texto por Marcelo Costa
“The Revenant”, título original de “O regresso”, romance de Michael Punke que a Intrínseca publica agora no Brasil, diz respeito, segundo o dicionário Michaelis, “a uma pessoa que retorna após longa ausência” ou ainda “àquele que volta do túmulo, um espírito, um fantasma, uma aparição”. Na primeira edição do livro, lançada nos Estados Unidos em 2002, um subtítulo colocava um pouco mais de lenha na fogueira: “A Novel of Revenge”, um romance sobre vingança. Juntando os cacos espalhados até agora já é possível imaginar a trama que conduz a narrativa de “O regresso”, mas é importante observar que os fatos (verídicos) relatados no romance aconteceram nada menos que dois séculos atrás (193 anos para ser mais exato). Ainda que o sentimento que a palavra “vingança” evoca tenha permanecido imutável durante todos esses anos, o mundo mudou drasticamente — e o ambiente é um personagem coadjuvante de extremo valor nessa história.
Com isso em mente, o cineasta Alejandro González Iñárritu e o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki — responsável pelas imagens dos filmes “Árvore da Vida” (2011), “Gravidade” (2013) e “Birdman” (2014), entre outros — capricharam na estética do “personagem coadjuvante”, e se a adaptação cinematográfica (que colocou o livro novamente nas prateleiras) faturou três estatuetas no Globo de Ouro (melhor filme, diretor e ator), é fácil imaginar que a fotografia também tenha destino certo na premiação da Academia. Aliás, “O Regresso” pode entrar para a história do cinema como o filme que dará a Leonardo DiCaprio seu primeiro Oscar (foi seu terceiro Globo de Ouro de melhor ator — os anteriores haviam sido por “O Aviador”, em 2005, e “O Lobo de Wall Street”, em 2014). Mas, ainda que isso aconteça, é importante frisar: esse é mais um caso clássico de livro muito melhor do que o filme. Ou quase isso.
Quase porque, na verdade, livro e filme vêm da mesma fonte, mas são obras distintas, com qualidades particulares. Se o filme tem a força da imagem (Lubezki choca a paisagem à contraluz de “Árvore da Vida” com os longos planos sequência de “Birdman”, num resultado arrebatador) e das grandes atuações, o livro é impactante por remeter a um diário romanceado dos pensamentos do personagem Hugh Glass, o homem de currículo invejável que sempre sonhou viver em alto-mar até ser sequestrado por um pirata lendário e ter seu futuro com uma bela mulher nublado. É este homem de coração partido que vagueia nas páginas do livro, perdido em um Novo Mundo, que cria pouco a pouco o mapa que conhecemos hoje, mas que, em 1820 (quando a história real se passa), era apenas um rabisco fruto da memória de vários caçadores.
A trama de “O regresso” começa no primeiro dia de setembro de 1823, uma segunda-feira sombria, embora, naquela época e no meio do Velho Oeste norte-americano, dias da semana não servissem para muita coisa. Mas, mesmo assim, é esse o dia em que Hugh Glass é abandonado por dois “companheiros” que, não bastasse a traição, ainda levam o que ele tinha de mais precioso: a espingarda e a faca. Nas condições em que se encontrava, um corpo absolutamente detonado, na fina fronteira entre a vida e a morte, após ter sido atacado por um imenso urso-cinzento (que, milagrosamente, ele conseguiu matar — ainda que tenha quase morrido junto), Glass não precisaria mais do armamento, justificaria Fitzgerald, um dos dois homens “escalados” para enterrar o companheiro, dando a ele uma despedida digna.
Colocadas as cartas na mesa, “O regresso” narra o processo de recuperação solitária do caçador Hugh Glass, que integrava a Companhia de Peles Montanhas Rochosas, após o ataque quase fatal do urso, e seu desejo de vingança, que o faz lutar por sobrevivência, enfrentando índios e o tempo cruel para concluir seus planos. A história verídica atravessou séculos e ganhou ares míticos. O romancista Michael Punke pesquisou a fundo a trajetória do caçador e alerta que o eixo central da trama é exato: o ataque do urso, o pobre homem deixado para trás pelos amigos em péssimas condições e o inevitável desejo de vingança. E o que há de ficção no romance é exatamente o que faz do livro uma obra mais interessante do que o filme: ao acompanhar a saga de recuperação de Hugh Glass, o leitor está confinado em seus pensamentos, e tudo que surge impressiona.
Mais interessante ainda é a recriação de época, algo que o filme compartilha, mas que o livro também exibe com força, pois se trata de hábitos há muito tempo deixados de lado por uma sociedade cada vez mais distante da natureza e dos enfrentamentos tão comuns daquele período. Outro ponto positivo da leitura: Michael Punke aprofunda vários personagens, numa reconstrução histórica que coloca em cena, por exemplo, o pirata corsário francês Jean Lafitte, que aterrorizou o Golfo do México no mesmo período em que Hugh Glass viveu e deixou a península de Galveston em chamas ao partir (a propósito, Nic Pizzolatto, o homem responsável pela série True Detective, escreveu um ótimo romance que se passa em Galveston, também publicado pela Intrínseca).
Você pode não acreditar em espíritos, fantasmas ou aparições, mas é bom ficar de olhos abertos, pois, como frisou o filósofo Francis Bacon em “On Revenge”, um dos capítulos de seu livro “Ensaios”, de 1625: “a vingança é uma espécie de justiça selvagem”, incutindo no ser humano uma inteligência crítica que às vezes faz falta. Segundo Bacon, a vingança é uma perversão da lei (o que, por sinal, tem a ver com o final do livro de Punke enquanto diverge de Iñárritu, que acrescenta elementos extras para tornar o ato mais factível). E ainda que Hugh Glass tenha atuado como pirata, sua busca por vingança é mais fruto dos desencontros da vida do que de maldade. Há diferença, mas a perversão da lei é a mesma… ainda hoje.
Livro e filme, apesar de tratarem do mesmo tema, vingança, têm conclusões diferentes. Punke tentou ser o mais fiel possível à história real, enquanto Iñárritu apresentou uma história com início, meio e fim — não é à toa que o filme começa exibindo uma batalha anterior à narrativa do livro —, mas ambos criaram o personagem que acreditaram ser o mais plausível. O leitor, por sua vez, tem em mãos um diário de época incrível, retrato de um período histórico pouco explorado e muitas vezes esquecido. O resultado final é uma obra cujo texto pode ser complementado pelas imagens de Iñárritu e que transporta o leitor/espectador para um tempo distante, quando as regras da sociedade eram bem diferentes. Sombrio, agonizante e violento, “O regresso” utiliza um mundo que não existe mais para falar de um sentimento atemporal.]
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.