Texto por Guilherme Espir
A carreira do Shabaka Hutchings pode ser dividida em três momentos no atual contexto histórico do jazz. Existe o Spiritual Jazz que é tocado ao lado do Shabaka and the Ancestors, o groove caribenho do Sons Of Kemet e a psicodelia cósmica do The Comet Is Coming. Desde 2016 que o músico natural de Barbados – mas radicado na Inglaterra – está debulhando o circuito de UK, rodando o globo com três dos shows mais disputados da cena.
Imerso numa grande diversidade de dinâmicas e abordagens, o multi instrumentista segue criando conceitos criativos que desafiam os ouvintes. Com uma produção de fato avassaladora, a nova empreitada do músico é o segundo disco de estúdio do que talvez seja o seu projeto mais interessante.
Imagine a textura do rock industrial alemão, a abordagem sideral do rock psicodélico, o groove do funk e a linguagem do jazz com pitadas de sinth que parecem narrar a queda de um Império. Conseguiu montar esse Megazord? Quando todos esses elementos se misturam, o resultado final é a cozinha do The Comet Is Coming, que traz Shabaka Hutchings (saxofone) acompanhado de Maxwell Hallett (bateria) e Dan Leavers (sintetizadores).
E “Trust The Lifeforce of the Deep Mystery” é resultado do novo experimento do power trio londrino. Lançado pelo selo Impulse! no dia 15 de março de 2019, o segundo trabalho da banda não só cumpre a difícil tarefa de suceder o debutante “Channel the Spirits” (2016), como, pra variar, aponta novos rumos para um projeto que é pura oxigenação sonora.
Esse disco mostra a grande capacidade que King Shabaka – alcunha do saxofonista para esse projeto – possui para criar climas. Repare que todos os seus grupos possuem uma aura muito própria e isso é justamente em função da grande facilidade com a qual seu saxofone cunha novas realidades paralelas.
Apesar da aparente maluquice retratada acima, essa fusão de psicodelia com jazz e elementos de música eletrônica, consegue estabelecer uma grande conexão com o ouvinte. Esse elo do spiritual jazz é um elemento que sempre acaba aparecendo em suas bandas, mas o interessante, no entanto, é como isso é feito, principalmente nesse contexto.
Fundada a partir do grupo Soccer96 – duo composto pela sessão rítmica do The Comet Is Coming –, o projeto começou a tomar forma em 2013 quando Shabaka conheceu Danalogue The Conqueror e Betamax the Killer, pseudônimos para identificar o baterista Maxwell Hallet e o tecladista Dan Leavers, o duo é a espinha dorsal do som.
Com uma fusão muito interessante de drum & bass, música eletrônica e rock psicodélico, a dinâmica sonora do grupo aposta na alquimia dos planos de fundo criados pela dupla para que o saxofonista exploda toda e qualquer convenção sonora.
Sobre a formação da banda, segundo relatos de Dan e Maxwell, Shabaka começou a ser visto perambulando nos shows do Soccer96. Depois de experienciar alguns espetáculos, o negrão levou seu saxofone para a próxima gig e o resultado foi tão orgânico e genuíno que poucas semanas depois eles já eram uma banda e contavam com horas de gravações.
Não teve enrolação, o Shabaka passou a mão no telefone e ligou para o Betamax: vamos gravar um disco? Todos concordaram e o trio agendou três dias no Total Refreshment Centre Studios (Londres) e foi dessa sessão que saíram os EP’s “Prophecy” (2015), e “Death To The Planet” (2017), além do debutante “Channel The Spirits” (2016) – que foi um dos discos premiados do Mercury Prize daquele ano – todos via Leaf Label.
Trata-se de uma experiência sonora desde o nome. A ideia por trás do conceito do cometa é justamente destruir ideias que não flutuem na mesma órbita criativa do trio. Dessa forma, King Shabaka & Cia promovem uma imersão sonora inspirada na temática Sci-Fi e o cosmos do universo, extrapolando uma veia jazzística que entrega peso, vibração e paixão sob uma ótica catastrófica, transformando o caos em conceito criativo.
Porém, com o segundo registro, o som dos caras atingiu outro patamar. Não é só pelo fato de ter saído por uma das mecas do jazz (a Impulse!), mas sim pelo fato de que “Trust The Lifeforce of the Deep Mystery” mostra uma sonoridade muito maior do que a música que eles criam desde 2013. É um som contínuo que envolve o ouvinte na narrativa do disco com uma abordagem que até o momento representa o auge criativo desse projeto.
Começando pelo chá de trombetas afro-futurista em “Because The End Is Really The Beginning”, o disco já abre com um tema responsável por ambientar o ouvinte. Uma imersão na realidade multicolorida e eletrônica do trio, “Birth Of Creation” é uma extensão dessa filosofia sinestésica.
Com uma clara união entre o repertório clássico – plano de fundo na formação de Shabaka – o música ainda é capaz de fazer essas referências dialogarem com o presente, trazendo uma linha que explora os climas densos da sessão rítmica ao mesmo tempo em que os harmoniza como se estivesse tocando por cima dos beats do J Dilla.
Mostrando feeling radiofônico com “Summon The Fire”, o grupo justifica sua presença nos maiores festivais do mundo, como o Glastonburry, por exemplo. Com uma faixa que mostra toda a urgência desse conceito criativo, take após take, o trio projeta sua experimentação melódica. Com um feeling estupendo, a banda explora muito bem a dualidade dos climas mais pesados, alternando luz e sombras com temas como “Blood Of The Past” e suas chapantes texturas de sinth e parede de metais.
O peso do sax nessa música – que é a maior faixa do disco – superando os oito minutos de groove, também evidencia a capacidade do trio na hora de contar histórias. A dinâmica mostra muito das influências da música de Barbados (terra natal do saxofonista), e quando a poeta Kate Tempest joga seus versos como num déjà-vu capaz de contestar nossa posição nesse mundo cada vez mais destrutivo, o som parece ter sido virado do avesso.
Esse conceito de ruptura é uma das essências desse projeto. A ideia do cometa é que ele destrói tudo por onde passa. Temas como a ode sinfônica de “Super Zodiac” ou o insular spiritual jazz de “Astral Fyling” mostram como a dinâmica do som facilita a criação dessa visões um tanto quanto desafiadoras. O sintetizador faz tanto a percussão quanto a base dos temas. A bateria fica mais estática, mas a variação de timbres mais pesados – como os escombros de um prédio em chamas – também fazem com que o Shabaka tenha que trazer algo diferente no sax, alternando, texturas, solos e riffs com grande sutileza.
A tarefa dos três é nos fazer acordar de um coma. Seja com ritmos mais matemáticos como em “Timewave Zero” ou com a beleza lírica de “Unity”, o que fica mesmo é – além de um disco primoroso – como a banda se desafia o tempo todo. O saxofone dessa faixa é diferente de tudo que acontece no disco todo. Parece ter sido jogado ao fundo, como a música tema de uma sonda que orbita algum planeta do sistema solar, enquanto a bateria em primeiro fundo parece contar quanto tempo nós temos antes do próximo meteoro chegar e nos exilar em areia cósmica.
A utopia se encerra com “The Universe Wakes Up” e o fim do som parece emular o fim do ressoar de um meteoro explodindo psicodelia na atmosfera.
O Wynton Marsalis precisava escutar isso.
Excelente e tão maluco quanto parece.
– Guilherme Espir já escreveu pra Vice, pra Noize e fritava neurônios no Macrocefalia Musical