entrevista por Dri Cruxen
Principal banda de Brasília nos anos 2000, o Móveis Coloniais de Acajú anunciou hiato de suas atividades em 2016, deixando uma grande lacuna no indie brasileiro. Porém, recentemente, os ex-integrantes André Gonzales, Beto Mejía, Esdras Nogueira e Fernando Jatobá se uniram ao músico e produtor gaúcho Gustavo Dreher e fundaram juntos a Remobília, que acabou de lançar seu disco de estreia, “Ponto Final” (2022).
“’Ponto Final’ sugere ruptura e ao mesmo tempo recomeço”, revela André, sobre o nome do álbum. A arte da capa, também assinada por ele, tem a foto dos integrantes numa passarela de Brasília. Beto Mejía, que não pôde estar geograficamente presente, foi colocado em forma de lambe-lambe. A foto sugere expansão, justamente frisando que não existem pontos finais, tudo pode ser recomeço, reencontros.
O álbum mescla experiências dos projetos solo dos integrantes e traz influências de french house, rock gaúcho, vaporwave e música afro-brasileira. Com nove faixas, o disco tem participações especiais de Moreno Veloso, Marcelo Callado, Frank Jorge, além da poetisa e rapper Kimani e dos músicos da cena brasiliense Amanda Guimar, Layla Jorge, o requisitado baterista Txotxa e o trompetista Haniel Tenório.
Conversei com André Gonzales e Gustavo Dreher sobre processo criativo, mercado fonográfico, idealização do disco, influências e muito mais.
A Remobília seria uma ressureição da Mobília, um Móveis 2.0? Qual foi a ideia inicial?
André: A Remobília surgiu no fim de 2019 e não era nem uma banda, e sim um nome de projeto de show intinerante. Uniria meu projeto solo, Sr. Gonzales, o projeto infantil do Beto “Onde o Infinito é o Som” e o projeto instrumental do Esdras. A gente iria fazer uma banda pra tocar músicas desses três projetos e também tocar novas versões de músicas do Móveis, porque havia demanda latente pra isso acontecer. Quando chegou 2020, o pessoal do festival CoMA sugeriu que a gente lançasse algo novo, um single. Beto e eu já havíamos tocado no CoMA com nossos projetos, então esse single seria meio que um esquenta pra gente tocar de novo no festival. Topamos gravar e acabamos fazendo um pouco mais. No total foram três rascunhos de músicas, algumas fotos, isso tudo uma semana antes de decretarem o lockdown. Durante o primeiro ano de pandemia fizemos mais uma música, compilamos tudo e no fim de 2020 lançamos o EP “Janelas”, com quatro faixas. No decorrer de todo esse processo nem pensávamos se isso viria a ser uma banda. A gente estava pensando mais em ter um espaço de expressão. Acabou que nos tornamos banda autoral.
Como diferenciar a Remobília do Móveis, já que o próprio nome se remete?
André: No começo o nome Remobília era justamente pra mostrar: “olha o que aconteceu com os integrantes do Móveis, olha o que eles estão fazendo agora, escute Móveis”. Tinha sim a ver com o Móveis Coloniais de Acajú. Porém, no momento que a gente fez o EP, nossa perspectiva mudou um pouco. Até chegamos a cogitar trocar esse nome. Só que já tinha uma galera acompanhando nas redes sociais, o nome já tava lá… E apesar da associação que o nome traz, não somos uma continuação do Móveis. O nosso som traz um pouco do Móveis no DNA porque Esdras, Beto, eu, a gente é o Móveis. Tocamos juntos desde o início, nossa forma de fazer música tem uma linguagem bastante característica. Mas a Remobília é também o Dreher e o Jatobá, que somam outras influências. O Jatobá entrou na reta final da Mobília, então nunca tinha gravado, produzido nada com a gente. O Dreher trouxe a sonoridade do rock gaúcho. O público vai entender essas diferenças nas canções. É um som mais maduro.
O debute “Ponto Final” é um compilado desse tempo que vocês estão juntos como banda. Houve aproveitamento dos trabalhos solo de cada integrante ou o disco inteiro nasceu de composições coletivas? Como foi o processo de idealização/gravação?
André: Tirando o comecinho de “Ponto Final”, que teve início lá no Móveis, todas as músicas do disco foram feitas durante esses dois anos de pandemia. Sobre o processo de gravação, a gente passou 2020 inteiro se reunindo virtualmente e compondo. Em 2021 isso virou mais pessoal, cada um foi fazendo uma parte das músicas sozinho em casa. Quase todas as faixas foram produzidas pelo Dreher, então ele passou muito tempo mexendo, gravada uma bateria, depois mexia e virava outra bateria, virava outra guitarra… Isso deu muito a cara da Remobília, na minha opinião. O processo foi meio maluco. Eu particularmente fiquei mais distante em 2021, fiquei mais triste, tive depressão. Este ano, na finalização do disco, eu participei das letras e tal.
