por Adolfo Gomes
Para o cineasta ítalo-americano Abel Ferrara é preciso reivindicar a alma como algo que está fora de nós. “Sibéria” (2020), um dos seus mais recentes trabalhos, constitui a linguagem possível dessa busca, permeada de pesadelos, alguma acédia e raros momentos de sol e trégua.
Ainda que Ferrara evoque a literatura confessional, a pintura simbolista de Gustave Moreau e a música, o heavy metal (com uma exceção mais pop que faz toda a diferença); o cinema, portanto a platitude da imagem, continua a ser sua religião, o único elo viável no seu tráfego pelo mundo exterior – o íntimo de um homem é quase sempre um abismo difícil de representar, até para a arte abstrata é uma quimera; quem sabe a loucura seja o único caminho…
Assim, o que sabemos é da ordem do visível: um homem (Willem Dafoe, soberbo) isolado na paisagem gelada do Canadá em plena e dolorosa viagem pelo interior de si mesmo, através de um país povoado por outros idiomas (na maioria das vezes, alheios ao seu entendimento, porém decodificáveis por meio do corpo, dos vícios humanos e desejos).
A Sibéria de Ferrara é um estado de espírito, o lugar para o qual migramos nos momentos de desespero e apreensão. Lá presenciamos o horror, o sexo, a gestação e a cria assombrosa de nossos delírios transcendentais.
Não há escapatória sequer nos fluxos temporais (passado, presente e futuro), pois a narrativa, aqui, está longe de distinguir um tempo do outro. Ela transcorre de forma opressoramente simultânea – tal a convivência de diferentes conjugações do tempo em uma mesma sequência ou plano.
Ferrara é um cineasta carnal, de volumes e territórios precisos, mas a cada filme parece aprofundar essa espécie de materialismo espiritual, da mesma natureza que formulava Godard em “Je Vous Salue Marie” (1985): “Queria que a alma fosse o corpo”. E neste ” Sibéria”, definitivamente, o é. Daí se origina sua intensidade metafísica.
De 22 de outubro a 4 de novembro de 2020, acontece a tradicional Mostra Internacional de Cinema em São Paulo —em 2020, em versão majoritariamente on-line e disponível para todo Brasil. Durante duas semanas, serão exibidos 198 títulos de 71 países em três plataformas (a Mostra Play, o Sesc Digital e a Spcine Play) e em dois cinemas ao ar livre: o Belas Artes Drive-In e o CineSesc Drive-in. O valor para cada sessão na plataforma será de R$ 6 e a maior parte das produções, porém, tem um limite de público de até 2.000 espectadores. Depois que essa quantidade de ingressos é vendida, o filme não fica mais disponível.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)