Por Nuno Manna
Uma das principais características do cinema moderno é a maneira como ele convoca o espectador. Para se assistir um filme de Michelangelo Antonioni, um de seus mestres, não há como permanecer passivo, deixar que o diretor simplesmente conte sua história e manipule sentimentos (os nossos). Talvez seja essa demanda que afaste grande parte do público, que prefere sentar confortavelmente para entretenimento instantâneo e de fácil digestão. Mas se entregar a uma rara experiência como “A Noite” (La Notte, 1961), de Antonioni, é profundamente compensador.
Junto de “A Aventura” (L’avventura, 1960) e “O Eclipse” (L’eclisse, 1962), “A Noite” faz parte do que se convencionou chamar de trilogia da incomunicabilidade. Mas procurar esse tema no filme é permanecer em sua superfície. Se os personagens estão distanciados uns dos outros, é porque existe um descompasso deles com eles mesmos. É nas brechas, no não dito, nas ambigüidades que está a origem desse descompasso. Cabe, portanto, ao espectador não simplesmente assistir ao filme, mas apreender o que está inscrito em suas imagens.
Sentada na grama, Lidia (Jeanne Moreau) lê uma carta a Giovanni (Marcello Mastroianni). Na medida em que ela prossegue a leitura, Antonioni decupa cuidadosamente seu corpo. Em seu rosto de perfil, vemos o peso das palavras que se acumulam nos lábios. Notamos então o peito que se contrai quando as coisas são ditas, e que se infla novamente para que outras o sejam. Vistas de frente, as sobrancelhas de Lidia vão sendo tensionadas, acumulando linhas em sua fronte. Suas mãos seguram a carta inquietas. No final do processo, quando as palavras cessaram, nos deparamos com a face de Lidia marcada, com os lábios caídos, e os olhos fundos margeados por olheiras. De dentro brota uma lágrima, que ajuda a compor o produto de uma experiência dilaceradora.
Acompanhamos nessa cena a experiência da leitura da carta se inscrevendo em Lidia. Seu corpo torna-se índice daquilo que ela viveu. É assim que Antonioni filma seus personagens, montando a câmera sobre os seus corpos, sempre com um esforço de atingir seus espíritos pelos corpos, e não por intermédio deles. Em “A Noite”, a carta lida por Lidia, que traria uma declaração de amor, faz aflorar sentimentos dolorosos na leitora. Nós, espectadores, só temos acesso a esses sentimentos no momento em que aprendemos a ler o corpo em suas posturas.
É nesse sentido que os corpos que habitam “A Noite” são sintomáticos. Eles carregam em si o que resta das experiências passadas. Depois que tudo passou, permanece o corpo com todo o peso acumulado. Antonioni enquadra com cuidado esses corpos, seja cercando-os por inteiro em ângulos estratégicos, seja procurando-os nos rostos, nas costas nuas de Lidia e Valentina (a maravilhosa Monica Vitti), nos pescoços, braços, mãos. Assim, o diretor apreende o tempo no corpo de seus personagens, tempo que os mina por dentro.
Lidia está sempre procurando algo em que possa amparar-se, uma parede, um poste, como se tivesse perdido o que lhe conferia sustentação. “Você não sabe o que é sentir nos ombros todos os anos e não entendê-los mais”, ela diz. “Essa noite só queria morrer, juro. Ao menos acabaria com essa angústia e começaria algo novo”. Buscando um mínimo de alívio, Lidia tenta não ficar relembrando o passado. Mas o peso desse passado é ainda algo que ela arrasta por onde vá, que a oprime, tenciona seus músculos, mortifica seus movimentos. Algumas vezes ela respira aliviada, expõe jovialmente seu vestido novo, sorri simpática para Giovanni, se entrega a uma conversa calorosa com Roberto no carro, com posturas acentuadas por Antonioni com sombra e silêncio. Mas a leveza, o sorriso e a descontração nunca têm força para se manter por muito tempo. Logo murcham.
Giovanni também está acometido pela fadiga. Vaga pelo apartamento vazio, e pelo escritório cheio de livros acumulados na estante. Em seguida deita perturbado em um divã. Quando atende o telefone, ele se joga deitado, frouxo. Os corpos como o de Lidia e Giovanni estão cansados demais para amparar um ao outro. No elevador, no corredor do hospital, no carro, o corpo de um não chama o de outro. Eles estão fechados, amarrados por uma força que vem de dentro. Dentro do carro, um pequeno movimento de Lidia, que olha para Giovanni, parece ser a faísca que iniciará um contato. Mas ela acaba desistindo, como se não houvesse estímulo suficiente. Quando Giovanni tenta tomar Lidia no gramado, o contato é oblíquo e doloroso. Um corpo sobre o outro aperta as feridas deixadas pela história dos dois.
Em uma conversa com Valentina, Lidia pergunta à jovem quantos anos ela tem. Valentina então conta-lhe mais que sua idade. Fala de uma vida de experiências que deixaram nela suas impressões: “Vinte e dois, e muitos, muitos meses”. Quando liga uma fita que traz uma gravação sua, ela se espalha pela cama, entregue, enquanto ouve ela mesma: “Quantas palavras não queria ouvir, mas não posso evitar. Mas é preciso suportar, como as ondas do mar suportam quando você deita para boiar.” Bastou um toque de Valentina para que a fita se recolhesse, e que todas as palavras nela fossem apagadas. Em seguida, estaria virgem novamente. O rosto amargo de Valentina revela sua incapacidade de fazer o mesmo. Uma vez pronunciadas, palavras deixam nela marcas eternas.
