entrevista por Homero Pivotto Jr.
Desconsiderando-se fronteiras e peculiaridades, as cenas locais de música independente em distintas cidades compartilham mais afinidades do que diferenças. A vontade de fazer acontecer que se sobressai à falta de condições, o desejo de se expressar gritando alto para desafiar a falta de apoio e a satisfação de dividir momentos de realização com outros desajustados dentro de um recorte temporal e geográfico são características comuns desses microcosmos culturais estabelecidos em torno da arte sonora. “Many nations, one underground” (várias nações, um underground), sintetiza o título de uma faixa da Conquest For Death, banda estadunidense de fastcore.
Por razões diversas, tais movimentações acabam ficando restritas e, não raro, são esquecidas. Figura ativa no submundo cultural do Sul do país há mais de uma década, o realizador audiovisual e músico Wender Zanon, 30 anos, resolveu subverter esse cenário comum. Para isso, idealizou e dirigiu um resgate histórico em forma de documentário, elencando acontecimentos que o meio alternativo musical trilhou em sua terra natal, Canoas — município da região metropolitana de Porto Alegre. “This Is Canoas, not POA” (2021), retrata, com foco no rock, parte das atividades envolvendo bandas, pontos de encontros, fomentadores e eventos desde os anos 1980 até recentemente.
A ideia do projeto, contemplado com repasses da Lei Aldir Blanc no Rio Grande do Sul (mecanismo de estímulo financeiro ao setor cultural disponibilizado pelo governo federal), é inspirar pessoas de outros cantos para que contem suas experiências e não as deixem desaparecer com o passar do tempo. “É tudo que eu quero e desejo com esse filme. A gente precisa dar mais atenção pra nossas pequenas histórias e resgatar elas. Se não vai ser sempre a histórias de quem teve ‘sucesso’, saca?”, explica Wender.
O hoje baixista (dos grupos Paquetá e Conflito), também um admirador de cinema, tomou lições aprendidas no esquema DIY (do it yourself ou faça você mesmo) e reuniu amigos do circuito independente para colocar a iniciativa em prática. O resultado é uma produção de duas horas com personagens narrando seus envolvimentos com música e suas relações de pertencimento a uma determinada localidade. Na entrevista a seguir, Wender explica o processo de pesquisa para o longa-metragem, avalia incentivos estatais ao setor de cultura e justifica o porquê de explorar o underground canoense na tela.
Como diz um som do quarteto hardcore CxFxC (um dos mais antigos de Canoas em atividade, formado em 1991): seja a cena. Ou, neste caso: assista às cenas de quem faz a cena em Canoas.
De onde veio a ideia de fazer um documentário falando sobre a cena rockeira independente de Canoas? O que te levou a crer que valeria o esforço, que haveria conteúdo a ser explorado?
O embrião da ideia vem lá do meu inicio como frequentador dos shows na minha cidade. Eu notei que muitas daquelas bandas que eu estava assistindo ficariam apenas na história oral de um pequeno grupo. Isso era tipo 2006/2007, quando ainda era difícil de gravar. Talvez porque naquele meio todo mundo era um pouco duro de grana, sei lá. Lembro uma vez que uns amigos gravaram um ensaio ao vivo e já ficaram muito felizes com aquilo, saca? Foi uma vibração, uma conquista. Hoje em dia vai escutar e é uma merda. Tipo, não é um material que fica na “história”. Fazer um material de qualidade requer grana, planejamento, maturidade e isso muitas vezes não tá em sintonia com o momento da banda, mas também não é isso que impede um som ou um disco de ser gravado, sabe? Impede que essa mídia, essa arte se espalhe pra mais espaços e pessoas, obtenha mais exposição na imprensa e, assim, faça parte de uma história oficial. Enfim, digo isso pra mostrar que todo lugar tem uma história em potencial a ser contada. E essas micro-histórias influenciam, moldam vidas e formam muita gente. Assim como foi um aprendizado enorme eu ter participado de uma cena, sabe? A ideia do filme vai ao encontro dessa valorização da potência da cultura e da arte que ocorre em espaços distintos, mas principalmente em pontos que estão fora do eixo, dos grandes centros. Então, desde aquela época em que eu comecei a ver shows até hoje, fiquei com essa pulga atrás da orelha de “como colaborar e contar a história daquelas pessoas que foram tão importantes na minha formação?”. Aí, com a pandemia, fiquei desempregado, reativei alguns projetos e um deles foi esse. Falei com meu amigo Roger Neres sobre montar um podcast e fazer um mapeamento da cidade. E ele respondeu “cara, isso dá um filme”! Aí começamos a trabalhar pra isso virar um documentário.
