entrevista por Homero Pivotto Jr.
A vida é uma guerra. Uma luta diária por sobrevivência — algo que esses tempos pandêmicos escancaram. Das trincheiras dessa batalha inerente ao existir emergiu o vocalista inglês Karl Willets, atualmente à frente do Memoriam, mas seguidamente lembrado como vanguarda no cultuado Bolt Thrower. Foi urrando aos quatro ventos sobre conflitos — os que envolvem pólvora e sangue, mas também os metafóricos, esses mais relacionados às contendas pessoais de cada guerreiro na Terra — que o hoje senhor de 54 anos ficou conhecido. Se por um lado o simpático músico inglês versa sobre as peleias com seriedade, de outro nos permite uma analogia menos sisuda com o tema: o homem é uma metralhadora com as palavras, dispara ideias com sua potente voz em ritmo frenético.
“Sempre faço isso. Alguém me pergunta algo e falo por meia hora. Eu acabo com suas perguntas respondendo tudo de uma vez sem nem ser questionado (risos)”, reconhece, divertindo-se. Mas a brincadeira fica por aí. E Karl faz questão de reforçar seu posicionamento no front contra um inimigo que ganha força atualmente: o fascismo. “Gosto dessa perspectiva de que o que escrevo é motivado politicamente. Não tenho vergonha nenhuma de tremular minha bandeira vermelha e negra e proclamar mensagem antifa. Não é uma organização terrorista, é um estado de espírito. O antifascismo existe porque há o fascismo. Ou você é uma coisa ou é outra“, sentencia.
Foram quase três décadas de glórias — aqui não estamos falando de sucesso comercial — encabeçando o pelotão death metal Bolt Thrower. Entre as conquistas do grupo, está o respeito dos fãs à discografia com sete álbuns de estúdio (“In Battle There Is No Law!” [1988], “Realm of Chaos: Slaves to Darkness” [1989], “War Master [1991], “The IVth Crusade ]1992], “…For Victory” [1994], “Mercenary” [1998], “Honour – Valour – Pride” [2001, que traz Dave Ingram, do Benediction, em vez de Karl nos vocais] e “Those Once Loyal” [2005]). Mas uma baixa na horda mudou os planos: em 2015, o baterista Martin Kearns morreu de ataque do coração, aos 38 anos. As cicatrizes foram profundas, e em 2016 o Bolt Thrower encerrou oficialmente as atividades.
Como o death metal, na visão de Karl, é uma celebração à vida, ele criou o Memoriam para homenagear o parceiro que deixou este plano. A sonoridade carrega muitas das armas pelas quais o Bolt Thrower ficou conhecido, mas usa estratégias diferentes, com abordagens mais ecléticas. Após uma trilogia de álbuns sobre o ciclo da morte (“For the Fallen” [2017], Silent Vigil” [2018] e “Requiem for Mankind” [2019]), a tropa atual de Karl aponta para outra direção. “To The End”, lançado em março de 2021, abre uma sequência de três discos, dessa vez dando ênfase ao ciclo da vida. A ideia é que esse nova trilogia conte a história do que ocorreu antes dos primeiros trabalhos.
Para a investida com o Memoriam, o vocalista tem alistados a seu lado Frank Healy (baixo, ex-Sacrilege / ex-Benediction), Scott Fairfax (guitarra, ex-Massacre) e o recruta com larga experiência Spikey T. Smith (com passagens por Killing Joke, Sacrilege, The Damned, English Dogs e outros nomes de peso). Em um papo nada belicoso, Karl nos fala sobre a carreira na música extrema — e fora dela —, aborda o conceito dos discos, revela a paixão por Killing Joke, lembra-se da graduação em Estudos Culturais, posiciona-se diante da polarização política do mundo e conta alguns pequenos embates com redes sociais e outras ferramentas on-line. Avante! Veja a entrevista completa, em inglês, neste vídeo:
Pode me autorizar a gravar a entrevista pelo Zoom?
Como faço isso?
Abaixo na tela da ferramenta tem escrito “participantes”. Vá em cima do meu nome e marque a opção “autorizar gravação”.
Vou te contar: depois de fazer umas 50 entrevistas usando isso (Zoom), é a primeira vez que aprendo como fazer esse negócio (permitir um convidado a gravar usando a ferramenta). Eu estou gravando, você está gravando.
Como fez com as entrevistas anteriores?
