entrevista por Bruno Capelas
“Mais do que criar fronteiras, estamos num período histórico em que é preciso criar pontes”. Dita por qualquer pessoa, é preciso reconhecer, essa frase pode soar um pouco clichê. Quando sai da boca de Ramiro Levy, vocalista e guitarrista da Selton, no entanto, ela é um lema de vida. Não é à toa: formada por quatro gaúchos, a banda se juntou em Barcelona, tocando Beatles em meio a obras de Gaudí, imigrou para a Itália e de lá, toca uma carreira dividida ao meio pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo, tanto em forma quanto em conteúdo. O mais recente passo nessa jornada é o disco “Manifesto Tropicale”, lançado na Itália em setembro (ouça no Spotify).
Nos discos anteriores, a Selton falava sobre a saudade de casa (“Saudade”, de 2013) e sobre a necessidade de se fazer de qualquer lugar um paraíso (“Loreto Paradiso”, de 2016). Agora, a palavra de ordem é misturar, curtindo a dor e a delícia de se ser um imigrante, tudo ao mesmo tempo. Não à toa, a banda se inspira em Oswald de Andrade, dedica o disco à “Macunaíma e a Semana de 22, o Masp e Bo Bardi, Caetano Gil e Duprat” e comete uma canção chamada “Tupi or Not Tupi” – na qual se pergunta se quer “ser índio ou ser indie” ao mesmo tempo em que pisca o olho para a estrela pop Rihanna (“bitch, better have my money!”).
Apesar das referências e da sonoridade “tipo exportação”, “Manifesto Tropicale” é o disco mais italiano da banda desde a estreia – das 10 músicas, apenas uma é cantada inteiramente em português. “Foi algo mais natural para a gente escrever em italiano dessa vez. Além disso, quisemos ter apenas um disco, em vez de fazer duas versões. Manifesto não pode ter tradução”, conta Ramiro ao Scream & Yell, em uma conversa feita pelo chat de vídeo do WhatsApp em uma manhã de novembro.
No fim das contas, é o reflexo de uma banda cuja carreira italiana começa a se deslocar do indie para o mainstream, com direito a um contrato com a Universal. “Aquele mito da gravadora que coloca a banda independente na geladeira não está acontecendo com a gente”, diz o vocalista. A parceria com a gravadora ajudou a banda a gravar o disco em Londres com o produtor Tommaso Colliva (Muse, Twilight Singers, Franz Ferdinand), em um estúdio no meio de um mercado de peixe, e a rodar as rádios. “Cuoricinici” – um jogo de palavras entre “coraçãozinho” (cuoricini) e “cínico” (cinici) – e “Luna In Riviera” já ganharam alta rotatividade nas ondas sonoras italianas. No entanto, os Seltons ainda mantém atividades paralelas à banda – até por opção. “Quando a banda é o teu ganha-pão, você é obrigado a fazer qualquer coisa. Se não é, você pode ser mais seletivo, e paradoxalmente, tem mais liberdade”, explica Ramiro.
Na entrevista a seguir, o vocalista da Selton fala mais sobre “Manifesto” e suas inspirações (de Caetano Veloso a Dirty Projectors), sobre o momento da Selton na Itália e claro, sobre como recebem as notícias do Brasil. “É inacreditável pensar que em 2017 exista um cara como o Temer e que ele esteja fazendo o que está fazendo na cara de todo mundo.” O momento ruim do País, porém, não faz com que a banda queira virar as costas ao Brasil. “A gente precisa dar um jeito de conseguir fazer uma turnê no Brasil ano que vem!” Com vocês, entre o índio e o indie, Selton!
O que é o “Manifesto Tropicale”? Por que esse nome e o que vocês querem dizer com ele?
