entrevista por Rafael Donadio
Enquanto o Manguebeat (ou Manguebit) começava e logo atingia seu auge na “quarta pior cidade do mundo, Recife”, em meados da década de 1990, na região Oeste outra cena estava nascendo. Talvez movimentação seja a melhor forma de definir aquela moçada, todos querendo ter a sua banda, fazer um som e repetir o barulho das influências que lhe chegavam aos ouvidos, entre elas o rock nacional, o grunge, a cena Mod, o Tropicalismo e o stoner rock clássico.
A divisão feita pela avenida Recife, separando lado leste, Inocop e Vila Tamandaré, e lado oeste, Vila Cardeal E. Silva, não foi empecilho para Zeca Viana, Rafael Rodrigues, Neto, Carlinhos V10, Mathias Brito, Jones Farias, Raphael Matos, Marcionílio Nery, Juvenil Silva, Manoel Otávio, André Conserva, Felipe Silva, Angelo Souza (Graxa), Adriano Leão e Gilvandro Barros se movimentarem.
Há aproximadamente 20 anos a cena deu os primeiros passos. E nessas duas décadas, inúmeras foram as bandas formadas e muitas as trocas de integrantes entre elas. Zero Kelvin (que mais tarde viria a se chamar apenas Kelvin), The Kavemen (posteriormente, Canivetes), Lotus (mais tarde Nebulosa) e Os Insites foram os grupos de maior destaque.
Participando de muitas delas estava Gilvandro Barros, 33 anos, que no Colégio Visão – que ele, ironicamente, chamava de Prisão – começou a conhecer alguns companheiros e a se interessar por música, aos 13 anos. Basicamente rock nacional: Engenheiros do Hawaii e Titãs. Mas também alguma coisa internacional, como o Nirvana, “uma das poucas bandas que, desde aquela época, eu continuo sendo muito fã ainda”, comenta.
Com uma guitarra Strato Sunbusrt, da Gianinni, dada de presente pelo pai, Gil (como é comumente conhecido na cena) foi montando as primeiras bandas. E foi no intervalo dos ensaios que percebeu que também tocava outros instrumentos. “Eu comecei a tocar e disse para mim mesmo: ‘Meu irmão, eu toco bateria.’ Aí sempre que dava eu sentava na bateria para tocar, e assim eu fui aprendendo.” Não só bateria, mas também baixo e guitarra. Sempre de ouvido e na marra.
Os Insites foi a primeira banda que entrou já com o posto de baterista. Nunca deixando o trabalho de vendedor de lado, Gil assumiu e assume o posto de baterista em diferentes bandas. Além d’Os Insites, Dunas do Barato, Graxa, Juvenil Silva e Mocamas.
Conversamos por telefone com Gil sobre o novo lançamento de Mocamas, “Modern Lulu”. Um projeto solo que já tem dois discos gravados e traz as influências de stoner rock da década de 1960 e 1970, mais pesado e psicodélico. Nos dois álbuns, Gil gravou todos os instrumentos, com exceção dos baixos do disco novo, gravado por Tiago Silva. Confira o bate papo.
Como surgiu a ideia de fazer o Mocamas?
O estilo de som que eu faço no Mocamas é algo que eu sempre quis fazer. Caso eu fosse responsável por formar uma banda, seria essa a viagem. Como eu fui me metendo em banda atrás de banda, tocando bateria, eu fui meio que deixando essa ideia meio quieta, porque eu ia me dedicando a banda que eu estava. Toquei no Insites durante sete anos (2003 – 2009), depois toquei na Dunas do Barato, que foi mais seis anos (2007 – 2012). Foi em 2008 que eu comecei a registrar as coisas que eu estava fazendo. Comecei a gravar sozinho e fui mostrando para as pessoas e consegui juntar um pessoal. Mas as formações nunca duraram muito. A banda praticamente é um projeto meu ainda. Enquanto não acho ninguém para formar a banda e fazer show, eu vou compondo e gravando.
Como você definiria o estilo do Mocamas?