Eu não sabia como fazer e ninguém me mostrou. Muito obrigado! Eu gravava por aqui e depois enviava por wetransfer para as pessoas. O que não era um problema, mas envolvia mais trabalho. Assim como estamos fazendo é muito mais fácil. E estamos gravando, não fale coisas como vá se foder idiota! (risos). Estou aqui, bebendo uma cerveja.
E eu um café, estou no meio de um dia de trabalho, aqui são 14h.
Aqui são 18h. É fim de mais um dia de labuta, tempo para espairecer.
Você tem um emprego regular?
Sim, sim! Com esse tipo de som que fazemos não se pode ganhar uma renda sustentável. Depois de 30 anos, você sabe…. Houve um período da vida, no começo dos anos 1990, em que eu só tocava em tempo integral. Mas, hoje em dia, com contas para pagar e filhos para me preocupar…. Todos nós na banda temos trabalhos normais. Eu sou tipo gerente de empréstimo comercial em uma startup de negócios apoiada pelo governo. Em essência, eu sou o destruidor de sonhos, o aniquilador de ambições. “Você quer abrir seu negócio, senhor?”. Você pede um empréstimo e eu liquido com ele (risos). Brincadeira! Na verdade, damos suporte a quem quer, porque o único jeito de a economia sobreviver é encorajando as pessoas. É um trabalho interessante, temos aplicações variadas. E, especialmente com os impactos da Covid, todos no mundo estão batalhando, e um jeito de passar por isso é abrir seu próprio empreendimento. É essa atividade que me mantém ocupado e paga minhas contas. A grana que entra pela banda, que não é muito no momento, eu compro as coisas bacanas, tipo curtir um feriado – algo que não estamos fazendo nessa pandemia.
É você o responsável pelas redes sociais do Memoriam?
Não, esse é um trabalho que eu não faço. Eu tinha acesso como administrador do Facebook da página da banda, com cerca de 33 mil curtidas. Mas não sei que merda eu fiz que perdemos tudo e ainda bloquei acessos de outras pessoas para mexer na página. Conseguimos recuperar tudo depois de uns seis meses tentando desesperadamente. Estou ativo nas redes, me envolvo, mas, para meu próprio bem, não sou autorizado a controlar a página da banda. Quem cuida dessa parte é um amigo nosso, que faz isso de forma independente. Isso nos tira o fardo dessa pressão para nos concentrarmos no que sabemos fazer, que é som. Todos da banda têm atribuições fora as de ser músicos. Eu cuido do merchandising, por exemplo, dos pedidos de camisetas. Frank (Healy) é mais da parte artística, fica responsável pelo que envolve a gravadora e também organiza alguns shows indiretamente. Temos profissionais fazendo isso, mas o Frank chega junto porque tem experiência de agendamento há uns 30 anos. O Scott (Fairfax) a gente deixa só criando riffs, é o que ele faz bem. O mantém ocupado, pois é um monstro dos riffs, e estamos felizes com isso. Então temos função extras que se relacionam com algo que sabemos fazer. Social media não é o caso.
Os primeiros três discos do Memoriam são uma trilogia sobre a morte. O novo trabalho, “To the End”, dá início a uma nova sequência de três registros, porém versando sobre o ciclo da vida — que inevitavelmente leva à morte. Por que essa mudança de perspectiva e o que te atrai em trilogias?