A inspiração para o título vem do “Manifesto Antropofágico”, do Oswald de Andrade. Foi uma referência que veio muito na nossa cabeça durante o processo de criação do disco. Na verdade, já faz algum tempo que a gente busca sintetizar nossas influências em algo que nos representa esteticamente. É também uma busca por autoconhecimento, de quem nós somos, e quanto mais nós buscamos, mais percebemos que essa questão da antropofagia cultural está muito presente na nossa história, como banda. Achamos interessante o que o Oswald fala, da cultura brasileira ter essa natureza de absorver as coisas que vem de fora, digerir e misturar, se apropriando das coisas. Todos nós na banda somos de famílias imigrantes: meu pai é egípcio, com origens gregas e italianas. O [baterista Daniel] Plentz tem parentes alemães e portugueses. Já o [guitarrista] Ricardo [Fischmann] e o Dudu [o baixista Eduardo Stein Dechtiar] têm origem da Polônia, do Leste da Europa. A gente faz parte desse caldeirão que é o Brasil, e hoje estamos em Milão, vendo uma Europa cada vez mais tropical. Em nenhum momento, a Europa teve tanta influência de culturas de fora como hoje. Em Loreto, o bairro que a gente mora aqui em Milão, você encontra mais restaurantes chineses, africanos ou equatorianos do que uma cantina para comer macarrão. (risos) A escolha do título do disco resume isso: para falar da nossa natureza de fagocitar coisas, mas também do que acontece ao nosso redor.
O último disco de vocês chamava “Loreto Paradiso”, uma homenagem ao bairro que vocês moram em Milão. Acho que tem uma piada aí que não tá bem explicada: Loreto não é um paraíso, então?
É verdade. Loreto é um bairro muito caótico, bastante metropolitano, e cheio de imigrantes. Nosso prédio é cheio de americanos, espanhóis, franceses, gente de tudo que é lado. É algo que está muito longe do que tu espera ser um paraíso. O disco anterior chamava “Loreto Paradiso” pela ideia de tentar transformar o lugar que a gente está no lugar ideal, mesmo que ele esteja longe disso.
O “Manifesto Tropicale” é o disco de vocês com menos músicas em português desde o “Selton”, de 2010. Ao contrário dos últimos discos, que tinham uma versão brasileira e uma italiana, o “Manifesto” tem só a versão “italiana”. Por que isso?
Optamos dessa vez por fazer um disco único. Dá muito trampo fazer duas versões, e é difícil digerir dois discos. Outro problema é que isso confunde muito os serviços de streaming. Além disso, decidimos focar em um disco só porque ele é um manifesto. Manifesto não pode ter versão ou tradução. Quando estávamos gravando, pensamos que ficou faltando música em português, mas hoje foi muito mais natural escrever mais em italiano. Começamos a entender isso no momento em que percebemos o contraste: o disco tem uma sonoridade mais brasileira, mas é o que tem mais letras em italiano. Considerando a ideia do “Manifesto”, de fagocitar culturas, isso fez muito mais sentido para a mensagem do que a gente quer passar do que ter versões traduzidas. Achamos que alguma coisa ia se perder no caminho.
Apesar do disco propor um manifesto tropical, ele é bastante introspectivo – talvez o mais introspectivo da carreira da banda. Faz sentido?
Acho que é algo vem do nosso processo. No “Loreto Paradiso”, as melodias podiam ser para “cima”, mas ele era um disco com letra mais profundas e introspectivas. O “Manifesto Tropicale” segue essa toada, com a busca pelas raízes, quem nós somos e o que acontece ao nosso redor. É bem natural, eu acho.
Como é o processo de composição de vocês? A letra vem em português, italiano, inglês, vem primeiro a música? Como é?
Os quatro membros da banda escrevem, e os quatro escrevem em qualquer língua. O que costuma acontecer é que normalmente alguém chega com suas ideias, mais ou menos prontas, e depois todo mundo começa a colocar a mão. Às vezes, a música chega pronta e a gente só tem de arranjar, às vezes é um trabalho mais colaborativo. Mas todo mundo traz ideias.
O “Loreto” saiu no início de 2016. Quando vocês gravaram o “Manifesto”?
