entrevista por Marcos Paulino (colaborou Marcelo Costa)
Sobreviver tocando violão pode ser uma moleza para um músico talentoso, mas não é isso o que quer para sua vida o guitarrista e principal compositor da banda paulistana Ira!, Edgard Scandurra. Inquieto, estudioso, curioso, ele já estava incomodado por não fazer logo um disco de inéditas. Afinal, o Ira! havia lançado em 2004 o “Acústico MTV”, grande sucesso, mas baseado nas canções antigas. Antes dele, o último lançamento havia sido “Entre Seus Rins”, de 2001, disco que conseguiu pouca repercussão. E, antes desse, “MTV Ao Vivo“, outro de regravações, em 2000.
Para o perfeccionista Edgard, o Ira! estava ficando pop demais, talvez acomodado com a mídia alcançada com os dois trabalhos em parceria com a MTV. Estava faltando um álbum “autoral”, palavra que o guitarrista usa bastante. Ele não admitia que sua banda, com uma trajetória de mais de 25 anos, tornasse-se um grupo de meros intérpretes de seus próprios sucessos. Daí que resolveu tomar as rédeas da produção do mais recente e 13º disco do Ira!, “Invisível DJ”, recém-lançado e cuja turnê teve início com um show na semana passada (18/05), em Criciúma (SC).
Nesse trabalho, Edgard aparece muito. Seja fazendo sua guitarra ecoar nos ouvidos com as influências de seus projetos paralelos, como no Benzina a.k.a, em que toca com duas mulheres, seja nos créditos do CD, onde seu nome pode ser visto como autor de boa parte das composições. O resultado parece ter agradado ao exigente músico, como ele mostra nesta entrevista exclusiva ao PLUG, parceiro do Scream & Yell. Já se agradou ao público ainda é cedo para dizer.
Esforços para isso foram feitos. O disco tem a participação de velhos parceiros do Ira!, como o ex-Titã Arnaldo Antunes e a ex-Gang 90 (e ex-mulher do guitarrista) Taciana Barros, e uma música de autoria de Rodrigo Koala, autor de sucessos do Hateen e do CPM 22. Mas o Ira! de hoje é muito diferente da banda que, em 1985, lançou seu primeiro disco, cheio de ideologia, “Mudança de Comportamento”. E que depois estouraria com a inclusão de “Flores em Você” na abertura da novela “O Outro”, da TV Globo.
Desde então, a banda, que tem Nasi nos vocais, Ricardo Gaspa no baixo e André Jung na bateria, vem alternando momentos de muito sucesso com outros de “sumiço”. Resultado de uma discografia que não se limitou a se deitar no berço esplêndido da fama. Edgard e companhia nunca tiveram de medo de arriscar. Neste novo CD, em que o guitarrista assume o papel de um “DJ invisível” da trilha sonora de outras vidas, eles mostram isso mais uma vez.
Suas guitarras estão bem marcantes neste disco, você escreveu várias letras, enfim, teve uma participação destacada na elaboração do álbum. Como foi esse trabalho?
Sou o maior compositor do Ira! e, de certa forma, a banda me delega um poder. Então, entre o nosso último disco de estúdio e este, me lembrei de uma frase do Homem Aranha, que todo poder gera responsabilidade. Depois de seis anos sem um disco de inéditas, eu queria fazer um CD forte, que tivesse pegada, uma sonoridade rica, letras importantes, enfim, que não fosse um disco a mais em nossa carreira e passasse batido. Queria que fosse um disco marcante, que as pessoas pudessem ouvir por muito tempo, que influenciasse novas gerações. Isso me fez arregaçar as mangas e trabalhar muito, porque eu queria uma pegada que transcendesse a coisa simplesmente do pop. Depois do sucesso do “Acústico”, você pode achar que tem que manter um status, então pode sucumbir a uma fórmula. Em vez de ser uma banda autoral, pode virar uma banda intérprete, gravando discos como se fossem cantores da MPB. Quis encabeçar esse projeto justamente para não cair a peteca, para que fosse um disco contundente, que fizesse a galera saudosa dos outros discos do Ira!, ou o público jovem, ter em mãos um trabalho autoral, de peso.
Dá para dizer então que você vestiu a carapuça do invisível DJ?