Acredita que esses registros locais, mas que têm um apelo global, que dialogam e se assemelham com o que acontece no submundo musical de outras áreas geográficas, são importantes? Por quê?
É escola, né!? O filme reforça muito essa importância dos espaços como pontos de cultura, pontos de encontro, de ideias e de referências. O envolvimento com o underground da minha cidade serviu para abrir portas e conhecer outras pessoas, músicas, culturas, filmes e livros. Tipo, eu tava lá em um bairro de Canoas, minha mãe é costureira e meu pai é metalúrgico, cultura não era algo presente na minha criação. Aí tu começa a ir em shows, se envolver, conversa com quem tá tocando. Logo passa a organizar shows e descobre que é possível fazer várias coisas. Lembro que logo nas primeiras gigs que participei da organização, a gente já estava recebendo bandas da Argentina, Chile e Estados Unidos. E tipo, sair de uma perspectiva que tu não imagina que vai conhecer algo fora do teu bairro pra conhecer gente de outros lados do mundo é um aprendizado e tanto! Então, esse meu relato eu sei que acontece também em outras regiões. Essa porta que se abre quando tu te envolve com cultura é um lance transformador.
É tua primeira incursão como diretor?
De verdade, com condições técnicas e financeiras, é sim. Faço alguns materiais de vídeo pra Paquetá e Conflito — que são bandas em que eu toco —, mas aí é aquela coisa. Faz como pode, quando dá e com as ferramentas que se tem.
Como foi a pesquisa e quanto tempo levou desde que esse trabalho de mapear pessoas, lugares e acontecimentos começou até o montagem do documentário?
Esse processo inicial durou cerca de três meses. Quando falei com o Roger Neres, produtor do filme, a gente logo tirou a ideia da cabeça e começou a executa-la. A primeira pesquisa foi feita on-line, por um formulário, e começamos a enviar pra galera que a gente conhecia e ia pedindo pra espalhar. Isso foi algo legal. Inicialmente pensei em começar a falar a partir dos anos 1990. Pra mim foi quando a coisa ficou mais legal, quando o punk estava forte na cidade e era a fase em que meus amigos mais velhos tinham começado também. Mas essa primeira pesquisa acabou indo longe, chegou na galera dos anos 80 e, ali, já descobri um pessoal que estava engajado na cidade e que eu não conhecia. Aí o filme acabou ganhando uma década a mais.
A equipe é praticamente toda de pessoas que são envolvidas com o cenário da música independente — talvez não só de Canoas, mas que tem relação com o mundo underground. Foi uma preocupação ter esse tipo de profissionais no trabalho?
Na verdade, minha maior preocupação foi tipo: “Eu nunca fiz um filme, quem eu sei que também nunca fez um filme e que eu possa chamar pra participar?”. Tirando o Renato, da Chama Vídeo Independente, que é videomaker há anos e o Daniel Hogrefe, que é tatuador, mas já trabalhou em agência de publicidade, o resto da galera de alguma forma está dando os primeiros passos e tentando se manter com seus trabalhos. Todo mundo tem experiência, mas uma boa parte não tinha pegado um projeto tão grande ou de fato um filme pra fazer. Quando fui formando a equipe do projeto pensei mais nisso. Quem está na mesma caminhada e nos mesmos passos que eu, sabe? Acho que isso definiu uma sintonia e uma entrega que acabou rolando pra esse filme. A gente tinha condições de fazer algo bom, eu sabia que essas pessoas iriam me entregar um material de qualidade e também serviria pra elevar o nível do nosso trabalho. Então, respondendo à pergunta, acho que foi mais uma consequência mesmo de estar envolvido com música. Logicamente minha rede de amigos/profissionais também são desse meio.
Quantas pessoas foram entrevistadas? Como se deu a escolha desses personagens?
