texto por Marcelo Costa
Ação. Uma galinha presencia a morte de “irmãos e irmãs”. Pagode ao fundo. A camêra flagra a angústia da galinácea ao ouvir o barulho de uma faca sendo afiada. Destino. Destino que nada. A galinha foge, a camêra abre o plano e nos vemos em uma favela. Alguém grita: “Pega a galinha ai!” e sai todo mundo atrás do bípede. São mais ou menos cinco minutos que marcam esse ínicio de filme, e são cinco minutos soberbos. Uma aula de edição e uma aula de cinematografia. As imagens conseguem passar todo pretenso sentimento de um galo condenado a morte. Agora, sabe o que é melhor? É que os 130 minutos que se seguem mantém a inteligência, a edição e a genialidade no limite máximo. Nenhum desperdício, nenhum exagero. Sim, “Cidade de Deus” (2002) já nasce clássico.
Fernando Meirelles consegue empregar em seu segundo filme aquilo que chamou a atenção em sua excelente estréia, “Domésticas, o Filme” (2001): ritmo. Meirelles é um contador de histórias de mão cheia e usa da melhor maneira o que os recursos do cinema lhe permitem.
“Cidade de Deus” traz a história da favela homônina fundada no Rio de Janeiro na década de 60, em uma área desabitada, duas horas de ônibus de Copacabana. O filme de Meirelles, baseado no livro de Paulo Lins, acompanha mais de 20 anos na vida dos moradores, do nascimento pobre da favela “bancada” com recursos governamentais ao tráfico de drogas e as constantes brigas pelo domínio do ponto.
O filme é narrado por Buscapé, um garoto da favela que nunca teve coragem para entrar no crime e sempre quis ser fotógrafo. É através da ótica dele que podemos acompanhar os altos e baixos na vida da favela, tudo pela disputa do comando do tráfico.
Pelas lentes do fotógrafo César Charlone flagramos o nascimento de alguns dos principais bandidos cariocas. Longe dos empregos, sem escolas, sem saneamento básico, sem luz e transporte e esquecidos pelo governo, os moradores da favela acabam adentrando a criminalidade. Começam com pequenos furtos até chegar ao grande barato: drogas. E armas. E formação de quadrilhas. E caos. Você já viu essa história antes, claro, fragmentada em noticiários. Aqui ela surge amarrada, na integra, retratando degradação e violência.
Mas longe de ser apenas um auto-retrato sobre o pobre destino dessas pessoas, “Cidade de Deus” é uma aula de história. E de realidade. E de cinema. Nos 135 minutos do filme, conhecemos como funciona o tráfico, da bagunça que o rege, da sua hierarquização até como surgem os novos traficantes. Mais. Descobrimos como o governo tem parte fundamental nisso ao abandonar seu povo a própria sorte.
Com precisão cinematográfica, dinamismo, edição sensacional, bela montagem, cores distorcidas, belo roteiro e piadas na dose certa, “Cidade de Deus” surge como um dos grandes filmes brasileiros dos últimos tempos, rivalizando com a retomada do cinema latino-americano via Argentina (“Nove Rainhas“) e México (“Amores Brutos“, “E Sua Mãe Também”), além de “O Invasor” e “Abril Despedaçado”, claro. Sua força está na história, excelente, que não busca pregar dogmas ou tender a posições, sejam estas políticas ou religiosas. É apenas uma história contada da forma mais real possível, sem dramatizações (os dramas existem, não surgem a toa e nós sabemos os porques) nem buscando ser educativo. É apenas um “foi assim”, num olhar até poético de quem sabe que, como cantam os Racionais MCs, nada como um dia após o outro dia.
Uma das sacadas geniais de Meirelles é que seu longa traz no elenco apenas moradores de comunidades cariocas. Antes das filmagens, realizadas na favela que dá nome ao filme, além de Nova Sepetiba e Cidade Alta, o diretor e a co-diretora selecionaram, entre os inscritos, 200 pessoas para a realização das oficinas de interpretação. Matheus Nachtergaele, que vive Sandro Cenoura, é um dos únicos atores profissionais. E as atuações desses não-atores rendem as maiores surpresas do filme. Alexandre Rodrigues (Buscapé), Leandro Firmino da Hora (Zé Pequeno) e Phellipe Haagensen (Bene) têm atuações notáveis no provável melhor filme de 2002.
“Cidade de Deus” coloca o dedo na ferida, mostra o problema, porém, não traz soluções. Estas devem ser encontradas pelos governantes que, na pior das hipóteses, não deveriam cometer os mesmos erros. Não deveriam. Construído numa área rural a 70 km do centro do Rio, três horas de ônibus até lá, e projetada para abrigar 55 mil pessoas, o Nova Sepetiba é hoje o que era a Cidade de Deus há 36 anos, nascendo como um dos principais projetos da prefeitura de Anthony Garotinho. Vivendo e não aprendendo.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.