Percebo muito que, mesmo sem querer, foi uma coisa que ficou muito focada naquela coisa do fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Aquela virada de quando tinha muita coisa passando pelo psicodélico, rock pesado, com influência de blues. Muita banda desconhecida experimentando. Banda se metendo em estúdio pequeno, bem merda e gravando um som que não tinha tanto apelo comercial. Fazia porque era piração deles mesmo. E eu viajo muito nisso, porque eu também estou fazendo um negócio sem muita pretensão. Minha pira é fazer o melhor do que eu posso com o que eu tenho.
E que bandas especificamente influenciam o projeto?
De forma nenhuma é exclusivamente nessa época que falei, mas é principalmente do final da década de 1960 e começo da década de 1970, então é: Led Zeppelin, Black Sabbath, Randy Holden, Mountain, Grand Funk Railroad, Cream, Jimi Hendrix, Blue Cheer – eu acho que é a banda que fez basicamente a gente começar a banda –, Sir Lord Baltimore, Dust, que era a banda de Marky Ramone, Vanilla Fudge, os primeiros discos de Alice Cooper e por aí vai.
Quando Juvenil Silva me apresentou o Mocamas eu brinquei que era o “Black Sabbath lo-fi nordestino”. Essa parte lo-fi é proposital ou são as reais condições da gravação mesmo?
É proposital, bicho. Porque tem a ver com um certo desencantamento que eu tenho com música, em relação a profissão. Eu não penso, não tenho essa ideia de me imaginar ganhando dinheiro suficiente para viver de música. No momento que tive contato com essa coisa de gravar, lá com Os Insites, em 2004, fiquei fascinado com aquilo. Já fiquei pensando que eu gostava de mexer nisso, desse universo de gravar, mixar, procurar timbre, efeitos e tal. Daí comecei a juntar uma grana para comprar uma plaquinha (placa de som), um microfonezinho legal, construí um isobox (caixa acústica) até o momento que estou agora. Gosto muito de eu mesmo ir lá e fazer o que posso com o que tenho.
De onde vem o nome Mocamas?
Tem muita coisa nas letras que tem a ver com controle social, um tipo de escravidão que a gente vive e não percebe. Mocamas eram as mulheres negras que serviam na casa dos senhores brancos. Dei esse nome porque é basicamente como enxergo a realidade da gente até hoje. Percebendo ou não, basicamente todo mundo vive num estado de servidão para uma coisa maior. Apesar de a gente nem conseguir perceber, a gente está aqui servindo essa coisa maior, que são pessoas mesmo, é uma parte da humanidade que manda em todo resto. E a coisa vai seguindo como se tivesse que ser assim, mas na verdade não deve ser.
As letras das músicas giram em torno desses assuntos também?
Sempre me interessei por livros e documentários que falem sobre o domínio de uma classe social sobre outra, manipulação da mídia, mentiras do governo, o terrorismo – da gente não saber de onde vem, até onde vai, se pode ter um pretexto para isso aí – religião. Coloco na letra a minha interpretação disso tudo.
Em relação a esse novo lançamento. Como surgiu o nome “Modern Lulu”?
Curto essas paradas de ficção científica e estava passando numa seção de uma livraria e vi um livro que chamava “O Livro Perdido de Enki – Memórias e Profecias de Um Deus Extraterrestre”. Achei que era um livro de ficção barato, mas achei engraçado de certa forma. Aí acabei comprando. Quando fui lendo o livro, velho! Era o seguinte: são traduções das tabuletas escritas no barro deixadas pela civilização suméria, que foi a primeira civilização da humanidade. E o livro conta como foi criada a humanidade, desde o começo, até quando esses extraterrestres que diz na capa deixaram a Terra. Eles vieram procurando ouro e quando chegaram aqui, eles colocaram o povo deles para trabalhar, mas o trabalho era pesado e em um certo momento eles se revoltaram. Aí, um dos alienígenas sugeriu que se produzisse um humanoide, que seria uma mistura da genética deles com a genética do homem pré-histórico que tinha aqui na terra. E essa “besta-fera” eles chamavam de Lulu. Lulu significa trabalhador primitivo escravizado. Daí a humanidade se desenvolveu sempre nessa mesma relação da base da humanidade ser criada para servir uma elite. Então o nome vem daí, como se a gente estivesse naquela mesma merda de quando foi criado. A capa do disco é a imagem de uma mulher que fazia trabalho escravo na sérvia na década de 1920.