O “Manifesto” saiu em 1º de setembro. Gravamos entre o fim de maio e o início de junho. Foi algo bem legal: nos últimos discos, a gravação foi dividida entre Milão e Londres, que é onde mora o nosso produtor, o Tommaso Colliva. Dessa vez, a gente conseguiu gravar tudo lá com ele, no estúdio dele, o Fish Factory. É um estúdio que fica dentro de um mercado de peixe, todo construído em madeira, feito à mão pelo Tommaso. Ele é um italiano que foi pra Londres há 30 anos e construiu tudo à mão. Passar duas semanas com ele lá foi um processo bem diferente.
Queria perguntar sobre como surgiram algumas músicas. A primeira delas é “Cuoricinici”. Eu não falo italiano, mas ouvi o “vaffanculo”, fiquei bem surpreso…
É, então (risos). Essa música fui eu quem escrevi, e ela nasceu praticamente pronta. Ela fala (risos)… como eu vou explicar? Ela é sobre uma garota com quem eu havia… eu tinha conhecido biblicamente. A gente ficou uma vez, e no dia seguinte eu ia viajar de férias. Escrevi pra ela, ela me desejou boa viagem e eu fui embora. Não escrevi para ela nas férias, fui para Portugal, e aí só quando eu voltei é que eu mandei um alô. Ela respondeu furiosa, “não sei quem tu acha que eu sou pra me deixar sem responder…”. Para piorar, essa moça estava vindo de uma história gigante, oito anos de namoro, e eu era primeiro cara que ela saiu depois dessa história. Eu só pedi pra ela pegar leve. O “vaffanculo” vem daí, é quase como que ela não tava apaixonada por mim, ela só queria alguém para preencher um espaço. “Tu me busca só pra sentir segura / de forma breve… vaffanculo!”. É engraçado que hoje tem uma galera que se identificou muito com essa história, é algo bem recorrente.
Outra música que me chamou a atenção foi “Jael”.
“Jael” é do Plentz. Ele fez ela quando a vó dele morreu. A música nasceu assim, é também um diamante bruto. Depois, eu ajudei a dar um pouco de forma, mas era uma daquelas músicas tão íntimas que ele não queria nem colocar para a banda. Mas quando ele me mostrou, falei pra ele que tinha algo importante ali. Ela tem algo que vai direto na barriga.
E “Tupi or Not Tupi”?
É a maior referência do “Manifesto Antropofágico”, né? É uma citação direta do “Manifesto”, mas tentamos trazê-la para a nossa realidade, de ser brasileiro, falar italiano, ser indie ou ser índio, toda essa colagem de coisas. E ainda tem a Rihanna (“bitch better have my money!”) ali no meio. “Há dez anos se fudendo, e ainda tem que ser indie ou ser índio?”
O que vocês ouviram para fazer o “Manifesto Tropicale” – e já vou pedir para pular as referências óbvias, que são o Devendra Banhart e o Caetano Veloso…
(risos) Tu falou bem, Caetano Veloso é a massa dessa pizza, principalmente nesse disco, ele foi uma referência constante. Eu queria pular ele, mas eu sempre volto…
Ele está até nos agradecimentos…
Sim! Nos anos 1960, o Caetano foi o primeiro a levantar o discurso da antropofagia cultural depois dos modernistas. Naquela época, ele já falava em pós-globalização, e que rock e bossa nova convivem sim, e que o Brasil é esse caldeirão mesmo. Ele foi uma grande referência. Fora isso, o que a gente tem escutado? (pensa um pouco) A gente quase enlouqueceu com o disco do Dirty Projectors, que a gente estava esperando há alguns anos.
É um disco complicado, tem toda a separação da banda no meio, né? [A separação, no caso, é do vocalista David Longstreth com a também vocalista Amber Coffman. Antes do disco novo, auto-intitulado, Amber deixou a banda].
É inacreditável. Aquele cara é um gênio do mal, maldito, e ele tem uma noção de estética, de arranjos e harmonização de vozes, de mixagem, cortar e copiar, é algo muito inspirador.