Meio que gosto de ter um plano, algo para me dedicar. É o contador de histórias que há em mim. Tematicamente falando, as letras são sobre temas diversos, mas é interessante ter uma linha narrativa que se desenvolve por tópicos sobre aquilo que estamos versando, sobre onde queremos chegar. E isso funcionou muito bem com os três primeiros discos. São trabalhos nascidos de um lugar bem obscuro e mostram as primeiras evoluções do grupo. Eles vêm da experiência devastadora de perder um amigo, o Martin. Isso foi uma grande influência, especificamente no nosso debut, mas se estendeu pelos outros dois registros. Por isso que dizemos que o tema era esse ciclo da morte. Além disso, o foco central, visualmente falando nas capas, era o caixão. Com “To the End”, nós contamos a história antes disso. “For the Fallen” é como o caixão desfilando pela terra devastada por batalhas logo depois de o líder ser morto. “Silent Vigil” é como um tributo às massas, onde os corpos descansam. Já “Requiem for Mankind” é quando o corpo é enterrado e consumido pelo solo. Agrada-me o conceito de ter uma trilogia artística, em que a parte gráfica dialoga diretamente com essa ideia e flui como imagem e tema. E eu sempre curti viver essa definição, ou ter essa definição, relacionada com a música que criamos, que é death metal. Esse estilo é uma celebração da vida que levamos, pura diversão por tocar esse som, especialmente ao vivo. Foi isso que nos levou a essa nova ideia de desenvolver mais uma trilogia. Acho que quando eu estava escrevendo as letras, tive bastante influência do mundo que nos rodeava. E estávamos em um lugar bem sombrio com o lance do coronavírus. Mas, ao mesmo tempo, pensava: certo, isso está acontecendo, mas não vai durar pra sempre. Deve haver uma luz no fim do túnel e essa experiência global pela qual passamos, comunitariamente, vai nos colocar todos juntos e meio fazer do mundo um lugar melhor em alguns aspectos. Ao menos é o que quero crer. Assim, há um elemento de esperança e alegria olhando para o futuro, em vez de miséria, desespero e tristeza. Aqui (aponta para o fundo de tela com a arte de Dan Seagrave que ilustra a capa do álbum mais recente) estou em meio a túmulos em um cenário distópico de mundo. Essa arte significa a mudança, com cores mais vibrantes. Você pode ver a luz ao fundo, e o líder — no centro da arte — está vivo. É a primeira vez que ele aparece de uma maneira em que não está no caixão. E está segurando uma esfera que simboliza a vida em certos aspectos. É a primeira aparição, de um ciclo de três, que estamos chamando de ciclo da vida. O fim do ciclo da vida, na real. Trata-se de uma prequência de “For the Fallen”. Aqui é como se fosse a batalha, na qual o rei, ainda vivo, leva suas tropas e acaba em “For the Fallen”. Eu fui um pouco Goerge Lucas aqui, um tanto quanto o louco do “Star Wars”. Minha ideia é fazer uma trilogia em reverso agora, esse é o plano para esse e os dois discos subsequentes.
O que a banda pensa sobre essa proposta?
Inclusive, surpreendi os outros caras da banda com essa ideia de trilogia mais uma vez. Falei isso pra eles enquanto fazíamos um release para a Nuclear Blast (gravadora) sobre o primeiro álbum. Aí que revelei esse conceito. E foi um choque pra eles. Agora, fiz isso de novo, porque nem eu tinha me dado conta de que estava planejando fazer uma sequência de três discos conceituais. Mas é legal, nos dá um norte. Nos faz seguirmos adiante, mantendo o ímpeto fluindo para a banda. Isso é importante, pois queremos atingir o máximo possível enquanto temos condições. Estamos todos nos 50 anos — Scott deve estar nos seus 40 e poucos — e sabemos que não vai ser possível fazer isso pra sempre. Vai chegar um momento na vida em que não teremos capacidade mental ou física para seguir. A não ser que nos tornemos os Rolling Stones do death metal, nunca se sabe. Essa questão da continuidade necessária para os próximos dois discos nos mantém ocupados por uns dois ou três anos. Seguimos adiante a passos vorazes. Já temos uns quatro ou cinco sons esboçados para um disco novo. Nossa intenção é gravar em 2022 e lançar no fim do ano. Temos de ver como as coisas vão funcionar com cronogramas, porque acho que tudo (a cadeia que envolve um álbum) pode estar lotado. Há muitas bandas gravando porque não há mais o que se fazer. Não podemos tocar, então é o que resta. E tem a procura massiva pelas plantas de prensagem. Vai ser preciso ver disponibilidade, mas a ideia é gravar ano que vem. Por ora, usamos nosso tempo de maneira positiva. Estamos trancados por causa do coronavírus, não tocamos ao vivo desde 2020. Então, usamos o tempo para criar novas composições e tem sido uma boa experiência. Estamos focados em escrever o álbum.
Concentrar-se nisso tem sido proveitoso?