Foram 60 entrevistas no total. Os primeiros entrevistados saíram da primeira fase da pesquisa. Fui analisando quem tinha respondido com mais entusiasmo e logo teria mais histórias para contar. Aí, conforme foram rolando as entrevistas, os próprios entrevistados citavam alguém que parecia ser interessante ou até falavam “tem que conversar com fulano de tal”. Então, teve um momento em que todo dia aparecia um entrevistado novo pra ir atrás. O próprio filme e os próprios entrevistados foram pedindo passagem.
E quanto tempo de gravações prévias acabaram virando essas duas horas de filme? Quais critérios pra selecionar o que entrou para o corte final?
Em média, cada entrevista ficou com meia hora. Claro que teve gente que falou quase 1h30min hehe. No fim, juntamos umas 35 horas de material captado. No momento em que a entrevista estava rolando, eu já estava sacando o que queria que fosse pro filme. Então, digamos que tiveram dois momentos de decupagem. Na entrevista, eu já selecionava mentalmente o que era legal. Depois, quando fui escutar tudo de novo, fui anotando e marcando os tempos pra passar pro editor. O critério foi ver o que formava uma “unidade” ou configurava um capitulo. Teve bons momentos que ficaram de fora porque eram só duas pessoas falando de algo. Aí não tinha um peso pra entrar no filme, sabe? Ia ficar muito perdido.
Por que um nome em inglês e não alguma expressão que faça referência à própria produção musical da cidade?
“This is Canoas, Not POA” era um evento que eu fazia na cidade. O nome veio daquela coletânea de hardcore “This is Boston, Not L.A”. Aí na época que estava escrevendo o filme no edital, pensei que seria interessante aproveitar uma ideia que já existia e transformar em filme do que criar um nome totalmente novo.
Essa coletânea punk estadunidense ‘This Is Boston not LA’ foi um espécie de reação da galera da cidade na costa leste dos EUA ante o que rolava no município da costa oeste. Seria mais ou menos essa ideia se compararmos Canoas com a vizinha Porto Alegre?
Isso. O nome é em homenagem a coletânea, mas é mais uma tiração de onda do que algo “sério”. O lance é que Canoas, assim como qualquer cidade que fica do lado de uma capital ou um grande centro urbano, sofre e agradece por estar tão perto. A gente sabe que as coisas são mais “evidentes” na capital, que as novidades chegam primeiro lá. As bandas famosas estão na capital. Pra tua banda ser mais reconhecida tu precisa ir pra Porto Alegre. Quem se dá bem em Porto Alegre daí precisa ir pra São Paulo, saca? Porque é lá onde as coisas rolam. Acho que é essa a relação Canoas x Poa. É na capital onde a cultura oficial é forte e acontece. Aquela cultura que tu vê na tv, no jornal, no melhor site de cobertura, sabe? Pegando um exemplo recente, não é à toa que o livro que tá saindo agora dos 100 grandes discos do rock gaúcho é basicamente formado por bandas de Porto Alegre. Enfim, a gente precisa ter essa cultura de aprender, vivenciar e respeitar a cultura local, saca? Ali que é o centro de formação. Tem muita gente aqui da cidade que vivencia mais a capital do que a cena local. Talvez porque a cena local não tenha os atrativos que aquela pessoa goste, mas acho que na maioria dos casos é porque as pessoas não têm oportunidades e incentivos de frequentar o que acontece no seu bairro, cidade, clubinho, saca? E é tipo isso: pra tua arte ser reconhecida, no caso tua banda, tu precisa passar pela aprovação da capital, saca? A função de Canoas, uma cidade dormitório, é continuar sendo uma cidade dormitório até que alguém tente mudar isso. Claro que é nos grandes centros urbanos que tudo acontece. Mas por exemplo: tem um capítulo do filme em que a gente fala sobre uns shows que rolavam aqui no bairro Mathias Velho e que aconteciam em uma cancha de futebol de areia. É um espaço conquistado que a dona na época, a Sônia, abriu para shows. Um espaço no meio do bairro. Aquilo foi importante e formou muitas pessoas. Enfim, a maioria das bandas que formaram meu gosto musical e o meu “entendimento” sobre cultura, arte e tal, são bandas que em sua maioria não saíram da cidade ou ficaram restritas ao circuito da região metropolitana. As pessoas que estão envolvidas nessas bandas em sua maioria são operários, professores, funcionários, que nunca desistiram de fazer algo.
