entrevista por Marcos Barcelos
Cerca de 10 anos depois da maior greve operária da história brasileira, no ABC Paulista, o Brasil começava a respirar os ares da democracia. E no ABC da Greve foi onde surgiu uma das bandas que transcreve melhor esse estilo de luta do trabalhador brasileiro em suas letras: Ação Direta, capitaneada pelo vocalista Paulo Gepeto acompanhado de ST Dennis (guitarra), Marcão (bateria) e Galo (baixo e vocal).
O Ação Direta está há 32 anos na estrada relembrando-nos o que é o verdadeiro rock questionador. A banda faz perguntas que vão desde o “Quantos Mais Morrerão?”, da demo “Temos Que Agir” de 1988, até “Viver é Regredir?” do seu álbum mais recente, “Na Cruz da Exclusão” (nono na discografia da banda), gravado junto à Xaninho Records em 2019 em parceria com a Monstro Discos. Em 2019, ainda participaram da coletânea fanzine alemã “Fuck Bolsonaro – Punk contra o Fascismo”, com duas músicas.
Mesmo que as letras um dia tenham sido panfletárias e atualmente sejam mais reflexivas, uma coisa nisso tudo é certa: o espírito do Ação Direta é bastante provocativo e sempre fomenta a crítica social e também o desejo de uma sociedade mais progressista. Nesta entrevista, Gepeto conta um pouco da relação do Ação Direta com o ABC Paulista, o amadurecimento da banda e o atual momento político e do rock brasileiro.
Boa parte de sua juventude foi em São Bernardo do Campo, onde você teve contato com acontecimentos nada pacíficos, afinal era época de Ditadura Militar. Foi nesse período que você teve seu primeiro “encontro” também com o Movimento Punk, correto? Como foi que começou isso?
Em 1979, o meu pai se mudou com a família da Zona Leste de São Paulo a São Bernardo do Campo para trabalhar numa fábrica. Lá, quando eu estudava na quinta série do Colégio Santa Olímpia, conheci o Mauricio “Panda”. A gente estava começando a curtir rock e ele passou a ter contato com o movimento punk através do irmão mais velho dele. Ali no Bairro Assunção a cena era efervescente e os Punk Anjos mandavam na cidade. Ele conseguiu alguns LPs da época como “O Começo do Fim do Mundo” (1983), “Grito Suburbano” (1982), o Lixomania (“Violência & Sobrevivência”, 1982), “Sub” (1983), Hino Mortal, Ulster (as duas bandas presentes em compilações em K7 como “Decaptados” e “Contra Tudo que é Comercial e Nada de Novo nos Oferece”, ambas de 1982), Passeatas (presente no álbum “O Começo do Fim do Mundo”), Libertação Radical (dissidência do grupo Passeatas), Necromancia, Cova, entre outros. Eu era novo, moleque e já via aquela movimentação, aquele visual agressivo, rebites, slogans, enfim. Tudo aquilo era muito chocante, impactante e desafiador para a época. Estávamos saindo de uma ditadura militar, havia ainda muita repressão, um clima tenso e aqueles sons, gritados num português raivoso, isso tudo me impactou muito. Ali começava minha história!
Em uma de suas entrevistas, você cita os conflitos entre gangues de SP e do ABC Paulista. Como eram esses conflitos?
Cara, o mundo não era tão globalizado, então você cruzar uma fronteira de um bairro a outro, ou de uma cidade a outra já eram grandes aventuras. As gangues dominavam o ABC e a capital paulista. Era coisa de filme “Warriors” (1979) mesmo! Algumas eram bem violentas e as brigas eram frequentes. Isso prejudicou e muito os espaços para shows e bares da época e também impediu que muitos festivais e parcerias acontecessem. Não podíamos nos arriscar a frequentar esses locais em SP sob o risco de encontrarmos alguma gangue e sermos massacrados pelo simples fato de morarmos aqui na região. Era muito complicado e a gente não era de nenhuma gangue, apenas uns moleques querendo se conectar. Foi uma época louca, tudo era novo!
Li uma vez você dizer sobre as dificuldades da banda no início da trajetória artística de vocês, o que demonstra o quanto é difícil a vida artística em nosso país, ainda mais no underground. Com o que vocês conciliavam o trabalho na banda? São Bernardo é conhecida como a cidade do móvel e dos automóveis, os membros da banda chegaram a atuar em um desses ramos?
As dificuldades sempre nos acompanharam! Não sabíamos tocar, não tínhamos instrumentos, nem local de ensaio, enfim. No início a gente dividiu um equipamento com uma banda de metal chamada Hammerhead e começamos os ensaios na casa do Luís, que era o guitarrista deles. Ali começamos nossa trajetória como banda. Paralelamente tínhamos nossos trabalhos. Sim, trabalhei muitos anos em fábricas, metalúrgicas e os outros membros tiveram passagens por fábricas também. Vivenciamos de perto todo o surgimento do movimento sindical, as greves e toda aquela atmosfera.
Qual é o seu atual trabalho em SP? Tem atuado home office?
Já há três anos trabalho em São Paulo como motorista. Faço entregas e coletas para uma empresa do ramo gráfico para qual trabalho. Não pude parar nessa pandemia. Tenho trabalhado direto e como visito varias empresas, tem o lance da segurança, máscara, álcool gel, temperatura, enfim, é o que da para fazer, né (risos). Fora isso tenho ficado bastante em casa.
Além de ter trabalhado em fábricas e metalúrgicas, você acompanhou o crescimento do movimento sindical. Como você enxerga o movimento sindical daquela época quando você começou a tocar em relação ao atual cenário do sindicalismo?
