texto de João Paulo Barreto
Na abertura de “Eduardo e Mônica” (2021), nova adaptação do diretor René Sampaio para um texto de Renato Russo (criando aqui o “RussoVerso”, já que o “Faroeste Caboclo” de Fabrício Boliveira também aparece em dado momento), vemos a dramatização exata dos primeiros versos da clássica letra do vocalista da Legião Urbana surgir em tela com o Eduardo (Gabriel Leone) abrindo os olhos sem querer se levantar enquanto Mônica (Alice Braga) toma um conhaque no outro canto da cidade. Neste momento, duas sensações distintas: o receio de se tratar de uma estrutura de vídeo clipe, dramatizando a letra de forma exata como cantou Russo e se valendo da mesma como uma muleta narrativa.
Felizmente, foi uma impressão que logo ficou para trás, uma vez que o roteiro consegue ir além apenas da materialização “videocliptica” dos versos da canção pop, criando uma história que aprofunda bem sua dupla de protagonistas, lhes dando dimensões e subtramas apenas sugeridas por Renato em sua composição. E a outra sensação, bom, essa, enfim, foi de pura comédia e sátira ao não segurar o riso por lembrar do clássico texto de Adolar Gangorra, “Mônica e Eduardo”, que destrincha a canção de modo sagaz. Se não conhece, faça um favor a si mesmo, leia. Ver Mônica entornar um conhaque aquela hora da manhã logo nos créditos iniciais do longa só nos faz pensar no perfil de pinguça mor que Gangorra fincou em seu tratado clássico escrito em 2001.
Mas, voltando ao que realmente interessa aqui, “Eduardo e Mônica” é daqueles filmes que te deixam com aquele sorrisão após a sessão. E não apenas se você foi um adolescente nos anos 1980 ou 1990 (no meu caso, a segunda opção) e que cantou “Pais & Filhos”, “Teatro dos Vampiros” e outros clássicos da Legião ao violão cercados por amigos que você não vê há mais de 20 anos e nem sabe se ainda estão vivos. O longa de René Sampaio funciona muito bem com a geração atual porque ele a força a enxergar as relações humanas e amorosas para além das telas do celular, memes, rede sociais, vídeos de tiktok ou sarcasmo imbecil disfarçado de pretensa inteligência. Ao optar por se manter em um perfil oitentista, com pessoas vivendo o real para além de scrolls e touchscreen, ligações feitas com fichas telefônicas e um contato humano mais real (ok, pode me chamar de saudosista, mas é a pura verdade o fato de que perdemos muito disso), a adaptação dirigida por Sampaio torna-se ainda mais autêntica.
“Pensei muito se o filme poderia ser na época atual ou não, mas, depois, refleti mais. Eu sempre o vi como algo que se passa nos anos 1980”, relembra o cineasta em entrevista ao Scream & Yell por telefone. “É uma época que eu vivi. Coloco muito do que é meu, do que é particular, do que é minha própria história como referências. E achei, também, que era mais humano. Menos WhatsApp, menos Instagram, menos Twitter, fazer o ‘Eduardo e Mônica’ nos anos 1980, que é resposta à época que o criador da música fez. Mas é uma história atemporal. Ela poderia ter sido contada hoje em dia, também. E talvez por isso, mesmo tendo se passado como um filme de época, não é um filme datado, mas moderno e contemporâneo”, pontua René Sampaio.
Diferente do apenas boyzinho que a Mônica tentava impressionar e descrito assim por Russo em sua letra, o Eduardo que o carismático Gabriel Leone traz à vida aqui é alguém que emana uma maturidade que, aos poucos, quebra o receio da mulher mais experiente por quem ele se apaixona em lhe dar uma chance. Sua personalidade e confiança em si mesmo foi esse ponto magnético trazido para o personagem e que cativou a estudante de medicina que falava alemão. “Ele consegue conquistar a atenção e o interesse dela definitivamente quando tapa os seus olhos e fala: ‘para de olhar para mim com a sociedade diz para você me olhar, cheio de tabus e preconceitos. Olha para mim escutando quem eu sou, escutando a minha essência’. E aí ela olha para ele com outros olhos quando ele tira a mão dos seus olhos após se apresentar no mais íntimo dele. Acho que isso torna o personagem lindo”, opina Gabriel Leone, também ao telefone, em entrevista com o Scream & Yell.
A afirmação de René Sampaio sobre seu filme não ser datado fica ainda mais clara quando o personagem do avô do Eduardo, que, na música, era com quem o rapaz jogava futebol de botão, ganha a face de bonachão de Otávio Augusto. O diálogo entre ele, Mônica e Eduardo à mesa em uma ceia de Natal, tristemente reflete nosso período quase como se o filme deixasse de se passar há 35 anos e tivesse sua trama centrada no Brasil dos últimos tempos. “É muito triste pensar que o filme se passa em 1986, ou seja, a gente estava começando o processo de redemocratização, de transição, e o personagem do Otávio tinha essa relação com os militares”, afirma Gabriel Leone. “É muito triste pensar que, hoje em dia, voltamos a uma realidade na qual tem gente que legitima esse tipo de pensamento. A bem da verdade, o que acabamos entendendo é que esse conservadorismo, esse pensamento retrogrado sempre estiveram aí. Só que, nos últimos anos, ficou mais evidente por estar sendo legitimado pelo governo. É uma constatação bem triste, mas, enfim, trouxemos isso para o filme como uma característica que não poderia ser ignorada pelo contexto da época”, explica o ator.
René Sampaio observa, ainda, o fato de que o roteiro foi escrito em 2016, um período um pouco anterior à explosão de ignorância vista no país. “Rodamos o filme em 2018 e o mundo virou de pernas para o ar para muitas pessoas, inclusive para mim. É engraçado como a arte é precursora. Ela consegue perceber que alguma coisa é pertinente e continuará sendo pertinente depois. O personagem do avô fala um pouco sobre isso. Mas, de toda forma, fala, também, não só sobre o que ele diz literalmente, mas sobre como temos que aprender a lidar com a intolerância e com o pensamento diverso dos nossos. Ele, o avô, não tem tolerância nenhuma. Já o Eduardo se coloca em uma situação de família: ‘o que eu faço? É o meu avô!'”, pontua René.
Mesmo diante desse peso narrativo que inclui perdas e outros traumas enfrentados pelos relacionamentos, o que se sobressai em “Eduardo e Mônica” é a mesma leveza que temos na música pop de onde ele se origina. E isso é o que fica para além dos créditos finais.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Tive essa mesma leitura. Vi o filme ao lado de meu filho e a namorada, ambos na casa dos 20 anos. E eles saíram tão leves quanto eu e minha companheira. Três gerações. Anos 80, 90 e 00 com a mesma boa sensação de um filme feito com carinho, doce e afetivo.