Gostei do disco, mas eu senti falta da voz da menina [Amber]. Comecei a ouvir o Dirty Projectors por culpa de “The Socialites”, que ela faz um puta solo.
Sim, sim, vou dizer que não sentir tanto a falta dela, sinceramente. Sempre achei que o cara era um gênio do mal, mas o Dirty Projectors foi uma baita referência. Também escutamos muita coisa de música italiana, algumas coisas dos anos 1960, como o Lucio Dalla, e tem algumas coisas atuais muito bacanas aqui, Motta, Calcuta. Do Brasil, tem o Tim Bernardes… que grande disco, puta merda.
Eu levei esse disco pra terapia…
Acredito! (risos). Ele veio depois que o “Manifesto” tinha saído, mas eu estou escutando muito ele. Tenho descoberto muita coisa nova, Whitney, que a gente viu no Primavera Sound, foi um grande show. Mac DeMarco é incrível, tenho escutado muito hip hop, também. Anderson Paak, Kendrick Lamar, tem rolado muita coisa boa no hip hop ultimamente. Vamos absorvendo meio que um pouco de tudo. Solange fez um discaço. E Noname, é uma rapper americana, inacreditável, fez um disco muito foda.
O “Manifesto” está saindo na Itália pela Universal. Como é, em pleno 2017, estar assinado com uma gravadora?
Nos últimos anos, houve essa onda universal das bandas se tornarem mais independentes. As gravadoras todas pareciam monstros, de alguma maneira. Acho que foi um processo saudável: as bandas começaram a se responsabilizar mais pelo conteúdo que criam, pela promoção que fazem e pela forma como conversam com o público. Na Itália, isso aconteceu também, mas recentemente começou a rolar um crossover entre o indie e o mainstream. Vários projetos independentes começaram a dar passos grandes em direção ao mainstream, rolando um intercâmbio entre os dois setores, que sempre foram separados. Antes, você assinava com gravadora e ficava gigante, ou vivia no mundo independente. Agora, existe esse intercâmbio: a Universal nos viu tocando num festival em Milão, piraram com o show e fizeram uma proposta. Ficamos com o pé atrás, fizemos um monte de exigências, negociamos bem para ter um puta dum contrato. Nesse momento estamos muito contentes: aquele mito da gravadora que não está nem aí pra banda independente, coloca na geladeira, isso não está acontecendo pra gente. A maior mudança é que agora tem mais gente dando sangue pela banda, além de maior capilaridade nos serviços de streaming e no rádio, que ajudam bastante.
Apesar da proximidade afetiva que o Brasil tem com a Itália, é difícil mensurar daqui o tamanho da banda aí na Europa. Já dá para dizer que o Selton é uma banda grande?
Antes, a gente era uma banda média-pequena, agora a gente já está virando uma banda de médio porte, com possibilidade de crescer mais. Com o “Loreto Paradiso”, a banda teve um crescimento bem importante com “Voglia di Infinito”, uma música que não está na versão brasileira do disco. Aqui na Itália, ela foi o single, e mais que isso, foi a chave para as pessoas entenderem o nosso mundo. Foi a primeira música que começou a rolar direto na rádio. A partir dela, os shows começaram a ter mais gente, as pessoas cantavam mais as músicas, conseguimos ver mesmo o poder da rádio. Com o “Manifesto”, já emplacamos duas nas rádios, “Cuoricinici” e “Luna Riviera”. Estamos curiosos para ver como vai ser essa turnê de fim de ano, que vamos fazer para lançar o disco.
Como é o mercado de shows na Itália? Tem demanda nas cidades pequenas?
Tem bastante, isso é algo bem positivo. Aqui as turnês são divididas por estações. No inverno se toca em lugares menores, nos clubes, e no verão se toca muito em festivais ao ar livre. Tem bastante demanda ao longo do ano, e em vários lugares.
E como vocês se apresentam? A Selton, aí, é uma banda brasileira ou italiana?