Cara, é difícil falar sobre isso, pois não sou um especialista na área. Aquela época foi marcada pelo surgimento do lance todo, aquela afronta, aquela reação da classe oprimida, numa época de ditadura, de repressão. Aquilo tudo foi muito forte, impactante, voz ao povo, ao trabalhador, saca? Era a época das montadoras, das usinagens, a economia estava forte por conta dessa industrialização efervescente. Hoje não temos mais esse cenário. As empresas quebraram, os direitos estão indo por terra e o mundo mudou completamente. Estamos na era da tecnologia, das fake news, da distorção da realidade. É preciso analisar essa nova era e tentar entender o papel do sindicato atualmente, as ações, as lutas, os objetivos, direcionamentos, etc.
Vocês chegaram a ser convidados para tocar em eventos dessas empresas ou mesmo sindicais? Tem alguma história curiosa de algum show assim?
Tocamos na época em muitos shows do Partido dos Trabalhadores (PT) aqui na região. Eu também estive por dois anos junto ao departamento de cultura da cidade onde participei como representante do rock e abrimos várias frentes. Participei da construção de um plano de cultura elaborado pelo governo junto a sociedade civil (classe artística) aqui da região. Infelizmente não passou na câmara o projeto.
O Ação Direta surgiu em um contexto musical bastante enérgico e, como você bem reforça, aos poucos foi moldando seu estilo, deixando também de lado o viés mais “panfletário” das letras, como você costuma citar. Me conta como foi essa fase de “experimento” até vocês encontrarem um ponto ideal. Se você pudesse citar alguns episódios fundamentais para essa transformação, quais seriam esses momentos?
No início a gente era novo, 16 para 17 anos, achávamos que aquelas frases chavão de rimas de protesto iriam mudar o mundo. Sempre fomos pessoas antenadas e interessadas em informações, conhecimento e pesquisas, não só de tópicos da vida como de sons dentro do underground. Foi isso que nos trouxe, junto com a estrada a experiência e a evolução foi natural. Acho que a partir do nosso terceiro álbum, “Entre a Benção e o Caos” (1997), que a gente começou a explorar mais temáticas sobre o ser humano, existencialismo e reflexões, e isso só tomou força nos trabalhos seguintes. Os álbuns anteriores marcaram por serem mais diretos e panfletários. Musicalmente sempre fomos abertos a experimentações na medida em que fomos ganhando experiência com os instrumentos! Desde o início a gente sempre misturou punk com hardcore e metal. Surgimos meio metal punk, crossover.
Vocês estão há mais de 30 anos na estrada e isso não é para qualquer um, parabéns. Você de alguma forma imaginava que teria que escrever músicas de protesto contra uma extrema-direita que se tornou liderança em nosso país? Como é esse sentimento?
Estamos há 32 anos na estrada e eu completei nesse último mês de maio 50 anos de idade. Nunca na minha vida imaginei que as coisas pudessem regredir e piorar tanto como aconteceu aqui. Estamos vivendo um momento crítico e cruel da história. A ignorância, a canalhice e a imbecilidade de grande parte do povo brasileiro é de se espantar e se revoltar. É um sentimento estranho de tristeza e indignação e muita lamentação também.
Onde foi que erramos como sociedade, na sua opinião?
Vivemos um momento muito complicado e sombrio. Estamos diante de uma pandemia gravíssima e de um desgoverno vergonhoso. Polarizados, cheios de ódio, de divisões e contaminados pela indiferença e pelo sadismo! Sendo guiados por um governo fascista e psicopata, cercado de falsos religiosos e militares canalhas. Somos um país colonial, o nosso primeiro mundo é para poucos! O restante do povo mantido na ignorância, na alienação, no controle. Somos uma nação miscigenada, esse é o nosso povo e essa é a nossa história, mas ela não é respeitada, aceita, nem valorizada. Fomos saqueados, violentados, assassinados, desrespeitados durante toda a existência. Mas somos um país novo, temos pouco mais de 500 anos.
Com relação ao cenário da “música pesada”, você acha que as bandas têm se posicionado bem ou mal quanto ao momento político brasileiro?
O cenário da música pesada também esta dividido, polarizado. Tem reaças, fascistas, machistas, homofóbicos e babacas aos montes. Os isentões também se mostram em grande número! Decepciono-me direto com várias pessoas e atitudes, mas seguimos nossa vida.
Voltando ao Ação Direta, quando começou a parceria com a Xaninho Records? Está satisfeito com o trabalho?
O Ícaro (Lima) merece um prêmio (risos). O cara é um dos poucos que entendem o Ação Direta e como trabalhar a banda! Nossa entrada oficial na Xaninho foi recente, em 2019, e teremos grandes novidades para todo o decorrer. Eles estão responsáveis pela agenda de shows da banda. O trabalho está só começando! Estamos felizes e motivados com as parcerias novas da Xaninho Records e Monstro Discos!
Por fim, quais são os projetos que vocês têm para o futuro? Teve alguma ideia que o Coronavírus adiou?
Lançamos o álbum novo, “Na Cruz da Exclusão”, no final de 2019 e começamos os trabalhos de divulgação, mas de repente tudo paralisou. Nosso retorno a Europa para uma tour agora em Julho caiu por terra. Estávamos confirmados no Obscene Extreme e em outros shows bem legais. Vamos retomar tudo de onde paramos e espero que seja breve e em segurança. No momento o grande objetivo é nos mantermos bem, seguros e com saúde!
– Marcos Barcelos é jornalista capixaba. Siga no Twitter (@barcelosmarcos) e Instagram (@marcos.barcelos.10)