entrevista por Homero Pivotto Jr.
O Test, uma das bandas mais peculiares do grindcore nacional — quiçá planetário — prepara o lançamento do “Disco Normal”. Com esse título, pode parecer que o duo paulista abandonou seu lado desafiador/questionador de conceitos e abraçou um viés de trabalho mais ortodoxo. Ledo engano. O normal para Jão Kombi (voz e guitarra) e Barata (bateria) não deve ser o mesmo que o da maior parte dos terráqueos.
“A gente já sabia que o nosso normal não é o normal convencional”, adianta o baterista sobre o novo trampo, quarto play completo em meio a uma quantidade considerável de EPs e splits deixados para o mundo em 12 anos na estrada dos sons tortos.
A obra terá somente cópias físicas, sem publicação nas plataformas digitais. Mas antes de o registro ir para as prateleiras alheias, o Test disponibilizou um documentário mostrando a saga das gravações, que teve estreia disputada no festival In-Edit Brasil 2022, em junho, e segue disponível no site do evento.
Essa inversão de uma possível ordem natural, em que disco sairia antes do longa-metragem, só reforça a linha de pensamento incomum do conjunto que já arrancou elogios de nomes como Shane Embury (Napalm Death) e Max Cavalera (Soulfly / Cavalera Conspiracy / Killer Be Killed).
“Acho que dessa maneira vai ser melhor divulgado. O plano é usar o filme como propaganda, criar certa curiosidade”, observa João, complementando que a expectativa é de o álbum sair ainda este ano em LP, CD e K7.
O vídeo, permeado de efeitos sonoros e visuais, com ares de VHS e estética glitch em diversos momentos, documenta a captação de vozes, guitarras e bateria em locais que a maioria das bandas não consideraria aptas para tal. Entre os espaços escolhidos constam pista de skate, estação abandonada de trem, concha acústica, área embaixo de viaduto e até uma capela transformada em airbnb.
Já o disco apresenta um Test ainda de “sonoridade triturante”, como bem pontuaram os colegas do Sounds Like Us, cada vez mais ousado e adentrando um universo de experimentalismo despretensioso.
Barulhos que parecem de videogame, ronco de patrolas, microfonias, percussão em lata e outros ruídos adaptam-se aos riffs bem pensados e às batidas precisas e nada óbvias da banda. Tudo captado por gravadores digitais ou de fitas, celulares e microfones variados.
Antes das prensagens do álbum propriamente ditas, devem ser liberados CDs singles. O primeiro promete ser da faixa de abertura, que leva o nome de “Derrama”, avisa João: “Aí vai vir a versão do disco, demo, remix, ao vivo e uma versão que o Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, fez. Ele escreveu a letra, então pedi uma versão para o cara e ficou muito foda”.
Em tempo: vale reforçar que o Test não tem vocação para ser uma banda usual. Da formação reduzida à iniciativa de carregar o próprio equipamento para se apresentar na rua, passando pelos shows em formato big band ou a ideia de fazer um split tocando ao mesmo tempo com outra banda em cima da mesma base percussiva (deixando para o ouvinte optar qual composição quer escutar ao escolher o lado do som nos alto-falantes), atestam que o duo não se prende a convenções.
Na entrevista que segue, João e Barata respondem questões referentes ao “Disco Normal”. Rótulos musicais, vocalizações fora do padrão, convidados especiais, a presença de um advogado, lírica e outros temas estão na pauta.
O documentário ressalta o caráter experimental do Test, mostrando gravações em locais não usuais para se registrar material que vai entrar em um disco homônimo ao filme. Somado a isso, tem-se toda a história pregressa da banda, que já flertou com diversos gêneros, alguns extremos (death e black, por exemplo) e outras fora desse nicho mais pesado (como ritmos percussivos brasileiros). Porém, já na abertura do filme, vocês mesmos — presumindo aqui que essa nomenclatura foi usada com consentimento da banda, já que o próprio João assina a direção com o Tomás Moreira — tem um aviso de que o doc é “a história das gravações do ‘Disco Normal’ da banda de grindcore Test”. Por que classificar o trabalho com apenas este rótulo de música? Concordo que sejam um representante do grind, mas também penso que o som de vocês vai além.
Barata — Mesmo experimentando, colocando outros ritmos e com gente de outros estilos sempre participando, a gente é uma banda de grindcore. Apesar de ter black metal, death metal, batuque e até cuíca no disco novo, a base e o grosso do nosso som é grindcore. Até ia facilitar conseguir mais coisa e tocar em outros lugares se a gente falasse que é uma banda experimental, porque muitos produtores e casas de show tem preconceito com banda de metal e grind. Mesmo sem nem ter ouvido a música ou visto nosso show, dizem que o som é muito pesado pra casa e que o público não vai gostar. Mas aí a gente ia estar tentando se encaixar e falando algo que a gente não é.
João — Já faz um tempo que, pra mim, o que a gente faz é simplesmente música. Mas se for necessário uma classificação, e se for fazer isso, acho que grind seria o estilo mais próximo do que fazemos.
E como se deu a escolha dos locais de gravação, que contemplam concha acústica, pista de skate, espaço embaixo de viaduto e até uma antiga capela? Vocês já haviam testado como o som rola nesses picos ou foram até eles buscando as possibilidades que poderiam aparecer?
João — Fomos buscando experimentar e ver o que ia acontecer. Em muitos lugares, você fazendo pequenos Testes, como bater palmas, já da pra sacar mais ou menos como soam.