Nós somos uma banda brasileira. Isso aqui tem força, o fato de não ser daqui nos dá muita propriedade. Estamos cada vez mais apontando para a mistura, brasileiros que começaram em Barcelona e agora moram na Itália. Esse mix é uma das nossas grandes forças.
Como é o “modelo de negócios” da Selton hoje? Isso é: como a banda se sustenta?
Com os anos, cada um desenvolveu outras atividades, e tudo a gente concilia com a banda. Por sorte, a gente depende cada vez menos dessas outras coisas, mas são trabalhos que a gente curte fazer. Eu dou aulas de canto, guitarra, violão, ukulele… além disso, comecei a tocar com um rapper também. O nome dele é Ghemon, ele é um cara bem grande aqui, a gente fez algumas músicas juntos pro último disco dele, também já fiz turnê com o cara enquanto a Selton estava em pausa. O Plentz trabalhou nos últimos anos num site de crowdfunding italiano, e agora ele está trabalhando com o Nic Cester. Lembra do Jet? O Nic Cester é o vocalista do Jet! Ele agora mora na Itália e gravou um disco solo. Mais do que tocar com o Nick, ele também faz a ponte entre o gerenciamento australiano e italiano. O Dudu é gráfico, né, então ele trabalha num estúdio gráfico, e o Ricardo trabalha numa agência de booking, vende show de outras bandas.
E o Porno per Bambini [projeto que une imagens eróticas a traços de criança] é do Dudu?
É. É um negócio genial, e na real o Porno per Bambini vende horrores, vários quadros, está melhor que todo mundo. É muito bom (risos).
É importante falar de dinheiro: ainda existe a ilusão de que o artista que faz muitos shows fecha as contas, e nem sempre é assim…
Nem sempre, né? Na nossa história, sempre ganhamos mais com shows e com as vendas nos shows. Conseguimos vender bastante merchandising nos shows. Aqui, uma boa fonte de receita que a gente tem é de direitos autorais: a cada seis meses chega uma grana relativa tanto aos shows quanto às execuções em rádio. Já o lado digital, seja streaming ou venda de música, até hoje nunca nos deu muita grana. Quem sabe isso muda com a Universal. Teve um período que a gente apostava tudo na banda e dedicava todos nossos recursos para ela. E aí a gente se deu conta de que isso não era nem um pouco saudável. Se a banda não dá grana, mas tu joga todas as tuas fichas num lance que não dá certo, a pressão aumenta muito. Quando a gente começou a investir tempo em outras ideias, ajudou muito. Paradoxalmente, ter outros projetos nos permitiu investir mais na banda. Quando a banda vira o teu ganha-pão, tu é obrigado a fazer qualquer coisa. Quando aquilo não é mais o ganha-pão, tu pode ser mais seletivo, porque tu não tá dependendo extremamente daquela grana. É uma visão interessante. Além disso, cada um ter seus projetos ajuda a arejar muito as nossas ideias. Idealmente, o ideal é que role um overlap depois e todo mundo possa largar os outros trabalhos. Devagarinho, isso começa a acontecer, porque a banda está começando a crescer.
Como é ser uma banda imigrante no momento conservador e fascista que a gente vive hoje? Tem preconceito com vocês na Itália?
Tem. A gente fala bastante disso nas entrevistas, por mais que a gente não sinta tanto. Imigramos por opção, para viajar, descobrir o mundo, e conseguimos que a música nos abrisse porta. Não sentimos tanto preconceito ou dificuldades, o que é bem diferente de quem imigra por necessidade. No Sul da Itália, desembarcam muitos barcos ilegais com africanos, e é algo muito polêmico. Tem gente que é completamente contra a imigração, quer mais é que os caras morram nos barcos. É fundamental falar disso. A história da humanidade foi assim: meu pai fugiu do Egito por questões de necessidade, e se não fosse o Brasil um país que estava acolhendo pessoas que vinham de fora, não sei se eu existiria hoje. As pessoas tem uma memória histórica muito curta: hoje, o africano é que vai para a Itália, mas os italianos não acreditam que no Brasil tem lugares como Nova Bréscia ou Nova Trento, só com colônias de italianos que fugiram da fome e da guerra. Mais do que criar fronteiras, estamos num período histórico em que é preciso criar pontes.
