Texto por Renan Guerra
Teatro do Sesc 24 de Maio, centro de São Paulo. Quase nove da noite de sexta-feira, num daqueles dias que a chuva bagunçou a cidade. Alguém pergunta: “O nome do grupo é Rumo mesmo?”. Diante da assertiva, uma nova questão: “Eles são aqui de São Paulo?”. A conversa morre logo depois do segundo sinal positivo, porém o jornalista continua refletindo: em meu imagético de São Paulo, o Grupo Rumo é uma das coisas mais fortes, ao lado de Itamar Assumpção, de um olhar singular sobre a cidade. Há uma construção de beleza em meio ao caos, uma sonoridade própria, um ritmo que casa com a cidade e são todos esses meandros que me levaram ao Sesc nessa noite de chuva para ver o reencontro do grupo, depois de 8 anos da última turnê e de 27 anos do último disco de inéditas.
Essa reflexão me fez pensar no pré-show: cada vez que eu mencionava a alguém “hoje irei ao show do Rumo”, muitas pessoas me faziam uma cara confusa, do tipo “o que é isso?” – e falo aqui de pessoas que gostam de música e que buscam música de diferentes formas. Entrando no Spotify da banda, esse desconhecimento fica mais claro, pois lemos o desolador número de apenas 3.237 ouvintes mensais, dado que se reforça quando vemos que muitas das faixas do novo disco ainda não têm nem mil reproduções. O Grupo Rumo parece ainda um ilustre desconhecido para muitos, mas quem os conhece não passa incólume ao som que foi um dos pilares da Vanguarda Paulista. Algo entre a MPB, a palavra cantada e outras invenciones, o Rumo era o olhar no futuro com a consciência do passado e é isso que volta a ressoar em seu novo disco, “Universo”, lançado pelo Selo Sesc.
O novo disco parece apenas uma sequência natural, como se não houvesse 27 anos de espaço desde o último disco. Dos 10 integrantes originais, falta apenas Ciça Tuccori, falecida em 2003. Mesmo assim, o grupo ainda se apresenta em 10 pessoas, com a inclusão de Marcio Arantes, produtor musical que foi o incentivador desse reencontro e do disco de inéditas. No palco o grupo se divide da seguinte forma: Paulo Tatit na guitarra, baixo violão e voz; Ná Ozzetti na voz; Luiz Tatit no violão e na voz; Gal Oppido na bateria e na percussão; Pedro Mourão na percussão, violão e voz; Akira Ueno no baixo, guitarra, violão e voz; Geraldo Leite na percussão e voz; Helio Ziskind no aerophone, guitarra e voz; Zé Carlos Ribeiro no violão, voz e percussão e Marcio Arantes nos teclados, vocais, guitarra e percussão.
Contando acima, nove dos integrantes acabam cantando em algum momento do show, seja fazendo coros, seja segunda voz ou qualquer um dos joguetes que a banda faz no palco. É uma espécie de caos semi-organizado no palco, dez pessoas a tocar e trocar instrumentos, a entrar e a sair do palco, uma pequena multidão que reflete de modo micro a São Paulo que a banda tanto canta. É essa profusão um dos charmes do show do Rumo, que nessa temporada no Sesc 24 de Maio apresenta as canções de seu novo disco “Universo”, mas que também passa por faixas de discos clássicos como “Rumo aos Antigos” (1981), “Diletantismo” (1983), “Caprichoso” (1986) e até um momento do disco infantil “Quero Passear” (1988), tudo isso num show de quase duas horas.
