Texto por Daniel Abreu
No dia 22 de maio de 1966, o jornal Diário de Notícias publicou na página 3 uma reportagem com o seguinte título: “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”. Com 24 anos na época, Nara Leão não era qualquer pessoa. Uma das expoentes da bossa nova, a cantora tinha brigado com meio mundo para gravar sambas de compositores das favelas cariocas em seu disco de estreia. Na entrevista, em meio ao regime militar, Nara não poupou os militares: os “generais podiam entender de canhão e de metralhadora, mas não pescavam nada de política” e ainda pedia a extinção do Exército. Em seu novo livro, “Ninguém pode com Nara Leão”, o jornalista Tom Cardoso conta essa e muitas outras histórias a respeito de uma das principais vozes do nosso país.
Nara Leão nasceu em 1942 e nos anos 50 se tornou um dos principais nomes da bossa nova. O gênero, que iria se tornar um patrimônio cultural, nasceu no apartamento que Nara morava com os pais, em Copacabana. O livro conta que seu pai, o advogado Jairo Leão, pouco ligado em regras, durante esse período estabeleceu apenas uma com relação às reuniões que a filha fazia em casa. Toda quinta-feira, ela e os amigos, teriam que arrumar outro lugar para tocar. Esse era o dia na semana que o pai recebia alguns amigos, entre eles Millôr Fernandes, Paulo Francis e Samuel Wainer, para jogar pôquer.
Porém, o que chama mais atenção no livro de Tom a respeito desse período de gestação da bossa nova é o modo como Nara era tratada pela turma que se reunia no apartamento da Avenida Atlântica. Dotada de uma timidez enorme, ela servia muitas vezes como um tipo de computador, pois conhecia de cor todas as letras, melodias e acordes. Quando tentava puxar uma roda de violão, quase sempre era aconselhada a não ir muito longe, ouvindo alguns “elogios” como “fanhosa” e “desafinada”. “Acho mesmo que só permaneci no grupo por causa da minha casa. Ninguém acreditava em mim, mas ninguém me escutava cantando”, contou Nara, anos depois, para o Museu da Imagem e do Som.
Longe dos barquinhos e dos violões da bossa nova, Nara seria associada também a música de protesto durante toda a sua carreira. Isso nasce a partir de seu segundo disco e do espetáculo musical que viria em seguida.
O livro conta que, desde o seu primeiro LP, o icônico “Nara”, de 1964 (com a capa – no padrão Gravadora Elenco – tão icônica quanto), a cantora começou a se aproximar dos sambistas da Mangueira e dos outros morros do Rio de Janeiro. Além disso, ela estava cada vez mais envolvida com o pessoal do Cinema Novo. Dessa aproximação, nasceu seu segundo trabalho, “Opinião de Nara” (1964), um verdadeiro ataque ao regime militar lançado sete meses após o Golpe de 1964 – e que entendia muito bem o contexto político e social que estava inserido. Tom Cardoso conta que foi o cineasta Glauber Rocha que “sugeriu que a primeira faixa do disco, ‘Opinião’, composta por Zé Kéti, tivesse um repicar de bateria lembrando que eram tempos de ditadura militar”.
Com o sucesso do álbum, nasceu um dos espetáculos musicais mais importantes da história do Brasil, o “Opinião”. Protagonizado pela própria Nara, o musical contava ainda com o sambista Zé Kéti e com o cantor sertanejo João do Vale. Dirigido por Augusto Boal, a estreia ocorreu no dia 11 de dezembro de 1964 no Teatro de Arena, localizado em um shopping center de Copacabana. “Quando a cantora entrou no palco com a camisa vermelha de corte masculino, calça jeans e tênis conga, denunciando as mazelas e a falta de liberdade do povo brasileiro, não foi só a plateia que se espantou com a força e a ousadia do espetáculo”, conta Tom.
Extremamente engajado politicamente, o espetáculo se tornou um sucesso e uma das atrações mais concorridas do Rio de Janeiro rendendo um dos discos obrigatórios da música brasileira, “Show Opinião”, de 1965. Porém nem todo mundo gostou, principalmente o regime militar. Um que teve que dar explicações para a ditadura foi Arnon de Mello, pai do ex-presidente da república Fernando Collor. O livro conta que o senador teve que explicar para os generais e colegas de partido (Arena) como ele tinha alugado o teatro para artistas que estavam insultando o regime e a família brasileira. Outra reação contada por Tom, e que muito bem poderia ser confundida com manifestações que ocorrem nos dias de hoje, foi que “na manhã do dia 14 de janeiro de 1965, o teatro amanheceu pichado com desenhos de foice e martelo e slogans anticomunistas”.
O jornalista também fala no livro sobre as importantes parcerias musicais que Nara teve ao longo de sua carreira e como ela tinha uma aptidão para reconhecer grandes talentos. Chico Buarque foi um deles. Em seu disco de 1966, “Nara Pede Passagem”, recheado de músicas de grandes compositores da nossa música, o trabalho também trazia algumas novidades, como “Amo Tanto”, de Jards Macalé, “Recado”, de Paulinho da Viola (Jards e Paulinho ainda não tinham gravado seus primeiros discos) e três músicas de Chico, que debutaria em álbum neste mesmo 66. “Nara esteve com Chico pela primeira vez no apartamento de Copacabana, nos primeiros meses de 1965. Em pânico, ele mal abriu a boca. Conseguiu só explicar que era estudante de arquitetura em São Paulo, mas queria mesmo fazer música – e tinha algumas para mostrar. Pegou o violão e cantou, enquanto Nara registrava no gravador, também sem ter muito o que dizer, deslumbrada com o que ouvia,” conta Tom a respeito do primeiro encontro entre os dois.
Além disso, o livro aborda a turbulenta relação de Nara com Elis Regina, a vida pessoal da cantora, o tumor no cérebro que viria tirar a sua vida em 1989 aos 47 anos, entre outros assuntos. “Ninguém pode com Nara Leão” é uma obra que faz jus a um dos principais nomes da música brasileira e tem como grande mérito apresentar Nara Leão e sua obra para outras gerações.
– Daniel Abreu é jornalista responsável pelo Geleia Mecânica e colaborador do Scream & Yell e do Whiplash.
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