Cinema: “Clara Sola”, de Nathalie A. Mesén, usa do fantástico para falar sobre liberdade feminina, sexualidade e religiosidade

texto de Renan Guerra

Clara (Wendy Chinchilla Araya) é uma mulher em torno dos 30 e poucos anos que vive em um vilarejo rural da Costa Rica. Ela mora com a mãe, uma idosa de crenças religiosas fervorosas, e sua sobrinha de 14 anos que está planejando sua festa de 15 anos. Segundo uma crença da mãe, Clara teria tido contato com a Virgem Maria e isso teria lhe trazido poderes curativos, tanto que é comum que fiéis venham a sua casa em busca de milagres. Ao mesmo tempo que poderia curar os outros, Clara vive com um problema na coluna que lhe causa dores e dificuldade ao andar. Esse problema pode ser curado com uma cirurgia, porém sua mãe não aceita que o procedimento seja feito – “Se deus mandou Clara assim, esse era o desejo dele”, diz ela durante certo momento do filme.

Lendo essa sinopse, o filme “Clara Sola” (2021), de Nathalie Álvarez Mesén, que estreia essa semana nos cinemas brasileiros, parece ser um drama barra pesada, não é? Mas não é simples assim encaixar o longa em algum gênero, uma vez que essa narrativa é o esqueleto do filme, pois em seu todo ele é completado por um olhar quase fantástico sobre essa figura feminina que é Clara. Nós vamos conhecendo-a aos poucos e vamos nos familiarizando com esses mistérios que compõe a sua persona – seria realmente ela uma figura mística que tem contato com santos & santas? Seria ela uma figura com poderes mediúnicos que se comunica com a natureza de outras formas? Tudo isso vai formando suposições, porém somos apresentados também aos problemas concretos do dia a dia dela. Por uma religiosidade tacanha, a mãe de Clara a afasta do mundo e tenta limar todos os seus desejos sexuais.

A história muda de figura com a chegada de Santiago (Daniel Castañeda), que vem para cuidar do cavalo da família. Santiago consegue, de algum modo, furar esses bloqueios de Clara e acaba criando uma amizade com ela, porém as coisas ficam nebulosas, uma vez que ele se envolve com Maria (Ana Julia Porras), a sobrinha de Clara. Nesse ponto, o filme ganha esse caráter de despertar sexual e é curioso como isso é apresentado, uma vez que Clara é uma mulher já mais madura e que passa por todos aqueles processos de descoberta do corpo, de conhecer seus desejos e de busca por esse prazer próprio.

São ao mesmo tempo interessantes e estranhas as escolhas da diretora Nathalie Álvarez Mesén na hora de nos contar essa história. Em menos de duas horas, o filme vai passar por tópicos complexos e espinhosos como liberdade religiosa, repressão sexual e prazer feminimo, tudo isso sob a ótica da personagem Clara, que é uma mulher tratada como “anormal” dentro daquele pequeno microcosmo rural em que a família vive. Clara pode ser lida como uma pessoa neuroatípica e, de forma negativa, é sempre infantilizada por essa comunidade que a cerca, sendo protegida do mundo como se ela não fosse capaz de lidar com os outros e nem consigo própria.

“Clara Sola” consegue nos trazer reflexões extremamente interessante sobre religião, liberdade e sexualidade por óticas inesperadas e isso se dá essencialmente por esse caráter místico e fantástico que paira sobre o filme. Apesar do filme transitar entre o drama e o romance, a história acaba se conectando com pares do universo do terror em sua abordagem sobre o feminino, como o clássico “Carrie, a Estranha” (Brian De Palma, 1976) até coisas mais modernas, como “As Boas Maneiras” (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2018). Porém, talvez a conexão mais palpável seja com o também estranho “Border” (Ali Abbasi, 2018), filme sueco entre o romance e o horror que fala sobre personagens outsiders fantásticos em suas jornadas sexuais.

No final das contas, “Clara Sola” pode ser lido por diferentes óticas e, por isso mesmo, é um filme tão rico. Não há uma leitura simples e rasa do filme, pois sua narrativa nos leva por espaços inesperados, culminando em uma sequência final de tirar o fôlego. Belo e estranho, esse é um filme que merece atenção, por isso veja na tela grande e depois aproveite para discutir o filme na mesa de bar!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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