Você gravou os dois discos do Mocamas em casa ou teve algo gravado em estúdio?
Só não gravei em casa o que eu não podia, que era a bateria. Sempre morei em apartamento e não tem como gravar bateria em casa. Quando gravei o “Mocamas” (2015), minha bateria ficava na casa de Juvenil (Silva), porque a gente ensaiava lá, então tirei três noites, levei meus microfones e gravei tudo. Para o “Modern Lulu” (2017), como Juvenil se mudou e a bateria está em casa, reservei nove horas de estúdio só para gravar a bateria. Coloquei a bateria no Uber – o cara chegou com um Celtinha aqui, mas dei um jeito de caber, fui com a caixa na cara e não vi nada o caminho inteiro – levei os microfones e gravei tudo lá. O restante foi tudo em casa.
Falando de sua carreira, qual sua trajetória?
Ah, foi muita banda já. Quando eu tinha os meus 14/15 anos eu tive a primeira banda (Lotus, que se tornaria Nebulosa), mas o meu interesse era mais em tocar guitarra. Nessa época, era uma parada mais grunge. Depois tive uma banda que chamava Os Insites, que era uma coisa mais anos 1960, uma coisa mais de garagem.
Os Insites já foi algo mais sério, teve EPs gravados não teve?
A gente chegou a lançar dois EPs. Foi em 2004 (“Os Insites) e 2005 (“Em Busca de Não Sei o Que”) e depois lançamos um disco completo em 2008 (“Os Insites”). Era bem nessa vibe garageira dos anos 1960 e final dos anos 1970, e também um pouco de Tropicália mais podre: Beatniks, Os Brasões e coisas mais para esse lado. Nos Insites eu passei a me dedicar mais a bateria.
E você deixou de tocar guitarra?
Não tinha mais interesse em fazer uma banda para tocar guitarra, mas esse tempo todo (desde 2003, quando começa Os Insites) eu estava tocando em casa, sempre praticando, compondo, estava fazendo músico. Mas já mais nessa vibe que estou fazendo hoje com o Mocamas.
Mesmo sendo o som do Mocamas o som que você sempre quis fazer, você toca bateria com o Juvenil Silva e com o Graxa, e tocou na Dunas do Barato, que são sonoridades diferentes. Essas diferentes bandas, com diferentes sonoridades, agregam na hora de fazer o som com o Mocamas?
Sim, acredito que sim. Todas essas bandas em que eu fui tocando, eu fui sendo apresentado a outros tipos de som, na medida em que ia entrando em cada uma. As pessoas das próprias bandas me apresentavam sons novos. Com certeza tudo isso vai somando quem você é como músico. Não só pela questão de referência, mas também por ter oportunidade de tocar outras coisas que nem imaginava que teria oportunidade de tocar.
Você toca com artistas independentes e faz os seus trabalhos de forma independente também. Quais são as dificuldades de se fazer música independente no Brasil?
Eu me coloco muito fora dessa realidade. Porque, como te disse que não tenho mais pretensão de tirar grana com isso, já me sinto meio à parte. Todo mundo que está fazendo música está fazendo isso com uma ideia de viver disso. Os caras tiram o dinheiro que conseguem para gravar bem, agenciar show e tal. Eu sei que realmente tem muita dificuldade. Talvez até por essa dificuldade eu tenha desistido, mas vi tanta concorrência, e ao mesmo tempo uma coisa tão canibal, da galera se engolindo. Me senti pequeno. Adoro o que faço e, artisticamente, me realizo fazendo isso. Para mim, não tem dificuldade, porque faço o que gosto, coloco na internet e é isso. No momento que você está fazendo sem pensar em retorno, você não coloca muita expectativa e faz o que realmente tem na cabeça. E tem outra coisa, o som daquela época, final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, eles faziam do jeito que dava. E é assim que eu faço. Às vezes ouço e vejo que o som da bateria está medonho, mas é o que dá para fazer.
– Rafael Donadio (Facebook: rafael.p.donadio) é jornalista do Diário do Norte do Paraná