Texto por Renan Guerra
Ná Ozzetti é dona de uma carreira extremamente coesa. Desde os anos 70, seja ao lado do grupo Rumo ou em carreira solo, Ná sempre conseguiu dar vida a suas canções de forma segura e única, tanto que mesmo as suas releituras de diferentes obras, como Rita Lee e Carmem Miranda, ainda levam a sua marca extremamente delicada. Isso tudo se torna mais simbólico em 2019: Ná completa 40 anos de carreira, iniciada em 1979, com um show especial, que passeia por sua trajetória. Além disso, neste ano o Grupo Rumo também retornará aos palcos, com direito a mais um lançamento de disco inédito.
A celebração de 40 anos, intitulada “Ná 40”, teve estreia no teatro do Sesc Pompeia, palco fundamental para a Vanguarda Paulista – este era um dos locais preferidos de Itamar Assumpção –, onde Ná surgiu em traje de gala, com um lindo vestido de Caio Rocha, em que a saia trazia a figura de pássaros, os mesmos que enchiam o teto do espaço, em cenografia de Marco Lima. Dirigida por Carla Candiotto e iluminada por Wagner Freire, Ná subiu ao palco acompanhada de seus parceiros de longa data, com os quais atua há 10 anos: Dante Ozzetti, Zé Alexandre Carvalho, Mário Manga, Fernando Sagawa e Sérgio Reze. A concepção do espetáculo, de abordar a teatralidade das canções, como “contos curtos”, era um sonho antigo de Ná.
O repertório permeou diferentes fases da carreira da cantora, vindo dos anos 70 até a fase atual. Dos tempos de Grupo Rumo ela resgatou a bela “Falta Alguma Coisa” (Zé Carlos Ribeiro), que não era tocada há anos, tanto que a cantora relatou no palco a diferença de interpretar essa canção tantos anos depois. Do amigo Itamar Assumpção, ela rememorou a linda e genial “Noite Torta”, em delicada versão, “Milágrimas”, composta ao lado de Alice Ruiz, e “Sutil” (presente no disco “Ná”, de 1994), que ganhou quase contornos pop ao ser acompanhada em coro pela plateia.
De seu disco de estreia homônimo, de 1988, ela trouxe aos palcos novamente uma bela versão de “Do Rancho Fundo” (Ary Barroso/Lamartine Babo). O disco “Ná Ozzetti”, aliás, é obra a ser redescoberta e, por isso, o Selo Circus está preparando um relançamento especial do álbum nesse ano. De “Estopim” (1999), reaparecem a faixa título (Dante Ozzetti/Luiz Tatit) e a já clássica “Capitu” (Luiz Tatit), cantada também em coro pela plateia, enlevada.
Da virada do século, “Show” (Luiz Tatit e Fábio Tagliaferri) também foi relembrada, a faixa foi defendida por Ná no Festival da MPB da Rede Globo, em 2000, numa tentativa da emissora de relançar a febre dos festivais dos anos 60; com a canção, Ná recebeu o prêmio de Melhor Intérprete. Das homenagens à Carmem Miranda foram pescadas “Camisa Listrada” (Assis Valente) e “A Preta do Acarajé” (Dorival Caymmi), presentes no elogiado songbook que Ná fez para a atriz e cantora luso-brasileira, chamado “Balangandãs” (2008).
Das coisas mais recentes, também surgiram faixas dos discos “Meu Quintal” (2011) e “Embalar” (2013), dessas destacam-se “Musa da Música” (Luiz Tatit) – título inclusive usado pelo público para enaltecer a cantora – e a deliciosa “Lizete” (Kiko Dinucci / Jonathan Silva). Esse primeiro show deu um panorama amplo da carreira de Ná e, mesmo assim, muita coisa boa ainda ficou de fora. Sua parceria com Zé Miguel Wisnik, por exemplo, poderia ter mais espaço no show, já que ela apareceu quase de forma tímida – essa falta pode ser relevada se considerarmos que a dupla ainda segue com sua turnê “Ná e Zé”. Sua parceria com o grupo Passo Torto também merecia espaço, pois faixas como “O Cinema é Melhor” e “Cipó” casariam perfeitamente com o repertório escolhido.
De nuances tímidas e falando apenas o necessário, Ná criou um espetáculo no qual as canções falam por ela, que funciona como uma ponte entre o público e a poesia, tudo através de sua voz única. Delicada, ela faz movimentos mínimos, num meio-termo que mescla Carmem Miranda com ares de gueixa. É essa figura singela de Ná que cativou o público que lotava o Sesc Pompeia e agia como se estivesse ali em sua frente a nova estrela pop do verão, já que repetidamente surgiam gritos de “diva”, “perfeita”, “musa da música”, entre outros epítetos. Inclusive, na plateia estavam seus contemporâneos e jovens artistas atentos ao canto de Ná, desde seus parceiros de Rumo até Tulipa Ruiz, Juliana Perdigão e Arthur Nogueira. Esse último, aliás, é dono de uma das definições que melhor resumem a noite: “penso que o Brasil ainda pode se salvar toda vez que vou ver a Ná!”.
Ná é essa força poética, essa elegância e esse poder que vem do mínimo, do simples, do trivial; ela capta a beleza que passaria despercebida aos nossos olhos e transforma em arte da maior grandeza. Foram duas noites de ingressos esgotados no Sesc Pompeia, porém o espetáculo deve seguir por outros palcos e a dica é: não perca! NÃO PERCA!! Enquanto as novas datas não surgem, é tempo de celebrar esses 40 anos redescobrindo os trabalhos de Ozzetti. Ouça de novo e de novo e de novo e de novo…
01- A Velha Fiando (Dante Ozzetti e Luiz Tatit)
02- No Rancho Fundo (Ary Barroso/Lamartine Babo)
03- Outra Viagem (José Miguel Wisnik)
04- Estopim (Dante Ozzetti e Luiz Tatit)
05- Noite Torta (Itamar Assumpção)
06- Crápula (Dante Ozzetti e Luiz Tatit)
07- Milágrimas (Itamar Assumpção/ Alice Ruiz)
08- Medo de Amar (Vinícius de Moraes)
09- Equilíbrio (Ná Ozzetti/Luiz Tatit)
10- Falta Alguma Coisa (Zé Carlos Ribeiro)
11- Camisa listrada (Assis Valente)
12- A Preta do Acarajé (Dorival Caymmi)
13- Os Enfeites de Cunhã (Ná Ozzetti/Joãozinho Gomes)
14- Lizete (Kiko Dinucci/Jonathan Silva)
15- Show (Fabio Tagliaferri/Luiz Tatit)
16- Sutil (Itamar Assumção)
17- Ultrapássaro (Dante Ozzetti/José Miguel Wisnik)
18- Adeus Batucada (Synval Silva)
BIS:
19- Musa da Música (Dante Ozzetti / Luiz Tatit)
20- Capitu (Luiz Tatit)
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha. A foto que abre o texto e os vídeos são de Alexandre Eça; a segunda foto é de Paulo Rapoport.