por João Paulo Barreto
A contradição entre fé, religiosidade e razão tem sido tema recorrente na filmografia recente de Edgard Navarro, um dos diretores da geração Super8, na Bahia dos anos 1980, quando realizou o marco “SuperOutro”, média metragem que demonstrava uma Salvador distante da fantasia do cartão postal. Junto a Pola Ribeiro, Fernando Belens e José Araripe, Navarro moldou um formato de cinema no estado do nordeste, algo que, em um período de escassez na produção, marcou época.
Revisitando suas memórias afetivas em “Eu Me Lembro”, longa de 2005 bastante premiado no Festival de Brasília, o diretor reencontrou sua infância e reviveu uma capital baiana perdida, mas ainda firme em um imaginário nostálgico. Já em 2011, com “O Homem que Não Dormia”, Navarro trouxe uma discussão mais idiossincrática, aprofundada, transparecendo seus conflitos internos e dividindo-os com o público. À época, tratou-se de um filme de difícil acesso, mas, uma vez visitado, acompanhava o espectador por bastante tempo. Lá, a ideia do choque entre fé, razão, tentações e religiosidade já havia sido abordada profundamente.
Em seu novo longa, “Abaixo a Gravidade” (com Everaldo Pontes, Rita Carelli, Bertrand Duarte, Fábio Vidal, Ramon Vane), exibido na Mostra CineBH 2018, desde o título, um questionamento a essa condição estanque de regras e, por consequência, à ideia do conflito entre o racional e a crença se faz presente. Na figura de Bené (Everaldo Pontes), um idoso que optou por uma vida bucólica e simples no Vale do Capão, a figura construída da fé e do otimismo que, aos poucos, vai se perdendo perante as condições adversas que sua frágil saúde começa a demonstrar. Na fuga para a capital, Salvador, um reencontro com o passado e o embate com a lucidez de Galego, morador de rua cujo ceticismo fascina. Na pele de Ramon Vane, falecido recentemente e a quem o filme é dedicado, e que já havia dado vida ao Prafrente Brasil, o militar reformado e entregue ao próprio caos de “O Homem que Não Dormia”, encontra-se um sopro de lucidez. São dele as melhores observações do roteiro, acerca da fé na humanidade e no desregrar para se encontrar um norte. Perante a sua própria desgraça, abraçar a miséria e esquecer-se de qualquer traço de conforto é o que lhe resta.
Navarro, ao inserir uma sagaz imagem de uma estátua do Pensador, de Rodin, sendo levada por um helicóptero nos ares soteropolitanos, cria uma rima visual pertinente ainda no mesmo argumento de crença vs racionalidade. Ao nos fazer pensar na icônica imagem de “La Dolce Vita”, clássico de Fellini, em cuja abertura vê-se uma estátua de Jesus Cristo ser, também, carregada por uma aeronave, o cineasta baiano acerta nesse diálogo que seu filme oferece aos mais atentos. Entre Bené e Galego, essa ideia de crença em uma força maior a nos confortar e o total niilismo e pessimismo por parte do segundo, move aquela relação. Mas, apesar de um pragmatismo nos aproximar mais da visão do morador de rua, nos perguntamos a que outro argumento pode se apoiar Bené, quando até mesmo um tratamento médico lhe é impossível e, na figura de Maselfe, interpretado por Bertrand Duarte, parceiro habitual do diretor, encontramos a mesma doença, mas um total apego não à própria vida, mas à vaidade que o move. Maselfe, na verdade, é o que teria se tornado Bené, se não tivesse optado por uma vida sem a reclusão bucólica que o levou para a morada no campo. Quando é atingido por uma saraivada de merda, em um reencontro com “SuperOutro”, o personagem de Maselfe é colocado justamente onde sua posição materialista e vaidosa o disfarça. Naquele momento, seu verdadeiro eu lhe é apresentado.
“Abaixo a Gravidade”, ao seguir a ideia transgressora e questionadora de seu realizador, acerta ao criar justamente esse diálogo. Mesmo que, ao final, venha a tender à muleta da fé perante o ceticismo, a obra deixa claro ser aquela a única opção de lucidez e equilíbrio que seu protagonista possui. O desprendimento e niilismo de Galego são para poucos. No orgasmo, Bené admite a existência de um deus. Para nós, claro, a escolha de quem é essa entidade fica a critério próprio. O que o filme nos leva a concluir reside justamente nessa idiossincrasia básica da escolha no que se prefere acreditar. Pode ser em ervas para curar câncer; pode ser em voar com asas feitas de sucata (em uma bela referência a “Brewster McCloud”, clássico de Robert Altman) ou pode ser na vaidade como forma se salvação, como vemos Maselfe (em um nome mais que apropriado) crer piamente. Em qualquer uma das opções, o quebrar de regras segue como obrigatório. Mesmo que a principal dela, aqui, seja a da irrevogável gravidade. Relembrando o grito de Bertrand Duarte em “SuperOutro”, e repetido em O Homem que Não Dormia”, essa vontade de quebrá-la segue como que por insistência. Ainda bem. Um conflito de fé e racionalidade como norte.
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– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema e colabora para o jornal A Tarde / BA.