por Bruno Capelas e Marcelo Costa
Há quem veja inúmeras desvantagens em ver o tempo se esvair. As mãos ficam cheias de calos, os cabelos se embranquecem, as ideias podem se tornar mais conservadoras. Mas há também beleza na experiência. Em muitos casos, a passagem dos anos pode justamente deixar a vida um pouco mais doce, mais harmônica, mais livre para novos passos – de dança, inclusive. É mais ou menos o que aconteceu com o Charme Chulo. Formada no começo dos anos 2000, liderada pelos primos Igor Fillus (voz) e Leandro Delmonico (guitarra e viola), “a veterana banda de Curitiba” já fez muita gente de camisa xadrez ficar de cabelo em pé ao botar Tião Carreiro e Johnny Marr em pé de igualdade, incriminando Mazzaropis e Barnabés por aí com seu indie/rock caipira. Mas esses dias ficaram para trás.
Em “O Negócio é o Seguinte”, disco lançado pelo quarteto (completado pelo baixista Hudson Antunes e o baterista Douglas Vicente) no segundo semestre de 2021 (e um dos 50 discos do ano passado pra APCA), o cruzamento entre o som “de cá” e o que vem “de fora” nunca esteve tão… integrado, resultando em um trabalho deliciosamente pop. “A gente sempre teve muito a dizer com nosso indie/rock caipira, mas era hora de começar a se enxergar como banda veterana. Nisso, me deu uma vontade absurda de compor um trabalho que trouxesse o lado mais pop do Charme Chulo. Sinto que ‘O Negócio é o Seguinte’ soa quase como um recomeço”, diz Delmonico.
Não é difícil perceber o que o guitarrista quer dizer: a dualidade guitarra/viola dos primeiros discos se tornou mais fluida, abrindo espaço para versões muito próprias de guitarradas/tecnobregas (“Rabo de Foguete”) e arrochas (“Feio Favorito”), um ou outro beat dançante (“Balanço Qualquer”) e bonitas baladas (“Mais Além”). “No fim das contas, é tudo meio raiz”, afirma Delmonico. Mas a evolução, aposta o primo Igor, não está só na banda, mas também no ouvido das pessoas. “Quando começamos, nosso som contrastava ainda mais com as bandas da nossa geração. Hoje, o público parece aceitar muito mais a pluralidade”, ressalta o vocalista, na conversa por e-mail que ele e Leandro bateram com o Scream & Yell.
Vai se enganar, porém, quem achar que vai encontrar um Charme Chulo completamente diferente do que havia no antecessor “Crucificados pelo Sistema Bruto”, disco duplo (e até certo ponto, hercúleo) lançado no já distante 2014. A ironia e a exploração das contradições, velhas amigas do grupo, seguem em alta – afinal, não é fácil ser uma banda que pensa adiante estando dentro da cidade que virou “República”. “O nome Charme Chulo surgiu para resumir o espírito controverso da cidade, a vontade de ‘acaipirar’ o som veio disso, como se a gente pudesse já prever todo esse clima”, diz Delmonico. “Temos um certo orgulho por representar a cidade mais sofisticada, e ao mesmo tempo, mais ‘jacu’ do País.”
Na entrevista a seguir, Fillus e Delmonico falam um pouco mais sobre o processo de concepção e produção de “O Negócio é o Seguinte”, em boa parte financiado com uma campanha de crowdfunding baseada em camisetas exclusivas, realizada em meio à pandemia e (mais uma!) crise econômica. Eles também explicam o apelo mais pop e dançante do disco – Leandro diz que Igor é um ótimo bailarino – e se mostram otimistas com 2022 e com a própria capacidade de seguirem criando. “A gente ainda vai misturar o rock caipira com o rock rural”, avisa Igor. “Aí a coisa vai ficar complexa! (risos)”.
Sete anos sem um disco novo é tempo pra caramba – ainda mais no mundo pop, que costuma fabricar sucessos que duram alguns meses, às vezes semanas. Tudo bem que no meio desse tempo vocês lançaram alguns singles, mas vocês imaginavam que “O Negócio é o Seguinte” fosse demorar tanto pra sair? Como foram esses anos pra vocês?