Normalmente, sempre que estamos fazendo um disco rolam contratempos, porque tem os shows. Não somos uma banda de turnê, mas temos compromissos com shows em mais ou menos um fim de semana sim e outro não. Então, estamos envolvidos com viagem, em avião, geralmente pela Europa. Além disso, há os ensaios e essas tarefas nos tomam tempo. Dessa vez, sem essas complicações da vida, sem distrações dos shows, focamos completamente no disco. E acho que, talvez por isso, “To the End” se destaca dos demais trampos que fizemos. É mais diverso em sonoridades, estruturas, tons e texturas. Claro, tem a questão do novo baterista, que torna as coisas diferentes. Tem a nova gravadora também, dá uma energia nova na promoção. Além de termos tido tempo para trabalhar as músicas em vez de fazer letras e pensar melodias de última hora. Sobre a parte lírica, em vez de seis semanas, tive meio ano. Isso me deu oportunidade de reescrever partes e gravar demos, algo que nunca tinha feito nesses 30 anos loucos trabalhando com música extrema. Era sempre “vai o que sair”. Dessa vez, pude fazer uns testes, ver o que ficava bom. Quando chegou a hora de gravar, estava mais preparado e tranquilo, porque sabia exatamente o que queria como resultado. Vamos tentar isso para o próximo disco. Não sabemos o que vai acontecer na questão dos shows. No Reino Unido, temos algumas gigs marcadas porque estão dentro das nossas pequenas fronteiras solitárias de ilha do Brexit. Fora daqui há uma série de restrições para viagens e isso está em constante mudança em razão da maldita covid. Gravações têm sido períodos bacanas, tenho gostado mais nessa altura da vida do que antes. Aprecio isso pelo que realmente é. Acho que pela experiência e idade, faz você apreciar mais o que está acontecendo, pois sabe o que não é fácil estar ali.
Você é conhecido como o vocalista das guerras, aquele que aborda muito bem batalhas e sangue no chão — e, claro, tópicos inerentes a isso, como ganância, questões sociais e psicológicas. Mas, pelo menos para mim, parece que com o Memoriam o leque se expandiu, e você está mais confortável em falar abertamente sobre outras questões. E isso fica mais gritante em “To the End”, certo?
Sim, certamente. Acho que isso tem a ver com a idade, com a experiência. Toda minha carreira, nos últimos 30 anos, junto com minha antiga banda, o Bolt Thrower, o foco central sempre foram as guerras. Claro, sempre com possibilidade de interpretação, pois as letras foram escritas de forma a permitir essa abertura para outros entendimentos. Guerra pode ser vida, no geral. E é assim que eu via quando estava escrevendo. Há uma constante luta pela existência como humanidade. O lance é que no Bolt Thrower tinha que ter a temática da guerra, a banda era sobre isso. Era bacana e funcionava, mas era um tanto limitante, não me permitia ir além, desenvolver ou tentar algo diferente. E essa é a beleza do que estou fazendo com o Memoriam. Sim, há similaridades e as comparações sempre vão existir. É a minha voz, afinal. Entretanto, sempre estamos tentando dar um passo adiante, sair das sombras das nossas bandas anteriores, formar nosso próprio senso de identidade. E é uma batalha, para ser honesto. Sei que sem o que eu fiz no passado não estaria onde estou agora. Mas é passado. Agora estamos preocupados com o presente e o futuro. Algumas vezes é chato, as pessoas não aceitam o que estamos tentando fazer agora. Superem isso! (risos). Estou brincado! Bom, sobre as letras, é como se fosse um bloco de notas em aberto no qual posso escrever sobre o que considero importante na vida. Sempre vai haver elementos sobre guerra. Fiz isso por muitos anos e poderia fazer dormindo, é uma zona de conforto. É onde geralmente começo ao escrever letras, mas aí quebro esse paradigma e posso injetar outras questões. Em “To the End”, temos as canções “Onwards Into Battle” e “This War is Won” que são mais relacionadas a guerras. Mas nessa plataforma há a possibilidade de explorar outros assuntos que considero importantes no mundo em que vivemos. Se ignorasse meu entendimento, o que eu vejo que ocorre no planeta, situações desafiadoras ou perigosas que valem ser mencionados, eu não seria justo comigo. É minha posição como letrista e vocalista ficar no palanque e pontificar temas pertinentes. Há muitos comentários sociais, culturais e políticos no que escrevo hoje em dia. Deixa muito claro de onde venho, minha visão político-social. É algo firmemente de esquerda, antifascista, e me orgulho disso. Sou apoiador de posicionamentos contra o racismo, o sexismo, a intolerância. O crescimento da ideologia de extrema-direita pelo mundo é assustadora de se observar. Não é apenas um problema local, isso existe em qualquer país. É alarmante e está sendo inflamado por políticos como Donald Trump, que encorajam o crescimento da direita conservadora. Aqui no Reino Unido passamos por bons bocados com o Brexit, com a retirada da União Europeia. E está tudo baseado em questões de raça, na agenda da direita. Tudo tem a ver com medo de outras pessoas, de forasteiros. “Essa gente está destruindo a identidade britânica”. Besteira! O mundo é um lugar bem mais brilhante e excitante com as diferenças. É preciso aceitar as pessoas pelo que elas são e trazer isso para sua cultura. Tenho um posicionamento completamente oposto ao da extrema direita. E isso se reflete muito no conteúdo das letras. Não espero mudar a mentalidade das pessoas, mas gosto de me permitir mostrar de onde venho. Eu me alinho com muita gente que ouve música e eles vão entender o que quero passar e o que vem junto com isso. Levou um tempo, umas três décadas de experiência, para chegar a esse ponto onde não estou nem aí para o que os outros pensam sobre o que faço. É por mim e eu estou curtindo. Me sinto preparado para ficar no parapeito e lidar com as consequências. Se for preciso tirar alguns narizes nazistas do caminho, que seja.