Como foi a pré-produção desse material, que acredito ter ocorrido ainda em tempos pandêmicos?
Barata — Um pouco antes da pandemia, a gente tinha ensaiado umas cinco ou seis músicas, mas nenhuma 100% pronta. Em 2020, o João se mudou pra outra cidade e me mandou algumas gravações pela internet e eu fiquei ensaiando em casa sozinho, inventando as baterias. A maioria das músicas o João fez sozinho, e eu aprendi nas semanas que a gente se juntou pra gravar ou já na hora de gravar. Tem música que a primeira vez que eu toquei inteira é a versão que tá no disco.
E sobre a pós-produção: foram vocês mesmos que montaram as faixas e mixaram?
João — Isso, eu montei e mixei as músicas.
Fora as partes mais tradicionais das composições, os barulhos captados (como o de uma patrola, na qual o João aparece registrando o som com um gravador portátil, por exemplo) já tinham destino certo nas faixas? Ou foi meio “vamos gravar esse troço e depois a gente acha onde usar”?
João — Teve um pouco de cada coisa: algumas eu já sabia onde colocar e outras fui decidindo na mixagem.
Praticamente em todos os locais onde vocês aparecem gravando havia a presença de alguém identificado no documentário como “advogado da banda”. A decisão de ter uma pessoa versada na lei foi prévia, para evitar qualquer eventualidade, ou teve algum acontecimento anterior que os motivou a ter o profissional junto? E ele é alguém que curte som, ajudou em outras tarefas fora do escopo jurídico?
João —O Jeferson é um grande amigo de Bauru, que faz parte da cena, toca em diversas bandas (Overthrash, Romero), organiza shows também. Ele se ofereceu pra ajudar na gravação, deu coincidência de ser advogado. A gente nunca se preocupa muito com a legalidade ao usar os espaços públicos. No filme ele fez papel de advogado, acalmando uma senhora que foi reclamar do barulho.
E como foram as escolhas das colaborações extra-Test que estão no álbum (Jonnata Dol, Lucas Rosso, Thais Blanco, Orquestra Geek de Bertioga, Iggor Cavalera)? Foi afinidade musical? Busca por algo diferente, como no caso do Autoboneco, que faz um vocal mais limpo?
João — Sim, foi buscar algo que não conseguiríamos fazer. As ideias foram surgindo durante a gravação.
E o Iggor, que seria a participação ‘mais famosa’, foi de boas tê-lo nesse trampo? Vocês têm uma boa relação com os irmãos Cavalera, certo?
João — Foi tranquilo. Precisava de alguém pra fazer um processamento eletrônico e tive a ideia de chamá-lo. Acompanho todos os projetos que ele se envolve. Muito legal ele ter aceitado participar, sou fã número um dos irmãos.
Já que falamos em vocais há pouco: tu (João) apareces fazendo uns registros de vozes que não são necessariamente limpos, mas fogem dos berros tradicionais. E isso é algo que já vinha sendo feito, mas agora parece que ganha mais espaço. Procede? E como acredita que o uso dessas vocalizações menos comuns para um estilo extremo colaboram para que o trampo fique interessante?
João — Acho que, realmente, nesse disco tem mais vozes diferentes do que somente gritados e guturais. Parece clichê, mas foi algo sem pensar, quando fui criando as linhas de vocais, fui sentindo que combinava mais assim.
Seguindo na questão das vozes, mas passando para a parte lírica. O Test, como é dito no documentário, costuma pedir para amigos ou músicos que admira escrever o que vai ser cantado. Por quê? Não gosta do processo de criação das letras?
João — Não temos capacidade de fazer letras. Logo no começo da banda tive essa ideia de pedir pra outras pessoas de fora fazer as letras e deu supercerto. É muito massa poder contar com tanta gente talentosa, de diferentes cenas, colaborando com nossa música.
Tem sido dito que o “Disco Normal” deve sair só em formato físico. O que os levou a essa decisão?
João — Acho que dessa maneira vai ser melhor divulgado. O plano é usar o filme como propaganda, criar certa curiosidade em torno do disco, algo difícil de acontecer se você tem a opção de clicar logo em seguida e ouvir como é. E quando a pessoa adquire um formato físico, ela ouve com mais atenção.
E para os shows, pretendem incorporar mais gente para executar os temas o mais próximo possível de como foram gravados ou usar bases pré-gravadas de alguns trechos?
Barata — Base pré-gravada não, mas a gente sempre gosta de ter gente participando das apresentações. Porém, sem o pensamento de deixar o show o mais perto possível do que a gente fez no disco. No show de lançamento do documentário participaram Kiko Dinucci, Jonnata Doll, Tomás Moreira e o Aran. Uns deixando mais parecido com o que tá no disco, outros não. .
Por falar em “Disco Normal”… acho que o trabalho pode ser muitas coisas, mas não normal. Qual a ideia em batizar o álbum assim?
Barata — Os dois últimos discos — “Espécies” (2015) e “O Jogo Humano” (2019)—, e o “Otomanos” (split com o D.E.R em que as duas bandas criam músicas diferentes em cima da mesma bateria), deram muito trabalho pra explicar o que a gente tinha feito. Principalmente em inglês e espanhol. Esse, antes de ter qualquer música nova, a gente decidiu que ia fazer um disco normal. Mas mesmo assim a gente já sabia que o nosso normal não é o normal convencional. Se pá o nosso normal é esse mesmo. O que é normal? Existe um normal?
– Homero Pivotto Jr. é jornalista e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.