entrevista por Thiago Sobrinho
Explorar vazios musicais foi o que norteou o músico cearense Fernando Catatau em seu primeiro álbum solo da carreira. Lançado em fevereiro de 2022, as 11 faixas do álbum homônimo sintetizam os novos voos de um dos artistas mais inventivos e sensíveis da música brasileira.
Aos 50 anos de idade, Fernando Catatau é figurinha carimbada na nossa cena musical independente. Algo que acontece desde meados da década de 1990. Parte desse prestígio se deve às guitarras ruidosas e a inventividade empregada no Cidadão Instigado, grupo que possui na bagagem quatro álbuns, sendo o último deles o roqueiro “Fortaleza” (2015).
Acrescente aí o trabalho de Catatau como produtor e parceiro de nomes como Arnaldo Antunes, Otto, Vanessa da Matta, Karina Buhr, Test, Juçara Marçal, entre outros. Contudo, em seu disco solo, Catatau entrega uma nova faceta. Sobretudo quando o assunto é a forma que a guitarra elétrica aparece em suas novas composições.
“No Cidadão Instigado, a guitarra estava sempre preenchendo os vazios. Queria que nesse disco ele tivesse mais vazios. Para voz, e até para outras coisas, que é uma linguagem que a galera usa muito na música pop”, explica Catatau ao Scream & Yell.
Não que a relação atual do músico com o instrumento que o acompanha há tanto tempo esteja estremecida. Mas houve momentos de afastamento. “Passei muitos anos em crise com a guitarra. Fiquei quase dois anos sem encostar. Pegava ela só para compor. Agora estou curtindo voltar a tocar”, comenta ele.
E esse reencontro acontece justamente quando Fernando Catatau apresenta suas novas canções ao público. Músicas que foram compostas antes da pandemia e que refletem o seu retorno a Fortaleza após 15 anos vivendo em São Paulo.
“Fernando Catatau”, o álbum, traz o músico acompanhado em quase todas as canções por Dustan Gallas (baixo, synth, piano, cordas) e Samuel Fraga (bateria), com participações de Yma, Melindra Lindra, Tina Reinstrins, Juliana R, Giovani Cidreira e Uirá dos reis (vozes), Thaís de Campos e Vivi Rocha Jones (percussão), Marcio Resende e Manoel Cordeiro (guitarras) e Clayton Martin (bateria eletrônica).
Na conversa abaixo, Fernando Catatau aprofunda seu olhar sobre o álbum, de como o tempo o auxilio a entender o próprio material, fala da influência da cidade de Fortaleza sobre o repertório, e sobre samba, guitarra, música pop e, claro, Cidadão Instigado: “A gente não acabou a banda”, avisa Catatau. Leia a conversa na integra abaixo.
Esse seu trabalho solo estava pronto no início de 2020 e a pandemia o fez adiar o lançamento por um bocado de tempo. Como tem sido apresentar essas canções novas, ao menos para o público, mas que existem há um tempão?
Eu estava com ele, em fevereiro de 2020, praticamente pronto. Passou um tempão para o disco ser lançado, mas quando reativei o disco na minha cabeça… acho que o mais forte é dentro. Parece que é antigo, mas não é. Ninguém viu, mas para mim era.
Eu fiz o show de lançamento no Sesc Pompeia. Também já fizemos em Fortaleza. Foi muito louco trazer esse espírito. Ele fala de uma época. Ele foi composto quando eu vivia em Fortaleza. E é uma mistura de sensações. É como se ele tivesse passado pela pandemia. Porém, já eram as minhas questões de vida.
E, durante a pandemia, fui compondo muitas coisas. É quase como se eu quisesse ir para outro lugar, mas tive que voltar (para Fortaleza) e entender esse tempo que passou.
Estar tocando esse disco agora tem sido muito bom. Ele veio com outro frescor. Trazer essas questões agora num pós-pandemia, que nem acabou direito, tem sido muito forte.
Ficar quase dois anos com um disco pronto sem poder lançar mudou a sua percepção sobre esse trabalho?
Acho que mudar não é bem a palavra. Acho que abrangeu. Abrangeu em termos de até entender coisas que eu estava falando ali. E até reafirmar.