O álbum conta com várias participações: Frank Jorge (Graforreia Xilarmônica), Kimani, Moreno Veloso, Marcelo Callado (Do Amor), Txotxa (Maskavo Roots), Amanda Guimar (bandolim), Layla Jorge (backing vocais). Tem mais gente? Quem intermediou esses feats?
André: Tem o Txotxa, o Baldu e o Thiago Totem, que são grandes parceiros nossos, sempre tocamos juntos. O resto dos convidados foram Beto e Dreher que moveram as participações. O Dreher é um tesouro perdido aqui em Brasília. Eu sempre o chamei assim (risos). Ele entrou pro Sr. Gonzales e deu a cara pro projeto, é o maestro. Não sei se você sabe mas ele gravou todas as bandas do rock 90. Graforreia, Ultramen, Júpiter Maçã… Tudo o que aconteceu no rock gaúcho dos anos 90 o Dreher esteve envolvido. O Frank Jorge por exemplo é amigo de longa data dele. Depois de sair do Sul o Dreher foi pro Rio e passou a trabalhar no Estúdio do Dado (Villa Lobos). Lá, gravou uma galera, Chico Buarque, Beth Carvalho, várias pessoas. O Moreno é amigo dele, o Callado também.
Dreher: O Beto convidou as meninas, Amanda e a Layla, aqui de Brasília. A Kimani ele conheceu em São Paulo quando trabalhou no estúdio Da House. Ficaram amigos e o convite veio natural. Os demais, tudo por afinidade. O André já te deu o toque, né? Moreno conheci no Rio, fui técnico de som daquele disco “Máquina de Escrever Música”, que ele gravou com Domenico Lancellotti e Kassin, na virada do século. O Frank Jorge sou fã desde criança. Meu primeiro show de rock, com 12 anos, foi TNT, Cascavelletes e Replicantes, em Novo Hamburgo (RS), onde eu morava. Nos tornamos muito amigos, trabalhamos em vários discos juntos, eu fui da primeira banda solo dele fora do Graforreia. Produzi com ele o disco dos Cowboys Espirituais. Ele é um parceiro fácil e muito rápido. Por exemplo, fiz a música (“Viver de Outro Modo”, que fala sobre a precarização do trabalho na pós-modernidade) num dia e mandei pra ele. No outro dia ele já tinha mandado a letra. Em dois dias estava resolvido. Todo mundo curtiu e ela entrou no repertório. Com o Moreno, a música (“Novo Delírio”) já estava pronta, a letra quase… Ele mudou um pouco da letra quando gravou. Moreno também tocou cello em “Janeiro”. O Marcelo Callado, fiquei muito amigo dele no Rio, tocávamos juntos, quase montamos uma banda… Isso na época que o Do Amor ainda se chamava Carne de Segunda…
O primeiro disco de uma banda é sempre uma caixinha de expectativas… Pensando em pré-save, algoritmo e sabendo que lançar disco não é mais tão interessante em termos de rentabilidade, vocês consideram ser mais vantajoso ir lançando singles como estratégia para alavancar números de players ou soltar o disco na íntegra como obra artística?
André: A gente soltou singles antes de lançar o EP em 2020. Esse ano a gente também soltou outros dois singles antes de lançar o disco completo, então entendemos esse momento. Mas sendo muito sincero, não estamos tão preocupados com números, com o resultado em si. O disco é importante pra você compreender o artista de maneira mais profunda, então faz diferença lançar um disco completo. Apesar de hoje você não ter nas mãos o encarte, a arte, é interessante pra qualquer artista ter a obra, porque isso posiciona o artista, principalmente o primeiro disco. Nessa nova fase, nada é mais vantajoso ou menos vantajoso, tudo é válido. Ainda mais sendo uma banda de nicho, como tudo hoje… A relação da gente com a música e da gente com o público é diferente, é nossa, própria.
Recentemente a banda Jovem Dionísio alcançou o topo do Spotify Brasil com “Acorda Pedrinho” pelo simples fato da música ter viralizado no TikTok. Outro exemplo foi a cantora pop Halsey ter afirmado que a gravadora só deixava ela lançar música se fosse viral no TikTok. Como artistas independentes e tendo experiência em gerenciamento de carreira, pegando o exemplo do Móveis, que foi considerado a banda brasiliense com maior destaque no país nos anos 2000, o que você pensa sobre essa necessidade criada de demanda TikTok e seus sucessos instantâneos?
