texto por João Paulo Barreto
O maior mérito de “Pantera Negra: Wakanda para Sempre” (2022) é ainda ser um filme sobre o Rei T’Challa. Ou ainda mais importante: seu maior mérito é ser um filme sobre Chadwick Boseman e a falta que o ator faz. Ao optar por criar uma obra na qual as presenças tanto do personagem protagonista do longa de 2018 quanto da memória do homem que o interpretou ainda se fazem atuantes de maneira a construir sua trama, o longa dirigido por Ryan Coogler, e escrito em parceria com Joe Robert Cole (os mesmos da primeira parte), consegue tanto escapar do vácuo imensurável da falta de Boseman, como, também, preparar o terreno para que o monarca possa retornar em sua majestosa presença.
Já em seus minutos iniciais, justificando a ausência do herói com um impacto trágico semelhante ao da vida real, “Wakanda para Sempre” denota a atmosfera da perda tanto de T’Challa quanto de Boseman e como isso vai nortear sua trama. O primeiro tendo sua morte justificada de modo crível, mas não menos doloroso para o espectador, e seu intérprete surgindo em diversos momentos de sua participação no longa de 2018 a ilustrar a vinheta de abertura dos Estúdios Marvel, marcam desde aquela apresentação qual será o tom deste epílogo da presença de Chadwick como o super-herói. Os momentos nos quais vemos o funeral de T’Challa acontecer, com as danças culturais sendo executadas, o rosto de Boseman pintado em um muro de Wakanda, os tambores a bradar ritmos e ritos fúnebres que vibram em slow motion diante do olhar penetrante de Angela Bassett a ilustrar a dor da mãe que perdeu o filho, concretizam aquele trabalho como uma despedida do corajoso ator que, ciente da importância de seu legado e de como se tornaria eterno em sua influência para novas gerações, se entregou ao papel de T’Challa já doente e escondendo com bravura suas dores físicas.
Ali, inclusive, ao lado de Basset, Letitia Wright no papel de Shuri, a futura Pantera Negra e irmã do herói, inicia sua presença de pouco impacto e carisma no filme que serve como sua despedida do universo Marvel. Mas, ainda que superficial em sua construção dramática, a atriz cria de maneira emocionalmente tocante a dor da perda e o modo como o peso do legado de T’Challa se fará presente em seus ombros. E é justamente neste ponto que o roteiro de Coogler e Cole cria seu mais valioso conflito e trunfo. Ao criar a ponte entre a frustração de sua protagonista, que ecoa na mesma filosofia do antagonista Killmonger (vivido por Michael B. Jordan no primeiro filme), que buscava por vingança para além de qualquer união entre povos que trouxesse subserviência ao seu próprio, o texto deste novo filme a liga diretamente ao seu principal anti-herói aqui: Namor, que na pele de Tenoch Huerta, encontra a adaptação perfeita para o violento personagem clássico dos quadrinhos criado por Bill Everett em 1939.
Aqui, Namor acaba por se tornar um personagem à parte e que fica acima da simplória opção que o roteiro traz no que se refere às resoluções pacíficas no conflito entre os habitantes de Wakanda e os seres marinhos que ele lidera. Por possuírem motivações semelhantes em sua luta por sobrevivência contra a humanidade predatória e colonizadora em seus avanços geopolíticos de exploração e busca do rico metal vibranium, os dois povos percebem que travar uma guerra entre si não é o melhor caminho. Mesmo que, em seu desfecho, a sensação de um final um tanto mal resolvido para o “vilão” (e que, no entanto, abre espaço para uma bem-vinda continuação) incomode, perceber que a profundidade de Namor em sua adaptação cinematográfica difere bastante de sua figura dos quadrinhos o torna a melhor coisa nessa continuação.
Ao inserir elementos das culturas Maia e Asteca na criação do personagem que se volta contra colonizadores espanhóis que não somente buscam escravizar seu povo fisicamente como, também, impor uma religiosidade que não lhes pertence, a Marvel alcança dois objetivos: o de dar ao povo submarino liderado por Namor uma profundidade cultural de peso semelhante a que possui Wakanda dentro da criação mítica de “Pantera Negra”, bem como diferir seu antagonista de qualquer semelhança com a criação posterior da DC Comics, Aquaman. Enquanto com o seu equivalente da Liga da Justiça, o cunho mais fantasioso se faz notar (não como um problema, friso), o que vemos aqui acaba por dar ao violento ser submarino e alado da Marvel um peso dramático condizente com os aspectos de suas motivações mais calcadas na realidade.
Resolvidas as tensões entre os dois povos e que levam a trama à frente, é nos silêncios das imagens em que personagens rememoram T’Challa e, em conjunto, Chadwick Boseman, que se define de maneira exata o que significa esse epílogo para os Estúdios Marvel. É uma máquina de gerar dinheiro? Sim, é. Coloca o lucro acima de qualquer ideal romântico de cinema? Sim, coloca. E é justamente por isso que perceber seu sorriso e expressão aguerrida nas cenas em sua memória que nos faz admirar ainda mais a opção corajosa de Boseman. Ao aceitar abraçar aquele papel como sendo o que o tornaria eterno, tal atitude foi o que fez dele um real super-herói. Não é sempre que se tem a oportunidade de, reconhecendo sua finitude, utilizar-se do poder gigante de uma indústria para concretizar-se como um ideal. Como um símbolo, na verdade. Um símbolo que ultrapassa sua própria presença física.
Ybambe!
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.