É verdade. De certa forma, o objetivo de fazer com que o disco vire uma trilha sonora da vida da gente dá munição para que se vire esse invisível DJ. É um trabalho que tem a característica de ter músicas que marquem as pessoas, que deixem registrado esse nosso momento de pesquisa. É um disco que vem tirar um certo atraso. O “Acústico” foi maravilhoso, mas ficamos quase dois anos tocando violão. É incrível ganhar dinheiro tocando violão. (Risos) É ótimo, mas a gente é muito mais que isso. É importante resgatar a nossa pegada rock’n’roll, nosso lirismo, nosso romantismo, nossos sonhos e colocar tudo isso num disco.
É perceptível em cada faixa que sua guitarra traz várias influências. Dá realmente a sensação de você pesquisou, que estava com tesão de tocar guitarra. É isso mesmo?
Em determinado momento, você começa a pensar a música como um todo, como compositor, como arranjador, e vai se distanciando do instrumento. Eu percebia que estava me distanciando da guitarra, estava mais preocupado com o conjunto da obra. Então achei necessário retomar a guitarra. Também começou a aparecer muita gente boa tocando guitarra e percebi que não podia ficar parado, vivendo de uma memória, das guitarras legais que fiz em algum momento da minha vida. Sem deixar de me preocupar com essa coisa toda da música, quis me voltar um pouco mais para o meu instrumento, pensar em riffs, em timbres diferentes. É isso que faz a música ser não só contemporânea, mas também atemporal. É uma pegada legal, um solo interessante que vão fazer a música ser lembrada daqui a 10 anos. Mas não tenho pretensão nenhuma de mostrar virtuosismo, de mostrar que sou bom. Quero aproveitar meus erros também.
Você trouxe para este disco a carga de seus projetos paralelos?
Claro. O trabalho para mim é uma coisa só, não sou duas pessoas. Não tem aquela coisa de que o Edgard do Benzina ou que trabalha com música eletrônica não tem nada a ver com o Edgard do Ira!. Tem tudo a ver, é decorrência da experiência que você vai adquirindo, de timbres que você vai descobrindo, de formas de compor diferentes. Se não consigo numa música do Benzina colocar o timbre que eu queria, se ficou aquém do que eu gostaria, procuro recuperar isso no disco seguinte, seja no Ira!, seja numa música eletrônica, seja numa participação como convidado. É uma procura para recuperar o terreno que perdi por uma distração, uma falta de foco. Não consigo dissociar as coisas. Então foi superimportante a minha experiência com trabalho solo, porque vou sempre querendo aperfeiçoar no trabalho seguinte.
O Nasi tem um trabalho paralelo completamente diferente do seu, voltado mais ao blues e ao soul. Quando vocês se juntam, como fica isso?
Isso é uma coisa interessante. A gente fica muito tempo juntos, na estrada, nos shows, mas cada um tem a sua vida particular. Temos mais de 40 anos e não são só os trabalhos solos que fazem com que a vida de cada um seja tão diferente da do outro. Quando a gente se reúne no estúdio para gravar, é como se a gente não se visse há muito tempo. Aí vem a importância de o Nasi trazer alguma coisa diferente que ele fez, ou de eu apresentar alguma coisa que fiz. A gente sempre acaba descobrindo um terceiro som, que acaba sendo o som do Ira!. Tem também a importância do Ricardo no baixo, como compositor, do André na bateria, com sua cabeça pensante, que ajuda muito com os arranjos. É quando as quatro pessoas começam a trabalhar num produto só, com o mesmo objetivo.
O “Invisível DJ” lembra um pouco o “Psicoacústica”, parece retomar aquela fase. Em que contexto da discografia do Ira! você encaixaria este disco?
Ele entra num momento de muita coerência da nossa trajetória. O nosso último disco antes do acústico, o “Entre Seus Rins”, veio num momento em que a gente estava numa fase muito boa como produtores. A gente tinha as nossas influências dos trabalhos solos, dentro de um disco em que tínhamos liberdade total para compor, que acabou sendo um sucesso para nós dentro do estúdio, mas ficou muito aquém na resposta do público, de vendagem. Tivemos uma turnê bacana, mas que poderia ter sido melhor. As músicas não entraram na cabeça das pessoas como a gente imaginava. A nossa gravadora era a Deck Discos da Abril, que estava fechando. Pegamos um momento difícil e acabou sobrando para nós o esquecimento muito precoce desse disco. O “Invisível DJ” resgata alguma coisa do passado, talvez o “Psicoacústica”, talvez o “Meninos da Rua Paulo”, mas eu o vejo como uma continuação do “Entre Seus Rins”. Tem um pouco de tecnologia na música, tem uma pegada contemporânea no som. Do “Acústico”, vem uma ponte que o Rick Bonadio, nosso produtor, queria que tivesse em uma ou duas faixas. O disco às vezes é um desabafo do que não conseguimos no anterior, às vezes é uma tentativa de quebrar com uma expectativa. Quisemos ter uma coerência com os últimos trabalhos aliada ao vigor de músicas inéditas.