Pensa que essa visão mais progressista tem a ver com o fato de trabalhar com arte, de viajar pelo mundo, conhecer outras culturas?
Claro! São vários fatores que fizeram minha mentalidade se desenvolver. Primeiro, minha herança musical enraizada no crust punk. Minha ideologia foi formada na cena anarcopunk britânica dos anos 1980. Nomes como Antisect, Amebix, Axegrinder e outras bandas desviantes que costumavam tocar no legendário Mermaid (pub de Birminghan que abraçou um então incipiente cenário da música extrema). Tinha ainda o Crass, o Discharge. Curto bandas com conteúdo político ou antipolítico. Isso estabeleceu alguns parâmetros pra mim, no coração e na mente. Tem, ainda, o fato de que quando deixei o Bolt Thrower em 1994/95, cursei Estudos Culturais na Universidade de Birmingham. Isso contemplava teoria da cultura, teoria pós-moderna, teoria clássica contemporânea social. Enfim, conceitos variados. Aprendi bastante sobre cultura africana, russa. Você aprende muito sobre o mundo aí fora. Também se conhece muito saindo para tocar em lugares diferentes. Dá uma visão mais ampla de mundo. É preciso abraçar a cultura e as diferenças. Seria um lugar muito monótono se fossemos uma massa homogênea, tivéssemos a mesma mentalidade, a mesma ideologia. Gosto dessa perspectiva de que o que escrevo é motivado politicamente. Não tenho vergonha nenhuma de tremular minha bandeira vermelha e negra e proclamar mensagem antifa. Não é uma organização terrorista, é um estado de espírito. O antifascismo existe porque há o fascismo. Ou você é uma coisa ou é outra. Há outra camada nas letras, que é o fato de sempre serem baseadas na vida e na experiência. Temas como “My Heart Grows Cold”, que é provavelmente o meu preferido, pois tem um sentimento épico. E é sobre a vida. Eu faço 55 anos em 2021 e hoje em dia considero que posso fazer referências às experiências que tive. Acho que isso ressoa entre as pessoas que ouvem, pois muitos também cresceram com o tempo, alguns devem ter minha idade ou mais. Todos temos nossas vivências, passamos por alegrias e tristezas e isso nos faz ser quem somos. Escrever sobre essas experiências de vida e em geral me dá uma satisfação. “Each Step (One Closer to The Grave)” é outro clássico exemplo disso. Um épico doom arrastado, algo que nunca tinha feito antes. Mostra que podemos explorar tons e texturas para além do óbvio conforme nossas vontades. É bacana que o público aprecie, mas um pouco egoísta porque fazemos para agradar a nós mesmos. Devemos curtir e o resto é só bônus.
Uma das minhas letras preferidas do disco novo é “Mass Psychosis”, que você inclusive disse em outras entrevistas que é um som inspirado em Killing Joke — uma banda que muitos artistas extremos citam como referência? Por que acredita que o Killing Joke é tão reverenciado por bandas mais agressivas?
Acho que eles são uma banda de músicos mesmo, um grande conjunto. Creio que muitos pares respeitam o que eles fazem, pois os caras percebem a diferença de profundidade e os níveis da obra do Killing Joke. Eles estão sempre à frente, e seguem relevantes. Se você ler as letras por meio das mudanças que ocorrem com tempo… “Pandemonium” (1994) é diferente do que eles já haviam feito, soa meio eletrônico, tecnológico. Mas sintetiza bem o tempo em que foi feito, mantendo o peso. Em qualquer álbum que eles lançam há certo elemento que o torna incrivelmente profundo musicalmente. E para mim, como letrista, como frontman, Jaz Coleman é um herói absoluto. As letras dele são incríveis, captam os momentos, o mundo em nossa volta. Para mim ele é um ícone, sou muito fã. Enfim, dá para ouvir os discos do Killing Joke depois de lançados e eles continuam impactantes e dialogando com o que ocorre no mundo. É uma banda esperta musicalmente, tudo que fazem é ouro. E nosso novo baterista Spike tocou com eles.