Leandro Delmonico: Certamente é muito tempo. O fato é que o disco “Crucificados pelo Sistema Bruto”, de 2014, encerrou um período de dedicação quase exclusiva à banda. Após isso, eu e o Igor (fundadores e compositores do Charme Chulo) cuidamos de alguns projetos pessoais. Tanto foi assim que ele foi surpreendido quando cheguei com o conceito do que viria a ser “O Negócio é o Seguinte”. Sete anos foi o tempo necessário para convencê-lo a passar por todo o processo de composição, financiamento e produção (risos). A banda nunca se afastou totalmente dos palcos e eu nunca parei de captar o que vinha sendo produzido na música brasileira. O single “Mais além”, de 2018, marca o começo dessa retomada. A gente sempre teve muito a dizer com o nosso indie/rock caipira, no entanto, era hora de começar a se enxergar como banda veterana, valorizando nossa pequena história e firmando novas parcerias. Nisso, me deu uma vontade absurda de compor um trabalho que trouxesse o lado mais pop do Charme Chulo. Hoje, sinto que “O Negócio é o Seguinte” soa quase como um recomeço.
Quando o Charme Chulo começou, o sertanejo brasileiro já era pop, mas numa intensidade bem menor que a de hoje. A provocação estética que vocês propunham com o “rock caipira” ainda faz sentido?
Leandro: Essa questão é muito interessante e vai além do sertanejo. Acho que o pop alternativo brasileiro está cada vez mais regional. Quando começamos, nosso som contrastava ainda mais com as bandas da mesma geração. Hoje, o público parece aceitar muito mais a pluralidade. Esse progresso, além do domínio absoluto dos subgêneros do sertanejo, deixou a viola menos provocativa. Mas ainda acho que o rock caipira pode mais, pois ainda falamos para um público mais “existencial” e menos “baladeiro”.
Aliás, na primeira conversa (das várias) que vocês tiveram com o Scream & Yell, 17 anos atrás, ainda sobre o primeiro EP, vocês listavam um punhado de referências: Tião Carreiro e Pardinho, Almir Sater, Paulo Freire (o violeiro, não o educador!), Os Serranos, Smiths, R.E.M, The Thrills… Em um dos releases do novo álbum foi a primeira vez que o nome de Sá, Rodrix e Guarabyra aparece e… soa tão óbvio (risos). Como nunca falamos sobre isso? Rock caipira e rock rural são primos ou gêmeos?
Igor Fillus: Adoramos falar de nossas influências musicais. Seja pelo eterno prazer de prestar reverência a todos estes grandes artistas, de diferentes estilos musicais, ou por realmente fazermos um som bem díspar, também, então gostamos de buscar esse “chão”. Gostamos também de executar algumas versões desses artistas ao vivo. Por isso, sim, diria que o rock caipira está mais para primo do rock rural. A gente ainda vai misturar o rock caipira com o rock rural, aí a coisa vai ficar complexa (risos).
Por outro lado, o disco novo traz um flerte diferente com outras sonoridades (como carimbó e arrocha), algo que já estava presente no disco anterior, como no funk estilizado de “Multi Stillus”. Como surgiram essas ideias? Foi natural pra vocês ir expandindo esse processo? Ou rolou algo meio “putz, vai sair da fórmula”, talvez isso não caiba no Charme Chulo?
Leandro: Diferente do “Sistema Bruto”, em que a pegada era mais sarcástica, o novo álbum flerta com novos “balanços” brasileiros para canções dançantes. Sempre gostei das guitarras da lambada, por exemplo. No fim das contas, é tudo meio raiz. Adoro o brega da galera de Recife e essa batida meio “ragga”, meio arrocha, está impregnada em tudo que toca por aí (Pabllo Vittar e Duda Beat, por exemplo). Além de manter o caipira sempre presente e flertar com o folk pop, resolvemos experimentar este lado dançante mais atual. O Charme Chulo sempre tem nas dancinhas do Igor um dos pontos fortes, então nada mais justo!
Nos últimos anos, uma frase ganhou destaque nas redes sociais: “Nada que é bom vem de Curitiba”, à qual a banda é uma exceção honrosa. Como é a relação de vocês com a cidade? E com a fama da cidade?
