texto por Renan Guerra
fotos por Fernando Yokota
O Nômade Festival surgiu em 2018 com um line-up focado em artistas nacionais, criando casamentos entre nomes consagrados da MPB e artistas jovens e em ascensão. O festival conseguiu sobreviver apesar da pandemia e esse ano chega a sua quarta edição, a ser realizada nos dias 20 e 21 de maio, em São Paulo. O Nômade se apresenta como uma plataforma composta por quatro produtos: Nômade Festival, Nômade Encontros, Nômade Apresenta e Nômade Cria, tudo isso compondo o “Mundo Nômade”. O Nômade Apresenta é esse novo braço onde eles trazem shows pontuais de artistas internacionais ou nacionais e casam isso com um line-up específico – a ideia é que outros eventos do Apresenta rolem ainda esse ano.
Para sua primeira edição, o Nômade Apresenta trouxe o peso do nome de Erykah Badu e, além da comoção geral, esse anúncio também trouxe dúvidas e uma polêmica. O evento foi chamado “Nômade Apresenta Erykah Badu” dando a sensação de que tudo que vinha antes seria show de abertura, ao mesmo tempo em que o anúncio do line-up dá aquela sensação de festival – o esquema todo no evento que aconteceu no Memorial da América Latina, no último domingo (22/01) também reverbera essa sensação. De todo modo, os nomes anunciados inicialmente para compor esse evento ao lado de Badu causaram alvoroço: as bandas Gilsons e Bala Desejo mais a cantora Céu. O fato de artistas brancos serem chamados para um evento liderado por Erykah Badu gerou um desconforto em uma boa parcela do público (a equipe do podcast VFSM discutiu o tema aqui).
Bala Desejo, a banda carioca bem-nascida e apadrianhada por famosos que está em quase todos os line-ups de 2022/2023, foi a primeira a pular fora do barco. O grupo anunciou em um comunicado bem alinhado que não estava ciente do contexto do evento e que entendeu que aquele espaço deveria ser utilizado por artistas negros em consonância com o som de Erykah. A cantora Céu surgiu na sequência anunciando sua desistência num comunicado pra lá de mal escrito – e que já não está mais disponível em suas redes. Os nomes chamados para compor o line-up foram então Majur, Larissa Luz e Anelis Assumpção, com a manutenção dos garotos dos Gilsons; além disso adiciona-se aí a presença dos DJs Tamy e Nyack, que foram responsáveis por favor a ponte entre os shows.
Em um dia de raro tempo firme no verão de São Paulo, o Nômade Apresenta abriu a tarde com o show de Larissa Luz com Anelis Assumpção, em apresentação que mostrou a força pop de Larissa e ainda trouxe ao palco a recente parceria das duas artistas, “Uva Niágara”, lançada no disco de Anelis, “Sal” (2022). Na sequência, foi a vez dos Gilsons subirem ao palco, com o repertório alto astral de seu disco “Pra Gente Acordar” (2022). Formada por filhos e netos de Gilberto Gil, a banda também inclui em seu setlist canções clássicas do patriarca da família. Já no final da tarde, início da noite, Majur entrou em cena para apresentar as canções de seu disco de estreia “Ojunifé” (2021), além disso, seu repertório inclui hits de sucesso em parceria com outros artistas; de caráter pop e com show cenograficamente bem resolvido, Majur soube usar o palco de forma segura e interessante.
Essa sequência de shows se desenrolou com poucos atrasos e praticamente tudo dentro dos conformes, por isso perto do horário marcado para o show de Erykah Badu o público já estava a postos em frente ao palco, tentando se aproximar ao máximo. Abrimos um parênteses aqui: “em frente ao palco” é uma força da expressão, pois o Nômade Apresenta seguiu uma logística que tem se tornado cada vez mais comum em festivais em São Paulo que é a divisão do evento com a área vip da área vip e todo um sistema curioso; havia a pista comum, aí no meio do Memorial da América Latina ficava a pista vip e mais a frente uma outra pequena pista ao lado esquerdo do palco, criando uma logística de pequenas cercas entre o público. Enfim, cada um no seu cercadinho esperava Erykah Badu, que entrou no palco com cerca de 40 minutos de atraso.