Como vocês olham para a carreira de vocês hoje no Brasil?
Temos muita vontade de dar continuidade para a história que a gente teve no Brasil, o feedback foi muito positivo. O “Saudade” e o “Loreto” tiveram um feedback incrível, porra… houve uma certa dificuldade econômica, até pela questão política do Brasil. A partir de certo momento, ficou complicado investir grana nos shows. Com a gente morando aqui, é difícil que isso seja sustentável. Para fazer qualquer coisa, a gente já parte de quatro passagens intercontinentais, o que é caro. E ao mesmo tempo, aqui as coisas começaram a bombar muito. A prioridade é a Itália, está rolando muita coisa ao redor da banda, mas queremos fazer uma turnê no Brasil ano que vem sim.
E como vocês veem o momento do Brasil hoje, à distância?
É sempre mais difícil ter uma ideia muito clara quando tu não tá vivendo tudo por perto, mas a gente tenta. A sensação que dá é que desastroso o que está acontecendo. É inacreditável pensar que em 2017 exista um cara como Temer e que ele esteja fazendo o que está fazendo na cara de todo mundo. É muito frustrante. Pessoalmente, tenho uma relação desiludida com a política. Tento lutar contra isso, porque meu primeiro instinto é sempre dizer “Puta merda, não muda nunca porra nenhuma, é tudo a mesma coisa!”. Mas não adianta, a gente tem que começar a mudar as coisas, e o primeiro passo é a informação.
Sei que vocês estão começando uma turnê, mas quais são os planos para 2018?
Agora, os primeiros planos são a turnê mesmo. A gente faz shows em novembro e dezembro, pausa, retoma em março e abril, pausa de novo, e aí retoma no verão aqui na Itália. Além do Brasil, a gente queria muito tentar fazer shows na Europa, colocar os pés em Portugal e na Espanha. Acabamos de jogar os dados e precisamos ver o que vai acontecer.
Nesse momento, se você fosse para uma ilha deserta, quais são os cinco discos que você levaria na mala?
“Carrie and Lowell”, do Sufjan Stevens, com certeza. Eu poderia levar só esse e já estaria feliz. (risos). “Revolver”, dos Beatles. Hmm…. essa pergunta é difícil, hein? Está passando toda a minha discoteca na frente dos meus olhos. Acho que eu levaria também o “Meddle”, do Pink Floyd. O primeiro do King Crimson, “In the Court of Crimson King”, que tem “21st Schizoid Man”, e “Qualquer Coisa”, do Caetano.
“Qualquer Coisa” é o meu disco de testar vitrola. Eu ia perguntar se esse que está atrás de você [faz referência a um pôster de “Modern Vampires of the City”, do Vampire Weekend, na sala da Casa Selton] não vai na mala…
Pô, verdade! É, tendo que escolher só cinco fica difícil.
Essa lista de cinco é difícil. Eu estava brincando com uma amiga essa semana que o segredo não é fazer sua lista de cinco, mas sim encontrar alguém que você quer levar junto para a ilha deserta que tem uma lista tão boa quanto a sua.
Exatamente! (risos) Aliás, aproveitando [pega um disco em cima da mesa e mostra]… uma banda nova, não sei se tu conhece eles, Lemon Twigs. São dois piás, o batera tem 19 anos, e o primeiro disco é completamente inacreditável. Os dois tocam, cantam e fazem bateria. É bem bom.
Pra fechar: qual é a pergunta que eu devia ter feito e eu não fiz?
Pô, não sei! Só sei que a gente precisa dar um jeito de conseguir fazer uma turnê no Brasil ano que vem!
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e trabalha no caderno Link, de O Estado de São Paulo