Introdução por Affonso Nunes
Dez de dezembro é dia de relembrar Cássia Eller (1962/2001), dona de uma das vozes mais marcantes e versáteis da música brasileira, e que completaria 60 anos nesta data. A ocasião não poderia passar em branco e a Universal Music pinçou de seu baú de preciosidades um dos discos mais aguardados da artista nos últimos 30 anos: “Cássia Eller e Victor Biglione in Blues”, que chega às plataformas digitais e terá lançamento físico previsto para o segundo semestre de 2023. Trata-se do registro do encontro musical da notável artista com o virtuosismo do renomado guitarrista Victor Biglione, com iluminadas releituras de clássicos do blues e do rock numa roupagem de rara criatividade e arranjos que até hoje soam modernos.
“Acho muito oportuno lançar este trabalho agora. É uma maneira de festejar o que foi a vida dela nessa data tão importante. E mais especial ainda por ser um álbum de blues, que representa muito bem a minha mãe, um disco muito legal de releituras com o Victor Biglione numa pegada muito diferente”, destaca o cantor e compositor Chico Chico, filho de Cássia.
“As coisas não acontecem por acaso e essa preciosidade estava aguardando o momento certo de ser lançada. Nada mais justo para os fãs do que disponibilizar o álbum, como disse Chico Chico, filho da cantora e peça fundamental nesse resgate, na comemoração de aniversário do que seriam os sessenta anos da Cássia Eller, uma artista cuja obra merece ser lembrada por várias futuras gerações”, diz Paulo Lima, presidente da Universal Music Brasil.
O projeto, lembra Biglione, nasceu após uma viagem do músico aos Estados Unidos no início de 1991. “Eu me ressentia que não tínhamos no Brasil um trabalho de releituras que expressasse a riqueza que a linguagem blues traz consigo”, conta o instrumentista e arranjador, que selecionou o repertório e buscava uma voz feminina que encarnasse o projeto. “Uma produtora amiga, Lígia Alcantarino, me indicou uma cantora iniciante chamada Cássia Eller. Ouvi Cássia cantando a faixa ‘Por Enquanto’, de Renato Russo, em que citava na introdução ‘I’ve Got a Feeling’, de Lennon e McCartney. Logo vi que ela tinha essa pegada”, rebobina o guitarrista consagrado nacional e internacionalmente e que a essa altura já tinha três álbuns solo, um Grammy Internacional com o grupo Manhattan Transfer, em 1988, e já era um dos mais requisitados músicos de estúdio, o que o levou mais tarde a ser guitarrista com o maior número de gravações e shows na história da MPB.
Cássia, por sua vez, havia lançado seu primeiro álbum, “Cássia Eller” (Polygram, 1990), com um repertório dominado pelo rock’n’roll, e vinha arrancando elogios da crítica, pavimentando os primeiros passos de uma carreira apoteótica (conheça a discografia de Cássia comentada no Scream & Yell) que lhe renderia inúmeras premiações como o Grammy Latino, em 2002, os prêmios Sharp (1991, 1993, 1995, 1997, 1998 e 2002) e Multishow (2002), entre outros.
“Lembro que a Cássia foi à minha casa bem tímida. Passei a ela o repertório e, três dias depois, no primeiro ensaio com a banda, ela já havia dominado todas as canções com interpretações estonteantes e cheias de personalidade. Todos ficaram de queixo caído, pois ela não conhecia aquelas obras até então”, revela Biglione.
Espremido entre o primeiro e o segundo álbum de Cássia, “Malandragem” (Polygram, 1992), o projeto em parceria com Victor Biglione acabou não saindo. Mas o festejado encontro musical rendeu shows antológicos no Circo Voador e no Free Jazz Festival de 1992 na noite em que tocariam Albert King e Robben Ford. “Se o disco tivesse saído naquela época, certamente daria um impulso notável na carreira internacional da Cássia, que não deixava nada a dever a muitas cantoras estrangeiras”, acredita Biglione, músico com vasta vivência em festivais mundo afora, tendo conquistado posteriormente um Grammy Latino com Milton Nascimento por sua participação no aclamado álbum “Crooner”, em 2000, e finalista na edição de 2016 com o solo “Mercosul”.
