por Marcelo Costa
Uma superpotência como os Estados Unidos tem um amplo domínio mundial em questões politicas, econômicas, militares e culturais (entre tantas), o que necessariamente não se traduz em qualidade. Veja, por exemplo, o cinema estadunidense, uma máquina de fazer produções milionárias e dólares em língua inglesa que, raramente, produz a grande película mundial do ano, ainda que os votantes (nacionalistas e pouco interessados em nada que não seja falado em inglês) “não enxerguem” isso – e só isso explica a derrota de “Roma”, de Alfonso Cuarón, em 2019.
Esse preâmbulo é necessário porque, novamente, o filme do ano não saiu dos Estados Unidos, mas desta vez da Coréia do Sul: “Parasita”, de Bong Joon-ho, conquistou a Palma de Ouro em Cannes em maio de 2019 (de maneira unânime, feito que não acontecia desde a vitória de “Azul é a Cor Mais Quente”, em 2013) e, de lá pra cá, vem sendo um objeto de boca a boca que já ultrapassou a marca de 100 milhões de dólares de bilheteria mundial (e só estreia no Reino Unido em fevereiro de 2020!), e pinta não só como favorito disparado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar como também deve figurar na lista de Melhor Filme, almejando o feito raro de levar a maior premiação da noite em Los Angeles.
E é, sim, para sonhar alto. “Parasita” não é só um dos melhores filmes do ano, mas também um dos melhores filmes dos anos 10 – calma lá, apressadinho, não encerre a lista da década sem ver essa obra prima cômica, social e dramática, um thriller de suspense deliciosamente pop sobre as rachaduras causadas pelo capitalismo na sociedade – não só coreana, mas mundial, já que a trama poderia se passar em qualquer cantinho do planeta, de um bairro classe alta em uma grande cidade da Coréia do Sul tanto quanto em Miami ou no Jardins, em São Paulo.
A trama é simples e sensacional: uma família sul-coreana (pai, mãe, filho e filha) vive na área mais baixa e pobre de uma grande cidade, uma localização pensada pela produção para se destacar em um dos momentos de maiores clímax do filme e deixar bastante claro a distância entre pobres e ricos nessa piramide social desigual. Eles estão sem dinheiro para pagar a internet, e com isso sem Whatsapp, o que os isola ainda mais do mundo e da oportunidade de conseguir um bico, mas nada como um wi-fi emprestado para conectá-los com o mundo, garantir um trabalho e permitir uma pequena renda para sobreviver por mais um dia. Tudo muda quando um amigo do filho o indica para lecionar inglês para a filha de uma família rica, os Park.
Morando na parte alta e mais nobre da cidade em uma bela casa (com uma grande janela com vista para um bonito jardim) projetada por um famoso arquiteto (inventado – a mansão foi desenhada para atender aos anseios da produção), os Park (mãe, pai, filho e filha) são a epitome clássica do que se imagina e espera de uma família burguesa (seja na Coreia do Sul, no Brasil ou nos EUA): pessoas totalmente desconectadas do mundo real, vivendo em um redoma invisível bancada pelo dinheiro que os protege tanto quanto os afasta (enquanto, no âmago, se excitam com o que consideram mundano relacionado a classe inferior – drogas, sexo depravado, entre outras coisas).
A entrada do filho da família pobre no cotidiano da família rica lecionando inglês para a jovem burguesa é a primeira rachadura na redoma, algo que se ampliará quando ele indicar uma conhecida (na verdade sua irmã) para dar aula de artes para o filho mais novo da família rica, e se estenderá quando pai e mãe ocuparem os cargos de motorista e governanta da casa, em pequenos golpes que deixam claro a inocência dos Park. Porém, uma grande surpresa mudará totalmente o rumo destas duas famílias vivendo sobre o mesmo (belo) teto.
Essa deliciosa fábula crítica que em clima relembra a tensão de “O Invasor” (2002) exibindo as rachaduras causadas pelo capitalismo pode ir muito além de, por exemplo, “Cidade de Deus” (2002), a obra prima impecável de Fernando Meirelles e Kátia Lund, que foi indicada a quatro categorias no Oscar (melhor diretor, roteiro adaptado, edição e fotografia), mas chegou esvaziado na premiação, pois não conseguiu uma nomeação no ano em que foi lançado, já que não tinha entrado em circuito internacional, sendo lançado na Europa e Estados Unidos apenas em janeiro de 2003 – ou seja, concorrendo em 2004, dois anos após ser lançado, e já apagado no mercado.
“Parasita” chega com força total no Oscar 2020, e ainda que não seja absolutamente perfeito quanto o concorrente brasileiro de 2004 – o miolo do filme, quando a família pobre exterioriza seus sentimentos na sala da família rica, entrega exageradamente para o espectador algo que ele deveria pensar sozinho, e o final, confuso e piegas, são pontos menores da obra, que no entanto não tiram o brilho do todo –, tem a força do público, que vem descobrindo o filme semana a semana, uma sensação que deve se ampliar quando os indicados forem anunciados, e chegar em ponto de ebulição na semana da premiação.
O filme de Bong Joon-ho (que equilibra no currículo o irregular e bonito “Okja”, de 2017, o ótimo “Mother – A Busca Pela Verdade”, de 2009, e o indie “Cão que Ladra Não Morde”, de 2000, entre outros) ainda tem a seu favor um cuidado técnico exemplar (essa sequencia é de tirar o folego – e se for comparada com essa do milionário e fraco “Bohemian Rhapsody”, exemplifica o quanto o dinheiro pode pesar tentando transformar mero pastiche em algo, ahñ, artístico), muito bom humor e atuações convincentes (Song Kang-ho, o pai pobre, também pode ser visto no filme indicado para representar a Coréia em 2017, “O Motorista de Taxi”).
Novamente num ano em que a Netflix desponta como produtora do principal filme estadunidense da temporada (e de mais uns três ou quatro grandes filmes, incluso ai o documentário brasileiro “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa), “Parasita” vem chegando de mansinho e pode (e deve) surpreender. O que será altamente merecido, pois estamos diante de uma daquelas obras que devem ser vistas, revistas, indicadas para os amigos, discutidas na mesa de bar e ainda jogadas no grupo da família no Zap Zap para causar ainda mais tensões de classe. 2020 já começou e, desde já, “Parasita” é o grande filme da temporada.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Para mim o grande filme de 2019 (e de 2018) é “Em Trânsito”. Poderoso e essencial.