Das antigas, vale ressaltar a beleza que é “Ladeira da Memória”; a força rock’n’roll que “Delírio, Meu!” assume ao vivo e a diversão da banda no palco cantando as galhofas de “Carnaval do Geraldo”. Das novas, o destaque vai para a interpretação delicada de Helio na faixa “Não se Esqueça”, espécie de mensagem delicada de um pai preocupado, escrita por Zécarlos Ribeiro. “Paulista”, cantada por Akira e Pedro, ganha ainda mais força acompanhada de projeções da avenida que dá nome à música. “História da História” é cantada belamente por Pedro Mourão ao lado de seu filho, André Mourão. As lindas “Toque o Tambor” e “Universo” são cantadas com quase todos os integrantes no palco e são dois dos melhores momentos do novo disco. De todo modo, o charme principal dessa nova leva de canções fica a cargo de “Dengo”, parceria de Ná e Luiz, de versos marotos, cantados de um jeito “extremamente Ná”.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Ná deixou claro, aliás, que essa nem seria uma volta definitiva do Rumo, isto é, a banda não deve sair em grande turnê, pois combinar a agenda dos 10 integrantes não é tarefa fácil e ela mesma afirma que o Rumo nunca deu dinheiro a eles. Com os ingressos já esgotados para essa temporada no Sesc, pode ser que você não consiga ver o grupo ao vivo, mas não falta Rumo para se ver e ouvir por aí: “Universo” já está disponível em todas as plataformas digitais e a banda ainda está lançando um documentário chamado “Rumo”, de Flávio Frederico e Mariana Pamplona, que busca resgatar a história e o impacto da banda. Então, ouça o Rumo, compartilhe com seus amigos, busque a história da banda e de cada integrante e descubra esse universo, pois sempre há tempo! Bruno Capelas, que assina o texto seguinte, preparou uma playlist com 15 faixas no Spotify para você mergulhar na história do Grupo Rumo. Não perca a chance.
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Texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas
“É novo, é singular”, é uma banda que se desfez há 27 anos tocando junta novamente – e é natural que nem tudo esteja no mesmo lugar (cabelos mais brancos, poses mais contidas) em meio à emoção. Ainda assim, o coração bateu mais rápido de novo na noite da última quinta-feira, 25, quando a dezena de músicos que compõem o grupo Rumo subiu ao palco do teatro do Sesc 24 de Maio para lançar seu mais recente disco, “Universo”, gravado pelo Selo Sesc.
Nome forte da música independente paulistana dos anos 1980, o Rumo nunca foi exatamente uma banda de “tino comercial”. Também, pudera: a quantidade de integrantes e a preferência por um senso estético que mesclava idiossincrasias de São Paulo e da conscienciazinha humana (aquele lado do nosso cérebro que faz piada com a gente mesmo) a um lado mais ou menos torto da canção brasileira sempre os fez uma banda um pouco difícil de digerir. Quem se topava a encarar a aventura, porém, encontrava letras e melodias espertas, especialmente quando vinham da lavra de Luiz Tatit ou Zécarlos Ribeiro, os dois principais cérebros do Rumo. Era uma banda “à frente de seu tempo” – e qual não foi a surpresa perceber que, hoje, o futuro chegou.
Para quem esteve presente no Sesc 24 de Maio, foi fácil perceber isso: as novas canções do grupo soam tão contemporâneas quanto possível. Ótimo exemplo é a canção que abriu a noite, “Toque o Tambor”. Em uma melodia que soa tanto como o velho Rumo quanto como os novaiorquinos do Dirty Projectors, a música que fala sobre um mundo em que a “natureza está cinza/ e a cultura está ranzinza” (alô, Rouanet) e pede como reação… “tocar o tambor”. Ou “História da História”, parceria de Pedro Mourão com seu filho André, via uma fita K7 esquecida por três décadas numa gaveta, que discute justamente como pode ser oportuno revisitar a história de “três velas brancas e três tribos de índios”.
Outro belo momento das novas canções foi “Não Se Esqueça”, de Zécarlos Ribeiro, mas executada por Hélio Ziskind – o homem por trás dos temas de abertura dos programas infantis da TV Cultura nos anos 1990. A “troca” faz sentido: a voz suave de Ziskind cai como uma luva na singeleza da canção, sobre um pai que busca a atenção da filha adolescente – quase como uma versão cordial-moderna (na leitura buarquiana do termo) de “She’s Leaving Home”.
O que não quer dizer que a apresentação tenha sido linear ou simplista: a cada hora a configuração de músicos, vocalistas e até instrumentos mudava no palco, como é natural a uma banda que tem dez integrantes – os nove Rumo originais (Paulo Tatit, Ná Ozzetti, Luiz Tatit, Gal Oppido, Akira Ueno, Pedro Mourão, Geraldo Leite, Hélio Ziskind e Zécarlos Ribeiro), somados a Márcio Arantes, jovem produtor e “organizador” do novo registro.