“Cássia Eller é uma das maiores vozes femininas da história da música brasileira, além de ter sido uma referência de comportamento para muitos jovens que a acompanharam até a sua morte. Com uma carreira tão curta, deixou uma obra definitiva. Tudo é bom e a gente sempre quer mais. Os fãs de Cássia agradecem por essa iniciativa! Esse trabalho com Victor Biglione une esse desejo de ouvi-la de novo, e mais, com a certeza de que temos mais uma vez uma Cássia bem acompanhada, afinal, estamos falando de um dos maiores guitarristas do Brasil”, testemunha a jornalista a pesquisadora Chris Fuscaldo.
Composto por 10 faixas, sendo duas instrumentais, “Cássia Eller & Victor Biglione in Blues” reuniu no estúdio músicos de alta qualidade, recrutados por Biglione, que assinou os notáveis arranjos e dividiu a produção musical com o saxofonista Zé Nogueira. Participam da banda-base André Gomes (baixo elétrico), André Tandeta (bateria), Marcos Nimrichter (órgão), Ricardo Leão (teclados) e Nico Assumpção (baixo acústico), falecido precocemente em 2001, que toca em duas faixas. Guitarrista de excelência, Biglione esbanja sua técnica por todo o trabalho travando diálogos inventivos com Cássia Eller. Há que se registrar ainda o arrepiante naipe de metais que reunia Zé Nogueira (sax alto e soprano), Zé Carlos Ramos, o Bigorna (sax alto), Chico Sá (sax tenor), Bidinho (trompete) e Serginho Trombone (trombone), morto em 2020. A captação, mixagem e masterização foram feitas por Sérgio Murilo.
Depois do resgate dos originais do álbum, foi feita a masterização nos parâmetros técnicos de execução nas plataformas de streaming, missão confiada ao premiado engenheiro de som Ricardo Garcia. “A qualidade da gravação feita na época é muito boa e os ajustes foram mínimos. É importante destacar que esse disco de 30 anos não é um trabalho datado. Sua sonoridade é contemporânea”, diz o engenheiro.
Nota do autor: Em conversas com Victor Biglione, sempre demonstrei grande curiosidade em relação ao álbum que ele gravara com Cássia Eller e que seguia inédito. Mesmo sem tê-lo ouvido até então, julgava que seu lançamento possuía dimensão histórica. Quando Victor me presenteou com uma cópia que continha oito das dez faixas gravadas entre 1991 e 92, meu coração disparou e jurei a mim mesmo que faria o possível para que o álbum, enfim, pudesse chegar ao público. Agradeço ao Victor, ao Chico Chico, à Maria Eugênia e a toda equipe da Universal Music por tornar realidade este sonho que não era só meu. E tomo emprestados os versos de uma das faixas deste álbum magnífico: “I ain’t got nothing but the blues!”
Faixa a faixa, por Victor Biglione:
I’m Your Hoochie Coochie Man – A partir da interpretação inesquecível de Muddy Waters, fiz o arranjo elaborando mais alguns riffs bem primitivos e usando um naipe de metais com sax alto, sax tenor, trompete e trombone para apoiar uma interpretação gutural da Cássia Eller.
Got to Get You Into My Life – Neste arranjo, tive a alegria de juntar à melodia de Paul McCartney uma guitarra lisérgica, partindo de uma adaptação do Blood, Sweat & Tears. Tudo foi completado pelo naipe de metais e pela voz vibrante da Cássia.
Same Old Blues – ‘Same Old Blues’ reflete bem a ancestralidade do blues com sua pegada quase religiosa. Com o auxílio luxuoso do naipe de metais, num arranjo especialíssimo, eu e Cássia entramos de cabeça nesse ritual mágico.