Quando escrevo, as letras são muito pessoais. Existiram muitos conflitos para fazer esse disco. Outras clarearam. Uma coisa que escrevi naquela época, hoje sei muito melhor.
Tá sendo muito louco porque saí de São Paulo em 2016 porque dei uma saturada de tudo: cansei do circuito, dos trabalhos… Fui para lá e precisava me religar com Fortaleza e as minhas raízes. Por causa dessa ida, eu tinha planos de gravar discos, fazer algo mais pessoal.
É um lance muito novo para mim essa coisa de fazer um disco solo. Tinha até meu projeto instrumental. Fui deixando coisas que eu não tava mais afim para trás e traçando novos caminhos.
Como chegou ao entendimento de que o disco deveria soar assim?
Ele foi aparecendo no processo. Cada semana estava com um pensamento diferente. Uma hora queria fazer um disco de samba, de reggae. Mas nada fixava na minha mente. E nunca foi assim, mesmo no Cidadão Instigado. Sempre tem um lance que não consigo visualizar, mas acaba vindo.
Tinha algumas coisas que eu queria. Sabia o que eu queria de som. Mas foi tão louco porque até o último momento eu não tinha arranjos, eles foram surgindo nas gravações.
Esse trabalho fala sobre a minha identificação com Fortaleza. Não só com a cidade. Mas, na realidade, é comigo mesmo. Eu, Fernando, nasci lá. Vivi muito tempo lá. E é o primeiro disco que faço com músicas feitas lá.
E qual foi essa importância de se reconectar com Fortaleza? Não apenas a importância artística, mas também pessoal. O que mudou com essa virada de chave?
Essa experiência de morar lá foi super importante. Eu consegui entender o motivo de ter vontade de voltar, que são as pessoas, a cultura, que faz parte de mim. Muita coisa que eu me identifico e não gosto. Eu entendi isso, inclusive, porque fui embora.
Mas as coisas ficam mais resolvidas e simples. É mais um lance de clarear. Uma coisa é viver em São Paulo a vida inteira e olhar para lá como a cidade que vou visitar. Outra coisa é ir para lá, passar perrengues de trampo, ser um cidadão comum andando pela cidade. Isso tudo não tem como não voltar para a minha arte.
O álbum marca bem esse momento. Eu indo pro reggae. Sentindo mesmo a cidade. Vendo meus tios tocando samba. Eu podia ter feito um disco todo de samba, mas não fiz. Mas o samba, ou o meu sentimento do samba familiar, tá dentro em algum lugar de alguma música.
E todas as coisas que têm em Fortaleza, dos artistas novos e a galera atual. Foi por causa dessa galera que eu voltei. Quando comecei a me identificar muito com o que eles estavam fazendo, eu voltei. Porque antes eu não conseguia ver.
Fale um pouco sobre as pessoas que convidou para participar do seu álbum solo.
Todas as pessoas que chamei para tocar no disco foram uma galera que eu troquei. Sou fã de todas as pessoas. Galera que eu gosto mesmo. Foi a galera que eu troquei durante os quatro anos que vivi lá.
Dá pra perceber que nas novas músicas, a guitarra deixa de ser protagonista. É curioso porque no Cidadão havia uma dinâmica diferente.
No Cidadão Instigado, ela estava sempre preenchendo os vazios. Queria que nesse disco ele tivesse mais vazios. Para voz, e até para outras coisas. Que é uma linguagem que a galera usa no pop.
Como fiquei obcecado a vida inteira de fazer rock, a guitarra sempre foi protagonista. Eu passei muitos anos em crise com a guitarra. Fiquei quase dois anos sem encostar. Pegava só para compor.
Agora estou curtindo voltar a tocar. Eu nunca gostei de ficar num mesmo lugar, principalmente com a guitarra. Já mudei de caminho várias vezes. Eu nunca gostei de ficar num ponto só. Para mim tinha sempre que achar um caminho novo. E eu ficava muito nas guitarras
Você é conhecido por tirar sons incríveis de guitarras e equipamentos vintage. Agora tem trabalhado com novos equipamentos, como máquinas para fazer música eletrônica.
