texto por Renan Guerra
O segundo filme de David Cronenberg, lá de 1970, chama-se também “Crimes of the Future”, porém isso é apenas um esclarecimento, já que o filme de que falaremos aqui, de 2022, nada tem a ver com esse de início de carreira do diretor canadense. Famoso por obras marcantes como “Videodrome” (1983), “A Mosca” (1986) e “Crash – Estranhos Prazeres” (1996), Cronenberg começou a trabalhar no esqueleto do que viria a ser “Crimes do Futuro” nos anos 1990.
Em 2003, o roteiro entrou em pré-produção com o título de “Painkillers” e Ralph Finnes e Nicolas Cage chegando até a serem cotados para o papel principal. Porém, em meados dos anos 2000, Cronenberg deixou claro que não tinha mais interesse em tocar o projeto para a frente, o que faz certo sentido, já que depois de “eXistenZ” (1999), o diretor deixou de lado seu universo clássico de horror e ficção científica e partiu para explorar outros cenários, como o universo da máfia nos excelentes “Marcas da Violência” (2005) e “Senhores do Crime” (2007) e a psicanálise em “Um Método Perigoso” (2011).
No novo século, o único filme que Cronenberg assinou o roteiro foi “Cosmopolis” (2012), e ainda assim era um roteiro adaptado do livro de mesmo nome de Don DeLillo. Nesse sentido, “Crimes do Futuro” é um filme de retornos para o diretor: é a primeira vez em mais de 20 anos que temos um roteiro original dele, voltado para o universo da ficção científica e do body horror. Lançado no Festival da Cannes de 2022, a película dividiu opinões e causou reações diversas, entre o nojo, o amor e a indiferença.
Chegando agora aos cinemas brasileiros (e indo depois, no dia 29 de julho, para a MUBI), “Crimes do Futuro” se passa em um futuro nebuloso, onde a degradação do mundo leva a mutações humanas. O corpo humano não tem mais a capacidade de sentir dor e passa por uma espécie de evolução interna: novos órgãos passam a surgir em diferentes pessoas, como espécies de nódulos com novas funções.
Saul Tenser (Viggo Mortensen) é um artista performático que aproveita os órgãos que crescem em seu corpo para transformar isso em arte; para isso ele conta com a ajuda de Caprice (Léa Seydoux), sua parceira artística que tatua esses novos órgãos e os extrai em cirurgias que funcionam como happenings. Esse trabalho gera o fascínio de Timlin (Kristen Stewart) e Wippet (Don McKellar), dois funcionários do novíssimo departamento nacional de registro de órgãos.
De forma completamente sedutora e charmosa, Cronenberg nos conduz por esse universo que é sujo, obscuro e cheio de mistérios. Com a não presença da dor, esses corpos passam a ser explorados de outras formas: o sangue, as vísceras e os fluidos corporais ganham outras camadas e as cirurgias passam a ser realizadas de qualquer modo, por qualquer um. Se cortar, se mutilar e explorar o próprio corpo é mais que uma nova arte, é uma nova expressão da sexualidade. A cirurgia passa a ser o novo sexo, dirão os personagens.
Se sexo é cirurgia, obviamente Cronenberg não tem medo de filmar isso de forma gráfica e direta. Misturando efeitos práticos e digitais, “Crimes do Futuro” é deliciosamente incômodo, com corpos abertos, órgãos expostos e uma infinidade de cicatrizes sendo exploradas de diferentes modos. Lembra daqueles personagens que sentiam tesão em acidentes de carro lá em “Crash”? É como se aqui eles fossem elevados a outra potência. E isso ganha contornos maravilhosos nas atuações do trio Viggo Mortensen, Léa Sedoux e Kristen Stewart, que conseguem criar tensão sexual mesmo em meio a sangue e sujeira.
De ritmo lento, bem à moda dos filmes de arte, David Cronenberg constroi um filme complexo, com mistérios bastante intrincados e que pode até mesmo afugentar uma parcela do público, mas que é um interessantíssimo exemplar do cinema do diretor canadense. A virulência do body horror é extremamente bem utilizada para se pensar sobre a nossa vida em sociedade, a destruição do planeta, a estigmatização de pessoas que vivem à margem da sociedade e o futuro da arte. “Crimes do Futuro” é, da maneira mais estranha possível, um filme sedutor sobre os horrores do futuro e sobre a criação de novos significados da nossa existência em meio ao caos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.