entrevista por Thiago Sobrinho
Dois anos após o elogiado “Nas Estâncias de Dzyan” (2016), o músico e compositor capixaba Juliano Gauche acaba de lançar o terceiro disco solo de sua carreira. Trata-se de “Afastamento”, álbum produzido pelo próprio artista ao lado de Fernando Catatau, frontman da banda cearense Cidadão Instigado (outro músico do Cidadão, Dustan Gallas, assina a mixagem), e que ganha às ruas via selo EAEO Records. O disco pode ser baixado no Bandcamp e pode ser ouvido em todas as plataformas de streaming.
Com oito faixas, o álbum é permeado pelo afastamento que o batiza. Nelas, o ex-integrante do Solana encarna as dores e a poesia da ruptura do indivíduo do ambiente onde vive, de si mesmo e as demais possibilidades desse movimento tão comum nas trincheiras do dia a dia. Em “Silmar Saraiva”, música que abre “Afastamento”, o capixaba se aproxima de Ecoporanga, sua cidade natal situada no Norte do Espírito Santo. Algo que nos leva se dar conta que nem tudo neste disco está sob o véu da distância.
Mais do que perceber ambiguidades do tipo, ouvir as canções deste novo trabalho é perceber – e se encantar – com a busca de Gauche por sua voz enquanto artista. “Acho que maior busca de um artista é sua assinatura. Quero me aproximar o máximo possível disso”, conta o músico que participa de “Um Grito Que Se Espelha”, tributo a Walter Franco lançado pelo Scream & Yell, e define o novo álbum em tom de brincadeira como “mantra mecânico, discoteca dark, pós punk lírico, caneta sangrenta”. Confira o bate papo.
A primeira faixa do seu novo trabalho fala sobre este personagem chamado Silmar Saraiva, do município de Ecoporanga, localizado no Norte do Espírito Santo. Embora o disco se chame “Afastamento”, logo de cara você se aproxima da sua cidade natal. O que há por trás desse distanciamento?
Eu me sinto exilado de Ecoporanga. E são minhas escolhas que sustentam este quadro. Sou um opositor declarado de quase tudo que exerce seus poderes por lá. A começar pelo prefeito, que é acusado de ter burlado as eleições, mas, por ser um grande produtor de carne, tem conseguido sustentar isso sem muitos problemas. Aliás, também sou simpatizante dos direitos dos animais, o que me coloca em conflito direto com a ideologia predominante do mercado local. Além de criticar abertamente as igrejas que lá funcionam como currais eleitorais, passando panos quentes em todas essas irregularidades. E acima de tudo minha militância pela legalização da maconha, o que me coloca lado-a-lado com o diabo, na visão deles. Por outro lado, sou apaixonado pela natureza do lugar, por sua história, por seus poetas… e esse afastamento, acima de tudo, me dói.
E quem é Silmar? Qual importância ele teve para sua formação?
Minha música sempre foi esquisita. E em e Ecoporanga eu podia contar nos dedos de uma mão as pessoas que gostavam dela. No topo dessa listinha estava o Silmar Saraiva, que sempre soube me motivar. Ele me ensinou muita coisa. Além de me encher de argumentos para que eu conseguisse sustentar meu discurso. E essa música fala disso: de um lado pessoas como ele, buscando uma vida diferente; e de outro essa sociedade presa pelo medo e coisas do gênero.
Já Na faixa “Dos Dois” percebemos o distanciamento de um casal. Mas ao longo das outras músicas conseguimos pinçar configurações diferentes desse movimento, como o afastamento do indivíduo do ambiente onde vive, de si mesmo, entre outras possibilidades. O que o aproximou deste tema?
Logo nas primeiras músicas que escrevi para este disco, me dei conta de que esse movimento de se afastar tinha uma presença muito forte nelas. E reparei também que meu ponto de vista em quase tudo era o de quem olhava a situação de uma certa distância. E que minha vontade de me afastar ainda mais desses mecanismos de dominação em que vivemos era muito latente. O que me pedia um distanciamento de mim mesmo, enquanto fruto do meio. Então pareceu óbvio este título.
E artisticamente? Você tem se afastado (ou se aproximado) do quê?