O show da noite celebrava os 25 anos de lançamento do seminal “Baduizm” (1997), disco de estreia da artista e um marco importante para o gênero neo-soul. Mas não espere de Badu um show tributo feito confortavelmente, não mesmo. Vestida com uma grande cartola em um tecido que parecia pelúcia e um grande sobretudo que parecia quase uma colcha, Erykah entrou ao palco para mostrar a sua inquietude e sua excelência musical. Com uma banda poderosa, Badu dava o tom como uma espécie de maestrina com a sua percussão digital. Ao mesmo tempo que celebrava seu passado, Erykah mirava o futuro – o que é uma constante de seu trabalho.
Em seu setlist estavam hits importantes do disco homenageado da noite, como “On & On”, “Otherside of the Game” e “Appletree”, mas também houve espaço para a inclusão de canções importantes de outras fases de sua carreira, como “Love of My Life (An Ode to Hip Hop)”, do disco “Worldwide Underground” (2003), “Window Seat”, presente em “New Amerykah Part Two (Return of the Ankh)” (2010), e o clássico “Bag Lady”, do disco “Mama’s Gun” (2000), que fechou o show, que acabou um bocado mais cedo do que o esperado. Com o atraso do início e as regras rígidas da lei de silêncio da cidade, o show acabou de forma um tanto abrupta; dava a se entender que ele estava encerrando, porém o som foi desligado, mesmo com a banda ainda a tocar. Erykah falou no microfone “thank you” antes de sair do palco, mas não deu pra ouvir. Além disso, nada de bis. Hora de ir embora.
De todo modo, esse final abrupto não macula a beleza que foi ver a força de Erykah Badu no palco. Durante seu show, sua roupa foi mudando, sua cartola deu lugar a um lenço amarrado sobre o longuíssimo cabelo que ela usava. Seu sobretudo saiu e deixou amostra suas botas gigantescas, uma espécie de overknees com tecido extra, e mais uma gama de belos e grandiosos colares. Tudo é maxi, grandioso, o que combina com o poder de sua voz e todo o impacto que ela provoca no palco. Se com a banda, Erykah funciona como maestrina, com o público ela faz o papel de um ser quase religioso, dando essa sensação de que somos apenas fiéis de sua liturgia. O interessante é que isso seja natural de sua figura, não é uma construção, apenas está ali posto e somos emanados por essa energia meio espiritual – alguma coisa de bruxa há nela, como que a aplicar poções sobre seus ouvintes.
Mas não pense que Erykah é uma figura sacra no palco, pelo contrário, ela é demasiado humana e parece constantemente estar se divertindo ao fazer o show, ela deixou bem claro o quanto estava feliz de estar em São Paulo e o quanto gosta do público daqui. Ela até chegou a descer para pertinho da grade. Abraçada por algum fã, ela disse “eu não vou sair daqui, mas só peço que não puxem”, e assim continuou cantando ali em frente a pessoas que olhavam pra ela meio atônitas. Antes do fim do show, ela até tentou ver com a produção a questão do tempo, olhou o setlist entendendo o que faria e acabou tendo que encerrar com esse gostinho de quero mais.
Enfim, ao vivo, Erykah Badu segue provando o porquê é uma das artistas mais interessantes e inventivas de sua geração. E nesse sentido, é de se celebrar que um evento como o Nômade Apresenta tenha conseguido trazê-la para um público tão grande, que lotou o Memorial da América Latina. Esperamos que esse seja uma espécie de piloto de uma série de outros Nômades Apresenta, com seus ajustes e suas práticas, esse pode ser um evento interessante para um novo tipo de formato de show. Torcemos para que dê certo.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
Perfeito o texto, só gostaria de ressalvar que o ingresso não foi barato…