Sobre o passado desses personagens pouco saberemos, mesmo quando o filme chega ao final. Incapaz de escrever, Giovanni diz que passa por uma crise, relacionada a uma coisa secreta que diz respeito a toda sua vida. Mas quando sua fã pede que conte uma história que aconteceu com ele, Giovanni responde: “Nem queira saber”. A Noite já começa com um relacionamento em decadência, uma vida dando seus últimos pulsos no hospital, uma carreira em crise, uma mulher cínica e desiludida. Por mais que existam vestígios espalhados na narrativa, como a carta lida por Lidia, as histórias dessas pessoas se recolherão sempre ao fora de campo do filme.
Ainda que os personagens se inclinassem a falar sobre si mesmos, a auto-análise é insuficiente, se não enganadora. Entorpecidos pelos sentimentos, os personagens se perdem quando tentam traduzir suas angústias. Por isso é tão importante que o espectador também não se prenda a formulações. Se Antonioni estende um plano para que o corpo tenha tempo para se performar pacientemente, ainda que muitas vezes não resultem em ações, é para que possamos enxergar o que há no espírito desses homens doentes e confusos.
A angústia causada pelo descompasso faz com que eles errem pelo mundo, pela cidade, pela festa, por relacionamentos, em busca de expedientes que os libertem. O corpo passeia sem se fixar nas paisagens, nas pessoas-paisagens, pessoas sem peso, que andam ligeiras, fluentes, formam rapidamente aglomerados e com a mesma facilidade os dissolvem. No subúrbio, sem motivo aparente, uma roda se forma, e uma briga começa, proporcionando ao corpo dos que brigam uma experiência intensa, e ao corpo dos que assistem uma experiência pitoresca. Helicópteros, jatos, e foguetes são pontos de fuga, que fascinam, atraem os corpos para a vastidão, procurando libertação. No banho, o corpo nu tenta chamar a atenção, pedindo que seja acalentado. Um show de dança sensual vem para atiçar os vouyers, ainda que desperte um erotismo com o qual eles não sabem lidar bem. Na festa, adultos se comportam como crianças, caem deitados neuróticos no trampolim da piscina, correm pela chuva e se jogam na piscina. No hospital, uma mulher é tomada pelo desejo. Mas em pouco tempo ela é reprimida pela moral que a ata de volta na cama.
Talvez a festa seja uma síntese de uma vida. Talvez a perseguição de Giovanni por Valentina, em belíssimos bailes dos corpos dentro do opressor enquadramento de Antonioni, seja uma síntese de como Giovanni tirou o vigor do corpo de Lidia, ao depositar nela seu peso. No final da festa, Valentina recosta-se na parede esgotada. Com o pé, alcança o interruptor e apaga a luz. Seu corpo vira uma silhueta, completamente tomado pela escuridão, como se, enquanto o dia se anuncia na janela, a noite continuasse em Valentina. Lá fora, vemos pessoas deitadas, vacilantes, devastadas. Os únicos inteiros na experiência são os músicos, que continuam tocando intocados – talvez porque não constituem personagens, mas o corpo da música colocado em cena. Talvez seja Tommaso, personagem do qual pouco sabemos, que mais tenha sofrido pelo desgaste de uma vida. Conhecemos Tommaso em declínio agudo, já completamente entregue ao sofrimento do corpo. Deitado na cama do hospital, tornou-se refém do cansaço. Ainda assim, quando falha a morfina, Tommaso pergunta ao médico: “O que tenho que fazer? O que tenho que fazer?”. Percebemos em sua fala o quanto o cansaço contém, sim, o antes, o peso do tempo. Mas além disso, quando tudo já foi dito e vivido, contém também o depois, o “E agora?”.
Na conversa com Giovanni, Lidia diz o que evitara dizer até então: “Se sinto vontade de morrer, é porque não te amo mais. Estou desesperada por isso.” E acrescenta: “Queria ser velha para ter lhe dedicado toda minha vida.” Se ela se engana ou não sobre seu sentimento, não importa. O que é claro é o desgaste da relação que lhe tira o vigor. E mesmo que sua cabeça se conforme com o fim desse amor, Lidia não consegue se livrar dessa doença que lhe tomou conta. O que fazer com ela, como viver com isso é o que lhe atormenta. Se fosse velha, em fim de vida, evitaria a tortura de ter que lidar com um depois. Antonioni insiste em escrever “FINE” e encerrar a película, mas o destino de Lidia, Giovanni e Valentina é de uma latência obscura, uma potência que continuará atormentando como o fantasma do futuro.
Por isso o final do filme é tão perturbador. Aprendemos a ler os corpos dos personagens e descobrimos suas cóleras. Acompanhamos uma jornada desgastante. Entregamos nossos próprios corpos a uma experiência intensa, dedicando afetos por empatia ou desprezo. E quando “A Noite” termina, nosso corpo permanece, e precisamos encarar o que vem com as marcas que foram em nós deixadas. É então que a frase de Valentina reverbera: “Vocês acabaram comigo esta noite”.
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Tão espetacular quanto a obra de Antonioni. Pensar o cinema além de suas silhuetas (o que nesse caso é uma observação quase literal) nem sempre é fácil. às vezes leva o semestre inteiro só pra gente ver o que é que a gente vai analisar né ehhe. Mas parabéns, Nuno!
Agora que vi o filme: SENSASIONAL a análise.