When Sunny Gets Blue – Esta melodia e harmonia sempre me fascinaram. Talvez seja o momento mais límpido do disco, com a excelência do baixo acústico do saudoso e genial Nico Assumpção. O sax do Zé Nogueira e a guitarra assumem uma linha tipicamente jazzística. E a Cássia entrega uma interpretação sedosa, elegante, à altura das grandes divas do gênero.
Blues Medley II – Este é um dos momentos instrumentais do álbum. Fazer um medley juntando ‘Oh, Well, Quadrant, Lazy’ e alguns riffs de minha autoria. Foi uma experiência muito instigante porque, além de não perder o fio da meada, num andamento shuffle mais ligeiro, tive a oportunidade de mostrar vários tipos de fraseologia e sons da guitarra. E a banda-base, formada por Ricardo Leão (órgão), Marcos Nimrichter (Rhodes), André Gomes (baixo) e André Tandeta (bateria), mandou bem demais!
If Six Was Nine – A morte precoce de Jimmy Hendrix abortou sua colaboração com Miles Davis, algo tão desejado pelo lendário trompetista. Neste arranjo, eu me permito arriscar sobre o que poderia vir a ser o resultado desse encontro de um monstro sagrado do rock com outro do jazz, unindo a intrincada sonoridade de Hendrix e o fraseado inconfundível de Miles. Cássia embarcou lindamente nessa viagem.
Prison Blues – Esta é uma homenagem minha e da Cássia ao Led Zeppelin e seu guitar hero, o inigualável Jimmy Page. Mostra o vigor de um power trio e encontra uma interpretação devastadora da Cássia. É uma autêntica cacetada! Cássia Eller em estado bruto.
I Ain’t Superstitious – Partindo do famoso riff do Jeff Back Group, utilizei o supertime de metais formado por Zé Nogueira (sax alto), Chico Sá (sax tenor), Bidinho (trompete) e o saudoso Serginho Trombone (trombone) para substituir o fraseado de algumas guitarras do Beck e toquei a guitarra slide para que Cássia completasse com muito vigor e agressividade na interpretação deste grande clássico de Willie Dixon.
I Ain’t Got Nothing But the Blues – Foi bastante desafiador juntar a conotação do blues rural dada por dois violões e o baixo acústico do inesquecível Nico Assumpção nesta harmonia riquíssima do grande mestre Duke Ellington. Comprovando toda sua categoria como intérprete, Cássia surge inspiradíssima nessa faixa imprimindo um timbre jazzy e classudo.
Blues Medley I – Para fechar o álbum, outro medley que começa com a bonita melodia de ‘Need Your Love So Bad’, um clássico de Little Willie John que já mereceu muitas releituras. Esse clima vai crescendo com ‘You Shook Me’, do grande Willie Dixon, para terminar com ‘The Flash Door’, um tema de minha autoria, em fraseados de eletric bebop bem ágeis na guitarra.
Ficha Técnica – “Cássia Eller & Victor Biglione in Blues”:
Cássia Eller (voz)
Victor Biglione (guitarras, violões e arranjos)
Ricardo Leão (teclados)
Marcos Nimrichter (órgão)
André Gomes (baixo elétrico)
Nico Assumpção (baixo acústico)
André Tandeta (bateria)
Zé Nogueira (sax alto e soprano)
Chico Sá (sax tenor)
Zé Carlos Ramos (sax alto)
Bidinho (trompete)
Serginho Trombone (trombone)
Gravação e mixagem: Sérgio Murilo
Masterização: Ricardo Garcia
Produção musical: Victor Biglione e Zé Nogueira
Pós-produção: Affonso Nunes
Capa: Emerson Ferreira
Fotos: Paulo Ruy Barbosa
Estúdios Polygram: 1991/92
Ótima matéria
Só uma falha :
O álbum não estava espremido entre o primeiro e “malandragem ” e sim “Marginal”,o segundo álbum,que também não teve êxito comercial .
“Malandragem” só veio a sair em 1994,e então o seu reconhecimento popular.