Aliás, não apenas com o Killing Joke, mas também com English Dogs, The Damned…
Conflict, Sacrilege, Morrissey (não vou falar sobre isso…risos). O currículo dele é rico. E é meio pela chegada do Spike que fizemos “Mass Psychosis”, pensamos que seria legal usar essa conexão ao máximo. E o Spike fez o que ele achou legal na bateria. Eu não havia ouvido a ideia dele até chegar no estúdio e, assim que escutei, fiquei maravilhado. Ele acertou exatamente naquilo que gostaríamos de atingir. Spike encapsulou o sentimento da arte, e esse som é um tributo ao Killing Joke.
E tem mais um lance interessante que é do fato de o Killing Joke ter uma faixa com temática semelhante, que é “Psyche”, lado b do single 7” “Wardance”. O tema é um tanto parecido, não?
Sim! É um registro repetitivo, meio hipnótico, que funciona muito bem. Falando sobre a nossa música, “Mass Psychosis”, divide opiniões. Tem gente que não entendeu. Especialmente os alemães, não sei o por quê. Alguns deles ficaram confusos. “Isso não é metal” (imita Karl, com sotaque germânico: “this is not me-tal”). Alguns disseram que é a pior faixa do disco, e outros a melhor. Eu adoro esse tipo de situação, pois o novo disco tem muitas sonoridades distintas, com sentimentos variados. Isso é um grande testamento do que estamos tentando com esse trabalho, algo que pretendemos continuar com o próximo. Queremos explorar a criatividade, que é o que nos interessa. Não temos receio disso. Em essência, ter uma banda deveria ser sobre isso.
Já falamos sobre preconceitos, e essa questão tem a ver: o rock e o metal ainda são predominantemente um meio masculino. E no Bolt Thrower havia uma baixista garota, a Jo Bench. Isso em um tempo em que estar numa banda extrema já não era tão simples para homens, quiçá para uma mulher. Você e ela chegavam a conversar sobre questões de gênero na música? E qual a sua percepção sobre a percepção dela de ser uma figura feminina em uma banda?
Era diferente. É preciso ter em mente que ela tinha necessidades diferentes. Quando estávamos em turnê, tentávamos dar espaço pra ela ser ela mesma e curtir. Tipo alguma área reservada. Mas, no geral, ela era como a gente, parte do grupo. Não a tratávamos de maneira diferente em relação aos demais. Ela era uma integrante da banda, e ocupava a função que tinha pelos próprios méritos. Ela era a baixista e uma força motriz dentro da banda. Claro que éramos cientes do fato de ela ser uma mulher e ficávamos sempre alerta para ver se ela estava bem, se não era ameaçada. Acredito que as pessoas sempre foram respeitosas com ela e curtiam o que a Jo fazia. E ela estar onde estava foi ainda muito importante para outras mulheres terem oportunidade de pensar se queriam fazer aquilo também: “Se a Jo está lá, talvez eu também possa”. Foi uma inspiração para gerações diferentes em mostrar a importância de se ter mulheres na cena e quanto isso era necessário, pois é um espaço muito masculinizado. Era um meio que poderia ser mais igualitário, onde as mulheres podiam ser protagonistas sem serem oprimidas ou subjugadas. Opressão é sobre o que não deveria ser o metal extremo. A Jo foi pioneira e uma espécie de ícone para muita gente questionar seu senso sobre sexualidade e sobre o que as mulheres poderiam fazer. Ela foi bem respeitada pelo trabalho que desempenhou e pavimentou caminhos para outras meninas no metal. Foi muito bom estar envolvido com algo que tem relação com minha ideologia também.
Acredita que o metal é um espaço seguro e acolhedor para grupos mais vulneráveis, como mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+?
Gosto de pensar que sim. No meu mundo, é e sempre vai ser. Tenho amigos de diferentes etnias e gêneros, e reforço que isso é que torna o mundo interessante. Acho que, atualmente, mais do que há 20 anos, a situação está mais diversificada. Mas sim, ainda há um logo caminho a ser percorrido. Ainda há problemas da cena que precisam ser debatidos. A questão latente da ideologia tendenciosa de extrema direita, por exemplo. Por sorte, temos vozes falando mais alto, há mais pessoas aceitando as diferenças. Somos orgulhosos de gays na cena, eles estão ganhando espaço. A mesma coisa com pessoas de cor. Precisamos ser ainda mais vocálicos e prolíficos com essas questões para que possamos ir adiante. Houve mudanças em relação ao passado, mas ainda existe o que ser melhorado.
