por Leandro Melito
A banda franco-inglesa Stereolab encerrou o mês de julho com uma performance hipnotizante em Manchester. A apresentação estava prevista para junho, mas foi remarcada por motivos de saúde e o grupo chegou à cidade dez dias após tocar no Pitchfork Festival, em Chicago.
A volta do Stereolab aos palcos na turnê que começou pela Europa e vai percorrer os Estados Unidos a partir de setembro está atrelada ao relançamento de sete discos (acrescidos de faixas bônus) de sua discografia anunciados para este ano. “Doots and Loops” (1997) e “Cobra and Phases Group Play Voltage in the Milky Night” (1999) tem relançamento remasterizado em vinil e CD anunciados para o dia 13 de setembro, junto com “Emperor Tomato Ketchup” (1996) Em maio foram relançados “Transient Random-Noise Bursts With Announcements” (1993) e “Mars Audiac Quintet” (1994) e para novembro estão previstos “Sound Dust” (2001) e “Margerine Eclipse” (2004). O último álbum de estúdio da banda foi “Not Music” (2010).
Em Manchester, o Stereolab apresentou uma generosa seleção de sua discografia no Albert Hall, antigo salão central metodista construído em 1908 com capacidade para 2290 pessoas. “Um lugar ridiculamente especial para estar”, brincou Laetita Sadier.
Além da dupla fundadora Laetitia Sadier (vocal, guitarra e teclados) e Tim Gane (guitarras), tocaram no Albert Hall o baterista Andy Ramsay, o tecladista Joe Watson e o baixista Xavier Munõz Guimera que acompanhou Sadier nos vocais em algumas músicas, fazendo as vezes de Mary Hansen, que faleceu em 2002 num acidente de trânsito.
O Stereolab se apresentou com casa cheia depois de um dia chuvoso em Manchester e abriu a noite com “Come Andy, Play in the Milky Night” (1999) seguida de “Brakhage”, músicas da fase em que a banda consolidou sua mistura musical do experimentalismo eletrônico – com forte influência do krautrock – e música pop nos discos “Cobra And Phases Group Play Voltage in the Milky Night” (1999) e “Doots and Loops” (1997), respectivamente.
Na apresentação ao vivo, as músicas ganham potência e mostram porque o Stereolab continua relevante em 2019 e sua música aponta caminhos para o futuro. Mesmo aquelas com roupagem mais pop contém um grau de experimentalismo que permite a banda tomar caminhos inusitados durante a sua execução ao vivo e mantém o expectador em estado de atenção.
O Stereolab é uma banda que as pessoas presentes no show participam de uma experiência sonora e geralmente não estão ali para cantarem juntas o refrão de uma música. Mas cantam também, como no chamado: “La resistance!”. Em “French Disko”, do álbum “Transient Random-Noise Bursts With Announcements” (1993), o apelo dançante é colocado a favor de uma letra forte que continua a fazer bastante sentido para o momento atual.
“Though this world’s essentially an absurd place to be living in/ It doesn’t call for total withdrawal/I’ve been told it’s a fact of life/Men have to kill one another/ Well I say there are still things worth fighting for.”
Apesar de romperem com o formato canção (versos, refrão, versos) na maior parte de suas músicas, as letras do Stereolab tem força em sua mensagem política, mas também ganham em significado poético na intensidade da repetição, uma característica do grupo que ganha relevo na execução ao vivo e envolve o público na performance. A mesma frase repetida em loop diversas vezes ganha um significado sonoro e cria uma certa tensão de expectativa, que pode levar a momentos de catarse como na execução de “Metronomic Underground” (“Emperor Tomato Ketchup”, 1996).
A repetição do verso “crazy, sturdy, a torpedo” como um mantra, somada à marcação da bateria numa batida ritmada quase eletrônica e os timbres espaciais do teclado formam um túnel musical que envolve o público e dá espaço para a improvisação que cresce e explode ao final da música. A guitarra de Gane ganha peso e distorção, rasga acordes ásperos num ritmo também quebrado e é amaciada pelos timbres do teclado.
Em “Infinite Girl” novamente a repetição dos versos “Scatter/ Scatter brained by / The sins” e “A Knife/ To cut the root/ The root/ Of ignorance” com uma forma particular de acentuar as sílabas utilizada por Sadier. Há então uma nova pausa, mas essa não faz parte da performance: são para ajustes na amplificação e na guitarra de Gane. O show retoma com “Anamorphose” e agora as repetições são em francês “De plus vrai que/ De plus vrai que le/ Plus vrai que le soufle”.
Mas a explosão vem na música seguinte. “Vamos falar um pouco mais de capitalismo?”, provoca Sadier antes de tocar os acordes do hit “Ping Pong” (de “Mars Audiac Quintet”, de 1994), que coloca o público em êxtase com um dos refrões anticapitalistas mais bem ajambrados da música pop. “Bigger slump and bigger wars and a smaller recovery / Huger slump and greater wars and a shallower recovery”.
A energia continua alta na execução de “Percolator” e atinge um novo ápice ao final de “Lo Boob Oscillator”, da segunda coletânea de singles e raridades do grupo, “Refried Ectoplasm” (1995), anunciada como última da noite. A banda estende a música por cerca de 10 minutos numa experimentação que remonta às influências do NEU! com a batida repetitiva quase mecânica da bateria abrindo caminho para as texturas do teclado e as distorções da guitarra que criam ambientes mais densos, um experimentalismo noise que deixa a plateia suspensa. O grupo sai ovacionado do palco.
Na volta engatilham sequência arrematadora, emendando uma música na outra num fôlego de 20 minutos: “Rainbo Conversation” (“Doots and Loops”), “Milk Blue” (“Cobra and Phases”) e “John Cage Bubblegum” (2007), que de fato encerra o show. As luzes acendem, a banda se despede. Sadier fita a plateia durante um tempo, emocionada, depois que o restante da banda já deixou o palco. A turnê segue Europa afora depois estica para EUA, Canadá e, em outubro, México. Para o Brasil, que só viu o Stereolab ao vivo em 2000, seria especial rever a banda quase 20 anos depois. Será que alguém produtor se anima?
Ouça um podcast com algumas músicas gravadas ao vivo neste show
– Leandro Melito é jornalista e colaborador com textos publicados na EBC, Valor, UOL e Vice, entre outros . A foto que abre o texto é uma reprodução do Facebook de Julian Markham. As fotos coloridas são de Jack Kirwin – JK Photography / Divulgação