldo, marca registrada dele nos Titãs, segue impagável. Com ele, “Comida”, “Miséria” e “Televisão” são outra conversa, mas que ficou faltando “O Que”, faltou. Detalhes que certamente não passaram pela cabeça de um refestelado público que viu a sequência em clímax até “Bichos Escrotos”, e um bis arrematado com “Sonífera Ilha”, em clima de irresistível ska/fanfarra de bloco de sujo. Ou seja, nem pense em deixar de ir nessa turnê.
Set list completo:
1- Diversão
2- Lugar Nenhum
3- Desordem
4- Tô cansado
5- Igreja
6- Homem Primata
7- Estado Violência
8- O Pulso
9- Comida
10- Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas
11- Nome aos Bois
12- Eu Não Sei Fazer Música
13- Cabeça Dinossauro
14- Epitáfio
15- Os Cegos do Castelo
16- Pra Dizer Adeus
17- Toda Cor
18- Não Vou Me Adaptar
19- Marvin
20- Go Back
21- É Preciso Saber Viver
22- 32 Dentes
23- Flores
24- Televisão
25- Porrada
26- Polícia
27- AA UU
28- Bichos Escrotos
Bis
29- Miséria
30- Família
31- Sonífera Ilha
– Marcos Bragatto é um dos jornalistas mais importantes a cobrir rock no país. Começou em 1993 e segue mantendo o barulho em alta em sua página, a Rock em Geral. As fotos são de Daniel Croce. Conheça mais sobre seu trabalho em www.instagram.com/toscroce