Trocando de assunto: você toma conta da sua voz?
Não (risos)! É estranho, algo acontece, uma reação química talvez. Eu tomo uma cerveja, não vou negar. Mas, se você pedir pra eu fazer vocal death metal agora, não vou conseguir. Tem de ter um contexto, preciso estar dentro da atmosfera para fazer. Tenho feito isso (vocal) por muito tempo. Eu chamo o que faço de grito ritmado, e funciona. Faz 30 anos que uso minha voz e desenvolvi um tipo de nível de confiança na minha habilidade. Você não tem de ser bom nesse lance de cantar. Tem é de mostrar confiança, juntar os pontos para isso. Enquanto for convincente na entrega, não dou a mínima para o que outros pensam. Faço o que faço e estou curtindo, é o que importa. Como vocalista, não adianta querer emular alguém. É preciso ser você mesmo para se desenvolver. Tem de deixar fluir pela sua alma e coração naturalmente, então tudo vai se encaixar. Tentar imitar alguém fica perceptível, as pessoas notam. Tem se soar natural, esteja onde estiver, seja na sala de ensaio ou numa sexta-feira à noite fazendo shows locais. Apenar curta! Tire desses momentos o melhor que eles podem proporcionar, pois nunca se sabe o que está por vir.
Li em uma entrevista antiga sua que rolaram ocasiões em que sua voz sumia, mas quando começavam os shows ela estava lá e você não sabia de onde vinha.
Sim, isso não acontece com frequência, mas já rolou sim. É algo bem estranho, pois a voz com a qual eu falo sumia completamente. E a ideia de estar diante do microfone, interagir com as pessoas sem estar aparentemente com voz, é um tanto assustadora. Mas assim que se está no palco, a voz parece vir de um lugar diferente. Não da laringe e faringe, mas mais como se fosse do peito. A força e energia da voz brotam. Teve uma vez que o Chris Reifert (vocal e bateria do Autopsy) me fez tomar uma garrafa de Jack Daniel’s antes de um show e eu me senti muito mal — acho que mais psicologicamente do que fisicamente. Era um medo psicológico de não estar apto a fazer meu vocal. Mas assim que se está em no palco, a voz vem, talvez do sarcófago aqui (aponta para o peito). É doido, mas funciona. Claro, eu nunca fiz cinco ou seis shows em sequência. Era sempre dois ou três no fim de semana. Então, nunca foi necessária essa pressão com a voz. Sou bem sortudo com esse ofício.
Acredita que, se tivesse passado por um cronograma pesado de turnê, sua voz poderia estar danificada?
Eu não poderia fazer, mental e fisicamente. Neste ponto da vida, não há energia para isso. Não rolaria. Há uns 20 anos, o entusiasmo compensaria, embora ainda fosse um desafio fazer meia dúzia de shows corridos. Mas agora, com os impactos da vida — cigarro, bebida… —, é um animal diferente para se lidar. São ferramentas novas para se trabalhar hoje em dia. Eu me concentro mais numa entrega concisa, clara e enunciada. Assim a plateia pode ouvir o que estou dizendo. Eu gasto um bom tempo escrevendo letras, as formulando, então é bacana que as pessoas possam entender as palavras que estou dizendo.
Acho que essa intenção de entregar algo bacana está bem clara em “To the End”. Não apenas de sua parte, mas de toda a banda, que soa bem entrosada.
Isso vem de se tocar junto. Leva uns dois ou três álbuns para criar liga. Apesar de já conhecermos uns aos outros há anos, levou algum tempo para descobrir quem somos, como banda, e criar uma identidade. Acho que conseguimos isso com “Requiem for Mankind”, gravado no The Parlour Stúdio, com Russ Russel. Ele estar envolvido foi um grande passo para nós, porque funcionamos muito bem juntos. Ele é quase um quinto membro silencioso, trouxe muito para o que estamos fazendo. O Russ nos fez sentir mais confiantes em nossas habilidades no estúdio, e a partir de agora vamos trabalhar esses pontos fortes. Com “To the End” fomos além do modelo que criamos em “Requiem for Mankind”. Trata-se de um avanço, e queremos construir algo em cima disso e ver onde vai parar, até onde conseguimos ir além de nossas barreiras. Talvez virarmos os Rolling Stones do death metal (risos).
