texto por Renan Guerra
No cinema internacional temos uma gama bastante diversa de filmes que se debruçam sobre o universo da pandemia de HIV/AIDS, desde os iniciais “Buddies” (Arthur J. Bressan Jr., 1985) e “Meu Querido Companheiro” (Norman René, 1989) até obras mais modernas como “The Normal Heart” (Ryan Murphy, 2014) e o excelente “120 Batimentos Por Minuto” (Robin Campillo, 2018). Porém, quando olhamos para o Brasil, temos poucos filmes de ficção sobre esse tema, que geralmente aparece de forma pontual em algumas histórias. Nossa melhor representação ainda está nos documentários, como no ótimo “Carta Para Além dos Muros” (André Canto, 2019).
Nesse sentido é de se celebrar que “Os Primeiros Soldados”, de Rodrigo de Oliveira, busque fazer um retrato bastante íntimo e pessoal da chegada do HIV/AIDS no Brasil em meados dos anos 1980. Quando se pensa em filmes sobre a pandemia de AIDS nos anos 80, estamos sempre preparados para lidar com personagens morrendo no final, mas o filme de Oliveira cria uma outra ordem de narrativa que nos coloca em contato com personagens com outra perspectiva. Dessa forma, ao final da sessão, a sensação não é de amargor, mas de aconchego depois de um filme tão forte sobre luta e solidariedade dentro da comunidade LGBTIA+.
“Os Primeiros Soldados” começa na virada de 1983 para 1984 focando em três personagens: Suzano (Johnny Massaro) voltou da França para reencontrar a irmã e o sobrinho, ao mesmo em tempo em que começa a sentir os primeiros sintomas da AIDS em seu corpo. Rose (Renata Carvalho) é uma travesti que se apresenta na boate Genet, um espaço seguro para pessoas queer na cidade der Vitória – local onde toda a ação do filme se passa. Na mesma boate, Humberto (Victor Camilo) registra o cotidiano de Rose com uma grande câmera, enquanto ele próprio se envolve em um relacionamento amoroso durante a noite da virada.
Um adendo antes de seguir: a boate se chama Genet, clara homenagem a Jean Genet, escritor, poeta, dramaturgo e ativista francês fundamental para a história LGBTIA+. Autor do romance “Querelle” (1947), Genet dirigiu um único filme, “Un Chant d’Amour” (1950), belíssimo tratado sobre o amor entre homens. Além do nome da boate, o diretor Rodrigo de Oliveira faz sutis homenagens ao filme de Genet durante “Os Primeiros Soldados”. Vale se atentar que também aparecem durante o filme referências a “Um Bonde Chamado Desejo” (1947), de Tennessee Williams, outro autor fundamental para a história LGBTIA+.
Voltando ao filme, depois desse primeiro ato na virada do ano, a história faz um salto temporal de oito meses e iremos encontrar os personagens em outro cenário. A partir daqui, a trama terá uma virada na sua própria linguagem narrativa e não daremos mais spoilers, para que a sua experiência com a história seja única. De todo modo, o que podemos celebrar é a forma como “Os Primeiros Soldados” constrói esse espaço-tempo de sua narrativa de forma tão envolvente, com um figurino cuidadoso e aquele clima bem anos 80, tanto nas cores quanto na ambientação.
Trata-se de um filme de personagens e o elenco é a força que sustenta a complexidade dessas personas que aparecem na tela. Victor Camilo transparece o medo e a dúvida de seu Humberto com o olhar. Johnny Massaro se mostra entregue fisicamente ao papel, construindo detalhes de Suzano, desde um gesto até o olhar, sempre quase esvaziado pelo medo e pela dúvida. A coisa mais apaixonante do filme é com certeza Renata Carvalho, pois ela enche sua Rose de complexidades e humanidades, transbordando emoção em cada cena. Há uma sequência de sublime poder em que Rose faz um monólogo em direção à câmera mostrando que Renata é uma das grandes atrizes de sua geração, e que merece mais personagens a sua altura no cinema.
Rodrigo de Oliveira consegue pinçar a beleza em meio a dor em “Os Primeiros Soldados” filmando seus personagens com carinho e respeito, e os apresentando a partir dessa ótica de comunhão entre amigos, de apoio em meio ao caos. Em tempos de tanto ódio e rancor, um filme como esse é uma espécie de afago.
Ps. “Os Primeiros Soldados” também utiliza uma espécie de joguete com uma imagem bélica que persegue o personagem principal, uma sequência de um filme antigo de guerra que ele viu no cinema. Esses soldados também servem com figura metafórica para os primeiros que enfrentaram o HIV/AIDS nos anos 1980. Sem nenhum demérito ao filme, já que a metáfora faz sentido dentro desse microcosmo que o diretor cria aqui, é importante frisar que, na atualidade, quando se fala de enfrentamento ao HIV/AIDS (assim como outras doenças, como o câncer ou mesmo o coronavírus), se questiona o uso de metáforas bélicas ou de batalha, pois cria-se um peso sobre o paciente: você tem que ser um guerreiro, um soldado com louros ou você será um perdedor, e no final das contas isso não é o melhor dos pesos para um paciente já doente.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.