Leandro: Curiosamente, nossa relação com Curitiba é fundamental, até porque o nome Charme Chulo surgiu para resumir o espírito controverso desta cidade. A vontade de “acaipirar” o som veio também disso, como se na época já pudéssemos prever todo esse clima de “República de Curitiba” que enfrentamos hoje. Vale lembrar também que o “ilustríssimo” Sérgio Moro nasceu em Maringá, a mesma cidade que a gente. Mas Curitiba também faz jus a muita coisa legal e inovadora. Nossa base de fãs é daqui e a cidade sustenta a história da banda até hoje. Este álbum é prova disso, alguns fãs daqui evoluíram com a gente e hoje são base forte de apoio. Temos um certo orgulho por representar a cidade mais sofisticada e, ao mesmo tempo, mais “jacu” do país (risos).
Falando em Curitiba, em 2018 vocês lançaram “Mais Além” com a Tuyo, que é outra banda da cidade que despontou recentemente. Para o álbum, vocês decidiram gravar uma nova versão da música. Qual foi a ideia por trás dessa nova “Mais Além”?
Igor: Basicamente, após a versão de “Mais além” com o Tuyo, sentimos a necessidade de propor uma segunda versão que fosse mais fácil de executar ao vivo, sem a participação do trio, até pela relevância compositiva dessa música para nossa história. Mas, num possível lançamento em vinil, por exemplo, gostaríamos de ver a versão de 2018 entrar como um bônus. O novo álbum agora lançado simplesmente surgiu da musicalidade proposta ali.
Com “O Negócio é o Seguinte” vocês repetem a parceria com Rodrigo Lemos (Poléxia, Lemoskine, A Banda Mais Bonita da Cidade) na produção, já que ele assina “Crucificados pelo Sistema Bruto”. Como funciona essa colaboração de vocês?
Igor: Nós crescemos com o Rodrigo Lemos, somos da mesma cidade e praticamente da mesma geração. Há uma sintonia, que veio surgindo desde 2014 no disco anterior e se revelou absolutamente incrível para essa nova proposta mais pop. As coisas calharam e pela primeira vez o Charme Chulo, com esse som tão pitoresco (que só os compositores mesmo normalmente podem saber o que querem), teve uma produção exclusiva e autônoma de um terceiro. A capacidade do Rodrigo de respeitar a marca da banda mas conceber essa roupagem mais pop, no mais amplo sentido da palavra, foi fundamental para atingirmos o objetivo do álbum.
Na última década, a gente vem discutindo muito sobre formas de financiar a música – e muita banda pagava os discos vendendo camisetas na banca, mas só nas turnês, depois que tudo estava pronto. Vocês inverteram essa lógica. Pensando que se financiar o disco antes de ouvir é difícil, ter uma camiseta daquele disco sem nem ouvir é ainda mais, como foi esse processo?
Igor: Na verdade, sentimos muita segurança nessa proposta de start e financiamento do novo álbum. Foi justamente o fato da pessoa receber um produto (camiseta exclusiva) antes de atingir a meta que deixou as coisas mais leves. Foi uma campanha muito acertada, somada à mobilização das pessoas em apoio à cultura (como o apoio direto que recebemos da empresa Ebanx) e o boom das vendas online, durante a pandemia. A faísca incendiou e com ajuda do nosso amado público espalhado pelo Brasil, conseguimos! Obrigado a todos, sempre!
Ainda nesse assunto de financiamento, vocês conseguiram coisas muito bacanas, como apoio direto de algumas empresas. Ou seja, houve muito corre para que “O Negócio é o Seguinte” se transformasse em realidade. Como foi planejar o álbum? Vai longe o tempo em que ter uma banda era só compor e tocar, né?