Que diferenças você vê no Edgard de hoje e no Edgard do Ira! do “Mudança de Comportamento”, nos anos 80?
Nesse período de 20 e poucos anos, a grande diferença é a vida adulta e suas responsabilidades. Quando eu tinha 23 anos, no primeiro disco do Ira!, minha vida era totalmente a música. Ficava num apartamento de um quarto, uma bagunça danada, uma zona, olhando para o teto, esperando as coisas acontecerem, podendo ter atitudes punks à vontade. Era aquele momento da juventude em que todo mundo parece seu inimigo e você fica sempre na defensiva. Ao mesmo tempo é um período muito legal, porque você está se rebelando contra as coisas e tem um discurso contundente. Neste momento, sou aquele cara só que com quatro filhos, tenho uma vida cheia de responsabilidades de pai. Na música, tenho uma visão bem mais ampla do que naquela época. Agora tenho um distanciamento. Hoje posso ver uma crítica negativa a um trabalho meu e achar até pertinente. Posso não aceitar, mas continuar mantendo isso no plano da democracia. Quando era mais novo, qualquer coisa dessas me ofendia, me magoava, me deixava arrasado. Hoje sou muito mais tolerante.
Apesar do amadurecimento, você acredita que o Ira! continua atraindo o público jovem?
A gente tem conseguido isso através dos anos. Me lembro que em 98, numa fase nossa meio obscura, com discos mais experimentais, sem muita exposição em mídia, porém com uma história, nosso fã-clube tinha um presidente de 17 anos. Era um moleque, presidente do fã-clube até hoje, que sabia tudo sobre nossa história. A gente conseguiu um público com o “Acústico” que ouve rádio, que gosta tanto da gente quanto de outra banda mais pop, mais comercial, mas a gente consegue mesmo um público mais duradouro com nosso histórico. A gente conquista um público com uma música de sucesso, mas que esquece da banda quando ouve um trabalho de que não gosta. O público forte que nos acompanha são aqueles que sabem que nossas músicas não são só flores, só maravilha, que tem um pianinho aqui, um violãozinho ali. A gente sempre fez música para a gente mesmo e, enquanto for assim, teremos o respeito do público e isso vai fazer com que apareçam novos fãs. E até seleciona um pouco, pois faz chegar até nós não só aquele público do rádio, da TV, ou que viu o pôster e veio pela beleza de um integrante.
Do alto de quem tem duas décadas e meia no rock e de quem viveu a época de glória do rock nacional, como você vê as bandas novas?
Há algumas tribos, como a do emocore, que desconheço muito. Aí eu vejo o quanto há choque de gerações, na música, na arte, no comportamento. É uma coisa que pertence ao universo adolescente e para a qual eu posso ter uma visão crítica errada. Mas acho que há duas coisas interessantes no rock agora: as bandas que vem nesse caminho meio dos anos 80, de conseguir alguma coisa através de show, de rádio, de televisão, e o pessoal mais alternativo e talvez mais antenado com a tendência mundial, que vai para o MySpace, vai para o download, que acho que tem mais possibilidade não de popularidade, mas de conseguir alguma coisa mais interessante na música.
Quais os planos do Ira!? Vai rolar DVD?
Vai rolar o DVD do CD novo, que é um trabalho muito interessante. A gente regravou as músicas do “Invisível DJ” ao vivo dentro do estúdio. No ano passado, a gente fez 25 anos e nem comemorou, porque não deu muita importância a isso. Para mim, é um dia depois do outro. Então vamos aproveitar esse DVD para marcar a data. Vai ter depoimentos de muita gente que nos acompanhou no começo da carreira, terá o making of do novo disco. Acho que vai ficar um trabalho maravilhoso. Estou ansioso para ver, porque material tem bastante.
– Marcos Paulino é jornalista editor do site Mundo Plug (www.mundoplug.com)