André: A gente entende essa realidade de consumo de música. Mas no nosso caso, a gente pensa na música como arte mesmo, expressão do que a gente é, do que a gente sente, do que a gente vive, do que a gente quer pra nossa sociedade. É uma visão diferente de quando você está pensando em mercado. Mesmo o Móveis tendo sido um exemplo de case de sucesso independente, a maioria das músicas que a gente fez foram verdadeiras, tudo que a gente fazia era orgânico, sempre focado na troca com o público. Se a gente vai ser viral no TikTok, qual será nossa estratégia de redes sociais, sendo muito sincero, não sei. Eu, André, tô muito cansado de redes sociais. Elas acabam sendo reflexo dessa sociedade que a gente está vivendo, do ódio, da guerra que está acontecendo. Eu quase não uso, acho que até vou voltar a usar por causa das eleições. O resto do pessoal usa. Esdras usa mais, ele é o cara que está mais a frente das nossas redes. Mas é isso, as redes vão continuar sendo nosso espaço de contato com o público, assim como foi com o Móveis. Usaremos com um pouco mais de tranquilidade em relação a resultados, sabe? Talvez tenhamos mais maturidade nisso.
Vamos falar sobre as influências do álbum. Tem vaporwave, french house, rock gaúcho, o que mais?
André: Vaporwave é um estilo que surgiu em 2011. O pessoal pegava músicas, principalmente as dos comerciais da década de 1980, alteravam sua rotação, deixavam duas vezes mais lentas e faziam músicas em cima disso. Dreher e eu, a gente adora. Sempre tivemos essa vontade de produzir um vaporwave brasileiro, então acabou vindo pro disco. French House veio pelo Jatobá. Ele inclusive tem uma banda chamada Moscolês, apoiada nesse gênero, que é basicamente formado de bandas que surgiram a partir do Daft Punk. O rock gaúcho é o Gustavo Dreher. Então, esse disco, às vezes eu acho que tem uma cara de rock 90, meio Blur, que é uma banda que a gente gosta pra caramba, mas não fica ouvindo… São coisas que saem natural da gente, que são a gente. Mas tem muita coisa. E muita coisa também foi mudando durante a fase de pós produção, na mão do Beto e do Dreher. O Beto trouxe influências da música afro-brasileira, que é um tema que ele domina e inclusive está fazendo mestrado sobre. Tem muita relação também com as religiões afro-brasileiras. Essa referência fica bem evidente em “Lâmina de Faca”. Em “Feito Nuvem”, tem um poema de Mia Couto, escritor e ecologista africano.
A faixa-título, que vocês já haviam lançado como single, tem participação especial da Kimani e fala sobre interrupções. “Tudo é ponto final”. “Todo fim é um começo”. “Nada acaba, nada finda, tudo passa”. “A vida ecoa”. Vocês perderam algum ente querido nesse período que o disco foi feito?
André: A nossa vivência durante a pandemia foi muito ruim. Vivemos um luto profissional e social. O pai do Beto faleceu. Muita gente do público 60+ do Sr. Gonzales também, e isso deixou a gente muito triste, com raiva. A fala da Kimani, essa artista sensacional, o que ela escreveu deu um tom de esperança pra música. Eu não consigo nem explicar… O comecinho da faixa remete ao Móveis. No meio, na parte da Kimani, rola um french house de fundo.
Em “Nosso Nome é Agora” vocês discorrem sobre medo, morte, revolta, mas também enaltecem o samba e o carnaval. Qual a história dessa música?
André: “Nosso Nome é Agora” é uma homenagem direta a Elza Soares. A última postagem dela antes de partir foi “meu nome é agora”, em referência ao seu filme, que tem esse mesmo nome. É interessante falar sobre como a letra se encaminhou… Essa canção é um vaporwave do primeiro sucesso da Elza “Se Acaso Você Chegasse”. Pegamos parte da melodia onde ela faz o solo e deixamos muitas vezes mais lenta, modificamos bastante. Se você prestar atenção, dá pra ouvir a voz dela de fundo, no início da música. Durante a fase de composição a gente até pensou em tentar uma participação direta dela, mas como ela veio a falecer, tudo virou homenagem mesmo. A música começou de um jeito e depois mudou (com a morte dela). Estava bem diferente antes, um pouco mais deprê. Quando a gente incorporou o samba, que é muito presente nas melodias da Elza, aí ficou legal. “O carnaval como um espaço de salvação”, “nossa arma é amar”. Eu gosto muito dessa última frase.
– Dri Cruxen é uma jornalista nômade digital, que desde 2011 viaja pelo país em busca de vivenciar um pouco da cultura brasileira. Acumula festivais de música na bagagem desde o SWU e ama comer em restaurantes veganos.