texto por Gustavo Almeida
fotos por Circo Voador
21 meses após a última apresentação no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2020, Luedji Luna voltou ao boêmio bairro da Lapa para tocar pela primeira vez as canções de “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água” (2020). O álbum lançado em meio à pandemia não pôde contar com shows de lançamento, o que só aumentou o anseio dos fãs pela primeira experiência ao vivo com o novo repertório. O disco dá sequência ao trabalho de estreia da cantora, “Um Corpo no Mundo” (2017), e foi indicado ao Grammy Latino na categoria de “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira”, ao lado de nomes como Zeca Baleiro e Zé Manoel.
Depois de um primeiro disco considerado um dos melhores de sua época, Luedji Luna partiu para novas gravações em Nairóbi, capital do Quênia. Cancelou as férias marcadas ao descobrir-se grávida do filho Dayo, e se aventurou na difícil missão do segundo disco acompanhada do guitarrista e produtor queniano Kato Change, que montou a banda com músicos de diferentes países do continente africano e com quem ela assina a produção do álbum. Ele foi o responsável por, junto aos músicos, incorporar uma linguagem instrumental jazzística à identidade de canção e percussividade já estabelecida pelo primeiro trabalho da cantora. O resultado foi refrescante e inovador, marcando a obra como uma das principais do ano de 2020 – foi o segundo disco mais votado nos Melhores do Ano do Scream & Yell.
Dessa forma, faz sentido que a construção da apresentação no Circo Voador, numa quinta-feira, fosse fundamentalmente ligada ao disco. Não só usando o novo repertório como guia, mas respeitando seu encadeamento e suas inserções. “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água” foi tocado na íntegra, na ordem, exatamente como podemos ouvi-lo em todas as plataformas, começando inclusive com o canto e a percussão que abrem o disco, “Uanga”.
O público ainda notoriamente emocionado com a volta das apresentações presenciais era um espetáculo de empolgação à parte, recebendo Luedji e sua banda no palco com efusivos gritos e conhecendo profundamente o repertório. Com o fim da primeira faixa, as luzes do palco desenhavam uma coroa brilhante sobre a cabeça da cantora que começava a emocionante faixa “Tirania”, embalada e até surpresa com a força das vozes que a acompanhavam. Vozes que seguiram durante a maior parte do show com inabalável energia, inclusive nas faixas seguintes: “Chororô” e “Ain’t Got No”, essa última uma incrível releitura de Nina Simone que termina com a voz emocionante e emocionada de Conceição Evaristo, um dos maiores nomes da literatura brasileira.
A emoção seguiu em alta quando, em seguida, a banda puxa “Ain’t I a Woman” e a plateia se exalta ao cantar versos como “Você vai me pagar/ Cada lágrima que eu chorei”, seguida dos belos arranjos de “Recado”, e fechando a emocionante sequência com as melodias compostas por François Muleka, da música que deu nome ao disco. Os vocalizes e cada trecho da letra eram elevados pelas vozes no Circo Voador, que além de tudo é o local perfeito para momentos de conexão entre artista e público, como esse.
Em “Origami”, os delicados arranjos de guitarra guiavam a música como dobras em papel, enquanto a banda como um todo fazia uma das performances instrumentais mais incríveis da noite. Com Weslei Rodrigo na baixo, Vinicius Sampaio na guitarra, Lenynha Oliveira nas percussões, Gabriel Gaiardo nos teclados e o baterista moçambicano Otis Selimane, Luedji Luna encontrou um grupo aparentemente perfeito para as execuções do último trabalho. Apesar de baseada no registro, o ao vivo não soa preso aos arranjos gravados e cria performances ainda mais interessantes de algumas músicas. Foi o caso de “Lençóis”, guiada com muita classe num jazz, com uma performance vocal incrível e intensa de Luedji.
As últimas três faixas do disco vieram com arranjos fortes e uma plateia ainda mais emocionada ao perceber que o fim se aproximava. Cantou então, mais uma vez a plenos pulmões, a bela canção “Erro”. Em seguida, Luedji dedicou “a todas as mulheres pretas retintas” a música “Manto da Noite”, e encerrou, com um avassalador arranjo de Goteira, um repertório que parecia passar rápido demais.
Sem a tradicional saída/volta ao palco para o bis, o grupo já aceitou os pedidos de “mais um” puxando o maior sucesso da cantora soteropolitana: “Banho de Folhas”. A faixa que tem mais de 5 milhões de acessos em seu clipe no YouTube encerrou a apresentação na melhor energia possível. O público claro, ainda lutou por mais, sem sucesso, mas parecia sair satisfeito e renovado após uma apresentação baseada na emoção, nos afetos, nos encontros e em uma musicalidade poética preta, brasileira e africana, que é capaz de tocar todes. Essa fase de retomada da música ao vivo promete muitos momentos como esse, marcados pela saudade de experiências musicais coletivas, corporais e baseadas na inigualável sensação de presenciar o especial.
– Gustavo Almeida é estudante de Comunicação Social na UFRJ e responsável pelo podcast Nos Palcos do Rio.