texto por Renan Guerra
Em 2020, o Brasil bateu um recorde de candidaturas de pessoas LGBTQIA+ nas eleições municipais. Foram mais de 400 pré-candidaturas de pessoas assumidamente LGBTQIA+ e, em mais um recorde histórico, mais de 70 foram eleitos. Esses dados iniciais chamaram a atenção do jornalista, diretor e roteirista Pedro Henrique França, que decidiu acompanhar os processos de campanha da vereadora de São Paulo Erika Hilton (PSOL), a então candidata a vereadora pelo Rio de Janeiro Andreá Bak (PSOL), a vereadora do Rio de Janeiro Monica Benício (PSOL) e o então candidato a vereador por São Paulo William de Lucca (PT). Essa é a base inicial do documentário “Corpolítica” (2022).
O filme faz uma acompanhamento sistemático das campanhas desses quatro nomes apresentando um pouco da história de cada candidato, com suas vivências, suas relações com a política e suas histórias familiares. Porém, “Corpolítica” assume um recorte mais amplo e, parte desses personagens, para então recontar um pouco mais sobre a recente história política brasileira, passando pela chegada dos primeiros políticos assumidamente LGBTs, como Clodovil e Jean Wyllys, até a ascensão do bolsonarismo e toda a onda de fake news em torno de tópicos como a invencionice da “ideologia de gênero” ou o famigerado “kit gay”.
Considerando que a política brasileira é construída de uma sucessão de aleatoriedades e cenas improváveis, “Corpolítica” é até ousado em seu recorte e em sua tentativa de abarcar a densidade desses últimos anos. De todo modo, o saldo é bastante positivo, pois com um roteiro bem amarrado e com um foco bem definido, o longa consegue caminhar por terrenos complexos e espinhosos sem se perder ou se tornar maçante. Para isso, surgem figuras importantes da nossa política e história que ajudam a recontar e analisar esses fatos, como o ex-deputado federal Jean Wyllys, a deputada estadual de São Paulo Erica Malunguinho e o pesquisador e professor de direito Renan Quinalha.
É meio que natural que durante o filme as figuras de Erika Hilton e Monica Benício acabem puxando um pouco mais da tela para si. Erika consegue isso pela sua exímia retórica, pela forma como consegue concatenar ideias complexas com simplicidade e como articula suas histórias e crenças com a sedução de uma excelente contadora de histórias. Já Monica Benício tem em si toda a carga dramática de uma história de violência e luta, celebrada na figura onipresente no filme de Marielle Franco – para quem não lembra, Monica é a viúva de Marielle. Elas são as duas figuras centrais do filme, enquanto Andréa Bak e William de Lucca funcionam como as pontes dessas novas possibilidades, desses outros articuladores de seus pares e é interessante acompanhar suas lutas mesmo tendo essa espécie de “spoiler” em que sabemos que eles não foram eleitos.
Com produção do ator Marco Pigossi, “Corpolítica” não se esquiva das incongruências comuns na nossa política nacional e, por isso mesmo, não deixa de abarcar dentro da sua história a presença de políticos LGBTQIA+ que não dialogam com as pautas da comunidade. Nesse sentido, há no filme a presença dos vereadores de São Paulo Fernando Holiday e Thammy Miranda. As entrevistas com os dois políticos alinhados com discursos de direita propiciam ao filme uma discussão mais ampla sobre o que é representatividade na política, as demandas da comunidade LGBTQIA+ e as tensões do jogo político nacional.
Complexo e interessante, “Corpolítica” é uma espécie de retrato desses últimos anos em que os embates políticos se tornaram mais acirrados e tensos. É um filme que consegue captar os movimentos de reação e de luta e que dá conta das mudanças que estamos vivenciando. Em meio a retrocessos, “Corpolítica” é uma carta de esperança em um futuro mais diverso na forma de se fazer política no Brasil.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.