Acho que a maior busca de um artista é sua assinatura. Quero me aproximar o máximo possível disso. E neste trabalho usei uma técnica proposta por neurocientistas que dizem que você precisa está sempre assimilando coisas novas para que seu cérebro crie novas sinapses e se manifeste com mais força e clareza. Então fui deixando tudo o que me era habitual de lado, e procurando ouvir só coisas novas.
Para este trabalho você dividiu a produção com o Fernando Catatau (Cidadão Instigado). Catatau é um cara que você vem trocando figurinhas desde “Nas Estâncias de Dzyan”, seu disco anterior, lançado em 2016. Como foi tê-lo como co-produtor?
Me senti extremamente protegido. Ele e o Dustan Gallas (também do Cidadão Instigado e responsável pela mixagem) levaram o trabalho para outro nível. O Catatau é um gênio e a forma como ele foi desenhando os arranjos com os músicos, parecia mágica. Mais que um co-produtor, tenho dito que ele acabou virando um co-autor, pois suas intervenções, em algumas partes, acabaram rearmonizando as músicas. Pra mim é uma grande honra.
Como você define a sonoridade deste “Afastamento”?
Não sei se consigo definir o som que chegamos nele. Durante o processo, expressões como mantra mecânico, discoteca dark, pós punk lírico, caneta sangrenta, e coisa do tipo surgiam, mas em tom de brincadeira. Acho que como não temos mais um mercado com aquelas prateleiras divididas por ritmos, quase ninguém mais se preocupa em fazer um trabalho com gênero definido.
“Pra Festejar o Silêncio” foi composta, como diz o release escrito pelo jornalista Jotabê Medeiros, após uma “leitura febril” do livro “Grande Sertão: Veredas”. O que te encanta nessa história publicada pelo João Guimarães Rosa lá em 1956?
Foi a primeira vez que chorei lendo um livro. Acima de tudo, pra mim, ele é uma história de amor. E eu, com um romântico incurável, me senti profundamente impactado por ele. Fiz a música logo na sequência da leitura. E usei imagens da minha história com a Sil (minha companheira de travessia), para simular aquela natureza de amor em tempos de guerra, presente nele.
E de que maneira as leituras que faz influenciam nos teus escritos?
A literatura é a minha principal fonte de inspiração. Nem sei se trato a música com tanta seriedade como trato os livros. A música, pra mim, é só uma ferramenta que eu uso para manifestar o que colho da poesia.
A cantora Soledad acaba de lançar uma música tua: “De Manhã, Logo Cedo”. Fala um pouco sobre essa composição e conta como foi que a música foi cair nas mãos dela.
Essa canção também nasceu durante o processo deste disco novo. Mas ela soava redundante dentro do conjunto que já estava predominando. Então a deixei de lado. Mas ela começou a tocar na minha cabeça sem parar. Como se não quisesse ficar pra trás. Então perguntei a ela o que ela queria e o nome da Soledad surgiu. Como já estava buscando fazer alguma coisa com ela, pois sou muito fã do jeito que a Soledad interpreta, tudo isso caiu como uma luva. Pra minha sorte.
Fora a Soledad, você tem outras parcerias em vista?
Sim. Além dessa versão da Soledad, também foram lançadas recentemente uma versão da música “Para Tua Mulher Quando Te Casares”, pela Tassia Holsbach, uma versão de “Dos Dois”, pela Izza Beatriz, o Daniel Groove vai lançar em breve uma versão para “Bolero de Mentira” e a cantora Patrícia Coelho também gravou duas parcerias que temos juntos em seu novo disco, que também sai já já.
Junto disso tudo, acabou de sair também “Um Grito que se Espalha”, tributo a Walter Franco lançado pelo Scream & Yell. A música que você interpreta é “Revolver” (uma canção que você já tocava antes). O que o levou a optar por essa canção e o que ela diz para você?
Minha banda em Ecoporanga se chamava Revólver (com acento mesmo), por causa da surpresa que tive ao ver o Walter Franco citando meu disco predileto dos Beatles, na época. Como tudo isso se deu, é uma confusão digna de deixar pra lá. Mas quando vi que teria a oportunidade de fazer minha versão pra ela, foi uma alegria só.
– Thiago Sobrinho (fb.trsobrinho) é jornalista do A Tribuna em Vitória, Espírito Santo. A foto que abre o texto é de Harodo Saboia / Divulgação
Gostei bem do “Afastamento”. Boa entrevista.