Curto pegar títulos de álbuns ou nomes de música e aplicá-los em outros contextos. Vamos a alguns exercícios assim… Pra você onde a expressão ‘No Guts, No Glory’ (“sem coragem, sem vitória”, em tradução livre) se aplica diariamente?
Essa é um hino, além de um lema de vida. Tem sido usado por um grupo de pessoas na Holanda que faz caridade para ajudar pessoas com câncer. É bacana saber que a música teve um amplo impacto e está servindo para o bem-estar social. “No Guts, No Glory” é uma maneira de viver a vida, de ir adiante, ignorar seus detratores. É um jeito de ser forte e verdadeiro com você mesmo, fazendo o melhor possível da vida.
Qual a pior “Failure to Comply” (inobservância)?
Eu usava essa expressão quando falava sobre contrabandistas/falsificadores (cambistas). Tem muitos deles tentando nos passar para trás e vender camisetas falsas da banda, algo que eles não têm autoridade para fazer, tampouco o direito. É uma espécie de recado a esse pessoal, para que parem. Caso contrário, a inobservância vai render reações legais. Mas isso pode ter relação com outras situações. Algumas vezes na vida precisamos obedecer às ordens sociais. Precisamos fazer os testes de Covid, precisamos tomar a vacina. Não sou antivacina e não concordo com negacioanistas que pensam ser um grande golpe para dominar o mundo. Penso que é para um bem social maior que temos de obedecer. Precisamos nos posicionar para fazer mudança, ficar do lado do que é certo. Uma das questões relacionadas à “Failure to Comply” é a Black Lives Matter. É preciso reconhecer que é um problema que nos afeta há muito tempo e não melhorou. Mas agora é tempo de nos colocarmos contra isso. Espero que surja algo positivo disso. É necessário sermos contra o que julgamos errado, moralmente ou em nossos pensamentos, não seguir do jeito que está.
Algo que você defenderia “To the End” (até o fim) e algo que gostaria de fazer até o fim?
Boa pergunta! Gostaria de seguir criando música, tocando ao vivo, gravando álbuns enquanto tiver possibilidade física e mental para tanto. Isso (música) é uma força de vida. Houve um período em que não estava envolvido com som, quando saí do Bolt Thrower, em 1994, até 2004. Foram uns 10 anos. Eu estive ocupado, fiz minha graduação, trabalhos e experiências mais amplas na vida. Mas sempre senti falta de fazer show. Não há nada no mundo que chegue perto disso. De um ponto de vista mental, você conhece drogas, mas nada se equipara a tocar ao vivo. Ter tido essa experiência e depois ficar sem me fez apreciar ainda mais — algo que o coronavírus agravou. O que eu queria fazer até o fim é estar nessa banda e fazer gigs pelo simples prazer de tocar.
Que tipo de lutas acredita que vale a pena seguir “Onwards into battle” (avante na batalha)?
Lutar a boa luta. Algumas batalhas nunca se vence, é preciso escolher as que valem a pena. Para mim, meu posicionamento político. Lutar contra a opressão e o racismo é muito importante. Filhos e família, sempre são a coisa mais importante e sempre serão. Ter uma banda é ótimo, mas família é o que importa. Família és todo (risos).
Se estivermos perto do fim, está pronto para fazer um “Requiem for Makind” (espécie de canção para os mortos)?
Sim, eu estaria preparado, em pé no púlpito. E tenho experiência nisso, amigo, já fui do coral da igreja. Seria muito bacana se o Jaz Coleman pudesse se juntar a mim. Faria isso todo o tempo em que ele estivesse junto (risos). Meus sentimentos são de que estamos passando por uma pandemia global e todos tivemos dificuldades, mas isso vai nos fazer pessoas melhores. Vamos apreciar a vida que temos perdido, dar mais consideração à beleza do mundo a nossa volta. No fim das contas, espero que isso nos sirva de propósito para vivermos por completo.
O que você diria para “Those Once Loyal” (Aqueles uma vez leais) às suas bandas?
Superem isso (muitos risos)! Eu agradeço a lealdade, o amor e a reverência, mas é preciso aceitar que a vida segue. Somos todos invictos.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Baita, entrevista, nunca escutei a banda e vou escutar agora mesmo!!
Maravilhosa entrevista, pra falar a verdade uma das melhores que li nos últimos tempos. Karl Willets é uma instituição do Death Metal.