Texto por Renan Guerra
O cinema de gênero no Brasil parece, enfim, estar construindo novos rumos e firmando-se de forma sólida, algo que foi interrompido com o fim da Embrafilme, durante o governo Collor, no início dos anos 90. Nos últimos anos, vimos filmes como “As Boas Maneiras” (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2018), “O Segredo de Davi (Diego Freitas, 2018)”, “O Animal Cordial” (Gabriela Amaral Almeida, 2018) e “Mal Nosso” (Samuel Galli, 2019) chegarem aos cinemas levando diferentes possibilidades de terror. Nesse mês de outubro, os cinemas brasileiros recebem três novos lançamentos: “O Clube dos Canibais”, que estreou no dia 3; “Morto Não Fala” (Dennison Ramalho, 2019) e “A Noite Amarela” (Ramon Porto Mota, 2019), que chegam às telas no dia 10.
Curiosamente, há uma dificuldade ampla do cinema brasileiro em lidar com os filmes de gênero, especialmente por pretensas intenções artísticas, que consideram o cinema de gênero sempre menor, visto que não caberiam neste cinema as teses e complexidades de um cinema de autor. É isso que esses novos filmes de terror tem colocado por terra: o cinema de gênero é um interessantíssimo espaço de pesquisa e produção para grandes autores. Nesse balaio, um dos grandes sucessos do cinema nacional em 2019, o longa “Bacurau”, é um exemplar que flerta diretamente com os gêneros de suspense e terror, falando de forma alegórica e violenta sobre um Brasil bastante real. É nesse mesmo universo alegórico que o cearense “O Clube dos Canibais”, de Guto Parente, existe, porém de forma bem mais cínica e gore que seu parente pernambucano.
Parente vem de um processo de criação bastante experimental e independente, junto de seus pares do coletivo cearense Alumbramento. Foi a partir desse grupo que o diretor lançou títulos como “Doce Amianto” (dirigido com Uirá dos Reis, 2013) e “Estrada para Ythaca” (dirigido com Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2011). Apesar do histórico de filmes experimentais, o grande acerto de Parente em “O Clube dos Canibais” é saber jogar com os parâmetros do cinema de gênero e não deixar, em momento algum, que a tese de seu filme seja maior do que a catártica experiência de um filme de terror.
“O Clube dos Canibais” se passa em uma praia do Ceará, onde vemos o casal Gilda (Ana Luiza Rios) e Otávio (Tavinho Reis) em sua suntuosa mansão, entre piscina, drinks e churrasco. Assim nos são apresentados os jogos do casal, que incluem a sedução, por parte de Gilda, dos caseiros da casa e a subsequente execução deles, por Otávio. Com isso, os funcionários se tornam cortes de carne a serem saboreados em pratos requintados, tanto por Gilda e Otávio, quanto por um seleto grupo que forma o tal clube do título. Esse grupo inclui apenas homens brancos de meia idade, todos – teoricamente – de bem, de família, a respeitarem suntuosos valores cristãos. Um personagem que conhecemos bem.
Com trilha original de Fernando Catatau, “O Clube dos Canibais” encontra sua maior sustentação na atuação de Tavinho Teixeira, que constrói de forma crível as nuances de uma elite que acha que pode tudo. Há no filme de Parente alguns problemas técnicos, já que o som parece ter variações estranhas de volume em determinadas passagens, bem como há cortes que soam abruptos em outras cenas, mesmo assim, é de se celebrar o que ele consegue construir de forma independente, com efeitos especiais muito bem feitos e com litros de sangue bem utilizados, em uma história que nos prende na poltrona.
As tensões de classe permeiam “O Clube dos Canibais” e são tratadas com um escárnio de quem entende bem a complicada construção social do Brasil. É esse olhar sobre o poder que gera os momentos mais engraçados do filme, de um humor irônico e debochado. De todo modo, se há essa tese social que perpassa o filme, há também um intricado jogo de poder e de tensão que se estabelece de forma crescente e que independe dessa leitura alegórica, tanto que o filme pode funcionar perfeitamente bem para qualquer pessoa que cegue seus olhos perante as questões políticas. Nesse sentido, “O Clube dos Canibais” é essencialmente um filme de terror, que mescla tensão e imagens gore para que o público fique a espreita na poltrona, esperando o próximo movimento.
Ao subir dos créditos é que você consegue enxergar a complexa linha que o roteiro constrói: um filme aparentemente simples, que delimita-se em uma história bizarra, uma espécie de fait divers litorâneo, mas que se dissecado, representa as rachaduras de um Brasil dominado de forma hegemônica por eternos coronéis. No final das contas, “O Clube dos Canibais” é cínico, é debochado e é aterrorizante, pois é uma alegoria sobre um país que caminha para o precipício, em que, aparentemente, só o que nos falta são os ricos, literalmente, comendo os pobres.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
Me lembrei do filme do Pasolini Salò