A narrativa do filme passa uma ideia de cronologia. Tipo: pega desde os anos 1980 em diante. Por que fizeram essa opção e não algo mais fragmentado, misturado?
Eu tenho uma intenção que é o filme funcionar como uma ponte, uma ligação entre as gerações de Canoas. Pra isso fazer sentindo a saída foi falar dos espaços e não das bandas. A ordem cronológica ajudou a juntar as gerações de músicos e rolês. E dai resolvi dividir o filme por espaços físicos que colaboraram pras coisas acontecerem na cidade.
Houve preocupação em contemplar a importância das mulheres na cena canoense, já que elas são retratadas — ainda que em menor número (até porque ainda é um meio predominantemente masculino)?
Sim, já nas entrevistas elas abordam esse assunto porque faz parte da vivência delas. Então era um relato que tinha que estar ali porque entre as falas delas essa experiência era unânime. E acredito que seja também assim em todos os circuitos culturais
A questão de viabilizar o projeto por meio de lei de incentivo: qual papel disso e como avaliam esses mecanismos de fomento da cultura?
Essencial! Esse filme não teria sido feito sem a descentralização de recursos propostos pela Lei Aldir Blanc. Assim, não sou um megaconhecedor de edital, mas eu nunca tinha tentado um edital antes porque não tinha feito nenhum filme pra conseguir um edital pra fazer um filme, por exemplo. Esses editais emergenciais da Aldir Blanc possibilitaram que a renda fosse distribuída para muitos pequenos produtores, e não para poucos grandes produtores. E acho isso essencial. Por exemplo: Canoas está fervendo de iniciativas agora, e isso é excelente. Várias sementes estão sendo plantadas nesse momento graças à essa ação da Lei Aldir Blanc. E pô! Tamo falando da cidade, da história dela… quem teria interesse em bancar isso, será, se fosse por vias de um financiamento privado?
Um dos entrevistados comenta que, em cultura, oferta gera demanda. Dito isso, acredita que seria importante que pessoas que vivem/vivenciaram cenas independentes de outros lugares também fizessem resgates desse tipo. Assim, registros locais passariam a ser mais comuns e, consequentemente, alcançar mais público?
Sim. É tudo que eu quero e desejo com esse filme. A gente precisa dar mais atenção pra nossas pequenas histórias e resgatar elas. Se não vai ser sempre a histórias de quem teve “sucesso”, saca? E o que é isso? Pra quem tá começando a fazer som em Canoas agora é importante que essa pessoa saiba que já teve tal banda ali, tal banda no seu bairro que fez isso ou aquilo. Isso serve de incentivo! Mas não falo só de música, falo de tudo, cara. Capoeira, teatro, literatura, qualquer arte, a gente vive em um país que cada vez mais tem um descaso com as formas de arte. Então cabe a nós acharmos soluções e maneiras de manter a cultura viva e repassar isso entre as gerações.
Como tu apresentarias o cenário da música independente canoense para alguém que não conhece? Mais: como faria isso tendo em mente a ideia de despertar o interesse desse possível ouvinte/expectador para o que foi produzido na cidade, para que assista ao documentário?
Canoas é uma cidade dormitório, uma cidade industrial. A linha do trem e a rodovia dividem a cidade. Esses elementos cooperam muito para formar a identidade cultural de quem vive aqui. A gente não teve nenhuma banda megafamosa, mas por exemplo, no final da primeira fase de pesquisa, chegamos em 320 bandas e 80 lugares citados pelos entrevistados via formulário. Isso quer dizer alguma coisa, sabe? Eu acho que apresentaria o filme com a ideia de “veja esse filme e faça o registro da sua cena também”. Eu acho que isso pode ser interessante. Na real, repito, é isso que quero com o filme.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Sensacional! Tive a oportunidade de organizar shows quando fiz parte da diretoria do BIL trabalhando inclusive com o próprio Wender e, antes disso, organizar alguns shows no Bairro Fátima. Estou muito feliz com essa iniciativa e honrado em ter feito parte desse documentário. Parabéns a SCREAMYELL e ao Homero pela iniciativa em entrevistar e divulgar o documentário. Seguimos!
Sensacional esse documentário! Embora seja sobre a cena underground de Canoas, sua mensagem é universal e fala sobre cidades diversas, inclusive de onde moro. Parabéns aos realizadores.