texto de Leonardo Vinhas
Publicado originalmente na primeira versão do Scream & Yelll em 20/04/2002
Nostalgia costuma escorregar para a chatice, afinal, nada mais insuportável que pessoas falando sobre os “velhos tempos” (a não ser quando você viveu esses tempos, evidentemente) como se eles jamais fossem se repetir, depreciando o presente e desanimando-se perante o futuro. Porém é difícil não ser nostálgico ao falar da turma do Pelezinho.
Criado em 1976 a partir de conversas entre Maurício de Sousa e Pelé, o personagem Pelezinho era um lance genial para ambas as partes: Pelé, em vias de aposentadoria, mas já reconhecido como o maior jogador de todos os tempos (os argentinos inventariam Maradona anos depois, mas, francamente!), manteria-se em evidência no mundo dos quadrinhos e no imaginário emocional de seus leitores (além de levar bons trocados com a utilização de sua imagem em HQs, brinquedos e outros produtos), e Maurício, ainda em pleno vigor criativo, teria um personagem de grande carisma que cativaria a diferentes públicos, mas principalmente aos fãs de futebol (na época, a absoluta maioria da população brasileira) e aos negros.
O personagem aparecera primeiro em tiras de jornal e eventuais piadinhas em revistas de outros personagens até ganhar sua revista em 1977, mas desde o princípio sua personalidade alegre, ingenuamente cafajeste e “futeboleira” já estava claramente definida, bem como as características de sua turma, todos baseados em recordações da infância de Pelé. Assim, tínhamos o inseparável Cana Braba – gordo, boca-suja e encrenqueiro; Frangão (nome verdadeiro: Alfredo), o magricela desajeitado cujo apelido fazia justiça à sua atuação entre as traves; o atlético, contemporizador e tranqüilo Teófilo; a sensual e cobiçada (apesar dos quilinhos extras) Bonga; a turquinha Samira, cuja inaptidão culinária não correspondia à tradição familiar (o que não a impedia de tentar empurrar seus horrorosos quibes goela abaixo de seus amigos); a romântica e meiga Neusinha, uma oriental que fora o primeiro amor do Rei; e o cachorro Rex – esse um caso à parte.
Rex era realmente um cachorro – algo raro entre os bichinhos humanizados de Maurício de Sousa. Rex não era filosófico como Horácio, dialético como o Bidu dos primeiros anos ou mesmo guardava parentesco com a personalidade humana da Turma da Mata (Raposão, Rei Leonino, Jotalhão e companheiros). Ele era simplesmente um cão, obediente ao dono e que gostava de brincar com ele e sua turma. O curioso era que outros cachorros dialogavam (com balões de fala e tudo) com Rex, enquanto este só latia. O máximo de “absurdo” visto era usar uma pá, em vez das patas, para cavar buracos onde seriam afixadas as traves de madeira. Apesar da aparição ocasional de extraterrestres, criaturas de lava ou até de Zeus, as histórias de Pelezinho apresentavam muito mais fatos do cotidiano que as da Turma da Mônica.
A interação entre todos os coadjuvantes era notável. Suas personalidades possuíam características marcantes, contudo eles também podiam se apresentar melhor ou pior humorados, mais ou menos confiantes. Como todos nós somos no cotidiano. Embora Cana Braba, por exemplo, fosse egoísta e prepotente na maioria das vezes, havia ocasiões em que sua autoconfiança esvanecia, e até momentos de altruísmo poderiam aparecer, sempre de acordo com as circustâncias. Até os “inimigos” Jão Balão (um garoto que não se conformava em não ser titular do time e julgava ser ofuscado pelo “astro) e Tonico “Fura-Bola” (um dos muitos vizinhos esquentados que não gostava da algazarra na rua nem das vidraças quebradas e tentava furar obsessivamente as bolas dos garotos), entre outros de aparição sazonal, não eram “maus” ou “cruéis”. Apenas não partilhavam dos mesmos sentimentos e entusiasmos da turma.
Pelezinho, todavia, era a estrela maior, como convinha. Representava a própria alegria de se jogar futebol apenas pelo prazer de ter uma bola nos pés para “rachar” com os amigos. Não falava sequer em se profissionalizar, a não ser por duas histórias em que ele aparecia em seletivas de juniores que não o admitiam – fosse pela torcida inconveniente de seus amigos ou pela politicagem do clube. Quanto à cafajestice, Pelezinho tinha sua fiel Neusinha – a quem não retribuía completamente fidelidade, mas também não negava amor sincero. Só não se prestava constantemente à monogamia, como bom boleiro que se preze (ou despreze).
Não era esse o único traço “politicamente incorreto das histórias”. É antológica a história em que Pelezinho desce porrada em Jão Balão apenas porque ele, agradecido pela cura de um torcicolo, abraçava Pelezinho três vezes seguidas. O protagonista se justificava dizendo: “Cara estranho! Eu, hein?!” Hoje, uma história dessa sequer seria publicada em uma revista mainstream, mas os tempos eram outros e não havia patrulhinhas de ONGs obcecadas que não distinguem uma brincadeira de uma ofensa.
Tudo bem, talvez seja ofensivo mesmo. Mas era a infância de todos nós, com os quebra-paus entre timinhos adversários (que não implicavam em ódio algum, faziam parte da vida e logo se esqueciam), as fugas de casa por uma tarde, apenas para jogar bola ou brincar na rua (apesar da mãe gritar para você ficar em casa e se recuperar da gripe ou coisa que o valha), os namorinhos atrás de árvore, enfim, a doce vida despreocupada, ainda possível naquela época (e vale ressaltar que as histórias se passavam em Três Corações, por isso a rara interação entre essa turma e aquela da baixinha invocada). Hoje isso tudo já é raro nos quadrinhos, que dizer da vida real. Nem mais os caracteres que indicavam palavrões (aquelas @#%! de *!$#@ que apareciam nos balões) costumam aparecer – como se as crianças não fossem bocas-sujas.
Enfim, Pelezinho e sua turma constituíam um compêndio de sua época. Uma época em que toda criança era “de rua”, em que o futebol era uma arte fluida e não um espetáculo circense enfadonho, egocentrado e violento, em que os pais participavam da vida dos filhos. Tempos que não voltam mais nem na fantasia: a revista foi cancela em 1982 e seus personagens só voltariam a aparecer em esporádicas edições especiais, até desaparecerem por completo nos anos 90. Ainda houve uma tentativa de recuperá-los em publicações para a América do Sul (exceto Brasil), em que a garotada, já mais crescidinha (cerca de 12 anos) viajava o mundo como embaixadores da UNICEF. É claro que não deu certo e o projeto foi abandonado. Glamourizar a simplicidade daquelas histórias seria como o Paulinho da Viola gravar com o Só Pra Contrariar, ninguém sairia no lucro.
Nota do editor: A revista do Pelezinho existiu entre agosto de 1977 até maio de 1982 em edições inéditas totalizando 66 edições sendo republicado até dezembro de 1986. Em 2012, a Maurício de Souza Produções reempacotou a coleção em edições especiais. O personagem reapareceu em diversos períodos de Copa do Mundo como também ganhou uma versão televisiva por uma TV espanhola em 1996. Em 2014 foi lançada a série “Pelezinho em Planeta de Futebol”, exibida durante os intervalos do canal Discovery Kids. Assista a dois episódios abaixo.
Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).