Eu amo tudo o que rodeia isso. Tanto que entrei nessas máquinas e entrei na mesma fritação. Fui pesquisando e criando caminhos. É interessante porque tudo dá para criar. Estou aqui no celular e quando vejo estou fazendo músicas.
Só que nos últimos anos eu tenho curtido muitas coisas de pop e os caminhos vão mudando. Antes eu ficava muito pautado no rock, sempre no passado. Nesses últimos anos estou vivendo mais o presente. E isso mudou bastante.
Tem coisas muito importantes que acho dentro disso, que é deixar muitos preconceitos de lado. Tinha coisas que eu dizia: “Ah, hoje em dia não tem nada legal”. E não é verdade. E acho que cada vez mais tem na mídia e em todos os cantos. Pesquiso música nova todos os dias. Gosto de estar buscando.
Quando tinha 14 anos, eu coloquei na cabeça que queria ser roqueiro. Isso aprisiona. Você entra num estereótipo. Eu ficava muito fechado nesse lugar.
Acho que com o disco “Fortaleza”, do Cidadão, eu cheguei num disco de rock que eu almejava. Coloquei todos os clichês e riffs de disco de rock. Pronto. Estou resolvido.
E aí, depois disso, fiquei com uma página em branco. E até com o Cidadão mesmo é muito doido falar sobre isso, porque eu encerro o ciclo. Eu não tenho mais nada para falar sobre aquilo. Encerrou. Eu comentei com os meninos da banda que a partir daqui para frente a banda só vai existir se for outra abordagem.
A gente não acabou a banda. A parada é uma realidade. A gente chegou num ponto: o Cidadão sempre foi muito pessoal. Eu ia vivendo e colocando tudo pra lá. E eu resgatei isso para o meu trampo. Lancei o disco com o meu nome. Uma coisa muito pessoal que eu tava afim de fazer dessa forma. Até porque o Cidadão se transformou numa banda.
De certa forma, é por isso que nesse trabalho novo você buscou uma abordagem mais pop?
Sempre gostei muito de George Michael e todos esses pops. Acho que com o Cidadão eu ficava buscando essas minhas raízes no passado. Como se o presente tivesse sempre a dever. E quando fui para Fortaleza e cheguei lá e fui me encontrar com o passado que eu estava em busca e eu cheguei ao presente. A guitarra não perdeu seu lugar na minha vida, mas ela entra de outra forma, sem precisar estar gritando como era o tempo inteiro.
É buscar novas alternativas para novas composições?
Para mim, ficar continuando batendo na mesma tecla, uma hora quebra. Cansa. E eu não quero fazer isso. Gosto do que eu faço. Esse disco solo, para mim, é o meu primeiro e pronto. O Cidadão faz parte da minha história e esse também é uma continuidade
Há algumas canções de amor nesse novo disco. Como é falar de amor nessa nova abordagem? Pergunto isso porque até mesmo no Cidadão, quando cantava sobre amor, acho que tinha essa interpretação sudestina de ligação com a música brega.
Todo mundo na música fala sobre amor. Mas acho que bate muito forte essa parada do nordestino mesmo. Se tem sotaque e vai falar de amor, tem que ir para um caminho. Como eu tinha muita influência das coisas antigas, batia com o brega. Até esse disco novo tem gente falando que continua o brega… E eu não tenho problema com isso porque isso faz parte das minhas influências.
Como vê o mercado da música pop hoje no Brasil?
O Brasil é muito grande e tem muitas linguagens. Você pega o sertanejo, a pisadinha, o tecnobrega, o funk… são coisas bem distintas, mas que estão no País inteiro.
De certa forma, você está se inserindo nisso…
Não é que estou me inserindo. Não tenho os requisitos (risos). Mas me inspiro nesse tipo de música sim. E tenho o que falar. A minha música é muito o que vou falar. Não faço esse pop… é diferente. Tem uma mistura do que eu sei fazer com essa minha inspiração.
– Thiago Sobrinho (fb.trsobrinho) é jornalista do A Tribuna em Vitória, Espírito Santo.