Leandro: Exatamente. Isso acaba contribuindo com a demora entre um lançamento e outro. O último disco já havia sido concebido via financiamento coletivo. Para este eu já tinha ideia de fazer algo baseado na venda de camisetas, como uma recompensa única. Na prática, tudo fica mais complexo e temos que pensar em todos os detalhes, tendências, etc., o que é bem estafante. Mesmo assim, a jornada é gratificante. O simples fato de começar o projeto fez a gente reencontrar muita gente e descobrir novas saídas. É aí que mora o lado bom de se tornar uma banda veterana: você começa a ganhar um certo respeito e seus admiradores também crescem. Quanto ao modo “só compor e tocar”, nunca conhecemos (risos).
A capa do novo disco é muito, muito bacana. Vocês já estão no segundo clipe, também. Como foram pra vocês essas experiências com os novos clipes e como essa preocupação com o lado estético se encaixa na banda?
Igor: Acho que nós somos, sim, muito caprichosos e cuidadosos com nossa produção em geral. Gostamos de pensar que são materiais, registros, gravações para a posteridade, e com os clipes não é diferente. Depois que você atinge um certo patamar de qualidade não é mais possível baixar, apenas subir, no mínimo manter. E, para complementar, tem a questão da proposta musical da banda ser inusitada, então se você quer se fazer entender, tem que fazer o melhor, procurando gerar menos dúvida possível nas coisas elementares.
Falando nisso… as letras do Charme Chulo são cheias de ironias, como é o caso de “Feio Favorito”, mas… as pessoas ainda entendem ironia?
Leandro: No Brasil de Bolsonaro eu duvido de um monte de coisa, viu. Mas tenho certeza que nosso pequeno e amado público entende, sim. A ironia é uma das marcas do Charme Chulo. Tudo é muito contraditório. O próprio caipira pode ser nobre e pejorativo ao mesmo tempo.
Ainda sobre “Feio Favorito”: como vocês definiriam, aurelianamente, um “feio empoderado”?
Leandro: Eu queria trazer para esta faixa aquele humor meio pastelão, ao melhor estilo Falcão, tanto que citamos até Os Trapalhões na letra. O Charme Chulo sempre falou para o caipira oprimido pela cidade, pelo consumo e pela vaidade. O feio empoderado é aquela “pessoa que se vale de artifícios sofisticados, sagazes, criativos e humorísticos para disputar notoriedade social com as ditas celebridades do Instagram”.
Como é lançar um disco num momento em que fazer show ainda é meio delicado? E como é que a pandemia afetou o planejamento da banda, não só quanto a lançamentos, mas também a pegar estrada, ensaiar, gravar?
Leandro: A pandemia acabou não prejudicando o Charme Chulo pelo simples fato da banda usar este período para compor e depois gravar o álbum. Talvez tenha prejudicado durante a campanha de financiamento, mas conhecemos tanta gente que parou de trabalhar por causa da pandemia que não nos sentimos no direito de reclamar. Foi uma questão de escolha encarar a campanha durante este período. Rolou aquele lance da galera lembrar o quanto a arte é fundamental nesses momentos. Na virada para 2021, as coisas ficaram mais dramáticas e a grana do povo acabou. Agora, estamos olhando com otimismo para essa nova fase. Fizemos dois shows em dezembro agora, uma live (Itaú Cultural) e um presencial (Sesc Paço da Liberdade) com duas sessões esgotadas. A gente espera viajar com o disco em 2022.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e, desde 2006, acredita que “maturidade é uma fase, adolescência é para sempre”. É um dos responsáveis pelo Programa de Indie, na Eldorado FM, e autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne
Leia também:
– Charme Chulo (2005): “A inspiração vem dos sentimentos mais pesados e íntimos” (aqui)
– Charme Chulo faz rock para dialogar com as grandes massas (aqui)
– Charme Chulo (2009): “A música caipira é só uma das influências da banda” (aqui)
– Charme Chulo (2014) num disco conceitual repleto de sagazes críticas de costumes (aqui)
– Charme Chulo (2015) ao vivo no palco do Sesc Belenzinho (aqui)
– Festa Scream & Yell #1 na Casa Dissenso: Charme Chulo ao vivo (aqui)
– “Charme Chulo”, o álbum, amplia a equação e vai além de Smiths com viola caipira (aqui)
Charme Chulo está entre as minhas bandas favoritas. Esse último álbum é um exemplo de como uma banda pode fazer excelente música pop.