Ao longo de toda noite, os dez trocavam de lugar como quem troca de roupa – o que entreteu o público, mas dificultou o trabalho dos técnicos de som durante todo o show. Além disso, era possível perceber que, em alguns momentos, havia nervosismo no palco e alguma confusão entre os tempos das músicas – detalhe menor perante o fato de ser uma “estreia após quase três décadas” – ainda que, desde que se separaram em 1992, esporadicamente o Grupo Rumo se reúna seja para gravar um DVD ao vivo em 2004 (festejando 30 anos de carreira)ou simplesmente para matar saudades (deles próprios e dos fãs) em 2011, a então última reunião.
Nem todas as canções, também, funcionam sozinhas ao vivo: algumas delas, como “Paulista” (uma crônica simples sobre a principal avenida de São Paulo) ou “Estrela Solitária”, homenagem a Mané Garrincha, só foram deglutidas pelos presentes com a ajuda das ótimas projeções – no caso da primeira, houve até calafrios quando imagens dos protestos de Julho de 2013 apareceram na tela. O mesmo vale para algumas delicadas baladas da lavra de Luiz Tatit e cantadas por Ná Ozzetti, a anti-diva do Rumo, como “Livro Aberto” e “Dengo” – de tão exata, a voz de Ná acabou soando distante do calor.
Melhor foi quando a cantora, uma das maiores vozes de sua geração, se une aos companheiros em registros bem humorados do passado – caso de “Trio de Efeitos”, em que a performance de Geraldo Leite, Pedro Mourão e de Ná alarga a canção, “Delírio, Meu” ou “Esperança Ribeiro”. Outro momento potente veio de uma das músicas mais singelas do Rumo, “Ladeira da Memória”, bonito dueto da cantora com Paulo Tatit amparado por imagens da cidade de São Paulo nos anos 1980.
Andar pela ladeira da memória de antigas músicas, inclusive, fez o show se aquecer já na altura da metade – além das já citadas “Trio” e “Esperança Ribeiro”, outros dois grandes momentos surgiram graças a Pedro Mourão. Primeiro, quando ele revisitou a “Canção do Carro”, versão do Rumo para uma bela música infantil de Woody Guthrie, “Car Song” – afinal, uma guitarra que mata fascistas também pode entreter os pequenos.
Depois, ele e Geraldo Leite interpretaram com graça “Cheio de Saudade”, no momento “Rumo Aos Antigos” do show. Explica-se: além de seu repertório original, um dos trunfos do Rumo sempre foi revisitar o baú da canção brasileira dos anos 1920, 1930 e 1940, de autores como Sinhô, Lamartine Babo e Assis Valente – a pesquisa ajudou a banda a formar sua identidade, além de ter sido registrada no grande disco “Rumo aos Antigos”, de 1981. Geraldo, por sua vez, teve seu grande momento na esperada “Carnaval do Geraldo” – um hino de todos aqueles que odeiam o Carnaval, glitter e “chuva suor e cerveja”.
Como é de se esperar, ficou faltando bastante coisa – mais músicas de “Rumo aos Antigos” podiam ter aparecido, bem como “Amanheceu”, “Banzo”, “Felicidade” ou “Esboço”, algumas das melhores criações do Rumo. Mas nem toda saudade de três décadas se mata em uma noite – falar disso é, como diria Luiz Tatit em uma das novas canções, “maldade do tempo”. Pra fechar, o samba-enredo “Release”, que conta a história da banda “sem tino comercial” e ganhou uma singela adaptação para o retorno – afinal, em 2019, quem é que grava disco se não dá pra tocar em casa nem no carro? O Rumo, ué – que pode, sim, seguir sendo saudado como no refrão: “um grupo novo, singular!”.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista do caderno Link, de O Estado de São Paulo. Colabora com o Scream & Yell desde 2010 e é responsável pelo programa Roque da Casa.
Salve Bruno e Renan, mto boa matéria.
Posso dizer com toda certeza que os shows que seguiram esta primeira apresentação de estréia foram bem melhores e tranquilos, a música “Tambor” foi pro final do show e “Universo” ficou sendo a abertura.
Gostaria de deixar aqui o crédito pela projeção de imagens, que foram desenvolvidas por mim – Cecília Lucchesi em parceria com o Gal Oppido. Além das imagens criadas para algumas músicas do disco novo “Universo” tive a sorte de abrir o baú audiovisual do grupo RUMO e poder usar as imagens mais antigas que foram produzidas pela turma da produtora Olhar Eletrônico – apenas Fernando Meirelles, Tadeu Jungle e Marcelo Machado.
Viva o Rumo! Viva SP!