entrevista por Bruno Lisboa
Luísa Gontijo é conhecida entre os produtores culturais e artistas de Belo Horizonte devido ao seu trabalho desenvolvido na cena independente. Após anos de dedicação nos bastidores da cena, Luísa, agora LULI, resolveu estar a frente dos holofotes e se lançar artisticamente em formato solo. Seu EP de estreia, “Deserto”, é composto por quatro faixas, todas de autoria da cantautora, onde ela investe na linguagem dream pop com letras melancólicas em ode ao cotidiano. Para a produção deste disco, Luísa contou com o apoio de Nobat e Leonardo Marques (Transmissor).
Na entrevista abaixo, LULI fala como se deu a transição dos bastidores para a carreira como cantora (“Comecei a sentir muito orgulho das músicas que vinha criando e a vontade de apresentá-las foi crescendo a cada dia”), o processo de criação e gravação de “Deserto”, fornece dicas para quem está começando (“Você confia no seu trabalho? Se sim, corra atrás, faça com quem as pessoas cheguem até você, que ouçam seu som e que fiquem por perto”), fala sobre feminismo na cena musical brasileira, os desafios de ser um artista independente e mais. Com vocês, LULI!
Após anos de dedicação e trabalho nos bastidores esta é a sua primeira incursão como cantora? Como se deu o processo de transição?
Na realidade, o trabalho com produção cultural foi circunstancial. Cresci num ambiente cercado por música, meus pais tocam violão e possuem uma coleção imensa de vinil. Ambos me aplicaram essa paixão: meu pai com seu hábito de ouvir música 24h por dia (ele dorme com o rádio ligado) e minha mãe me dando meu primeiro violão aos oito anos. Ainda na escola, abordei várias amigas pra tentar formar uma banda, coisa que nunca aconteceu. Aos 13, em 2003, conheci o Los Hermanos e o seu “Ventura” e enlouqueci. Pela primeira vez me identifiquei com uma banda como se aquelas músicas tivessem sido feitas pra mim. Naquele período rascunhei as primeiras composições, ainda que bestas. No ensino médio conheci o Nobat, meu marido, um compositor extremamente talentoso e fértil que me inspirou muito a voltar a compor. Eu era (e sou ainda) muito tímida e pra estar próxima da música sem que precisasse colocar a minha cara à mostra criei um blog chamado Retalho Cult que, além de entrevistar artistas como Milton Nascimento, Mallu Magalhães, Wado e muitos outros, resenhava shows que passavam por Belo Horizonte, minha cidade. Com o tempo a grana começou a apertar e partimos, eu e meus parceiros do Retalho, pra produção de shows e festivais. Certa época comecei a sentir muito orgulho das músicas que vinha criando e a vontade de apresentá-las foi crescendo a cada dia. Explicitei meu desejo ao Nobat, que já tinha gravado três discos, e ele me auxiliou em todo o processo, do início ao fim, acompanhando tudo de perto. Ficamos um tempo procurando alguém que pudesse dividir com ele a produção deste trabalho, colaborando em sua consistência. Havia o desejo em um terceiro pilar pra levantar a obra. Nos deparamos com o trabalho do Leonardo Marques, produtor e músico mineiro que tem uma história imensa na música e vinha produzindo excelentes discos. Foi quando decidimos: é hora de gravar “Deserto”.
E como foi o processo de gravação?
Não poderia ter sido melhor. O Nobat já estava, desde o lançamento d’”O Novato”, em 2015, com um disco pronto na cabeça. Foi extremamente gentil em mergulhar no processo de pré-produção e concepção do “Deserto”, jogando pra frente a gravação do seu próprio álbum, “Estação Cidade Baixa”, que está sendo gravado neste momento também em parceria com o Leonardo Marques. E não só por isso, a dedicação com o trabalho foi de encher os olhos. Ele me antecipou muitas questões, me orientou em todos os passos, sentou comigo várias tardes pra construir os arranjos da base que levamos à Ilha do Corvo, estúdio do Leo. E lá fomos recebidos de braços abertos por uma figura que nos surpreendeu bastante. Conhecíamos o trabalho do Leo, mas pouco a pessoa. Fiquei admirada com o quanto Leo me deixou à vontade e segura num momento tão frágil que é gravar um disco e se desnudar aos olhos do mundo. Os dois criaram rapidamente uma afinidade e trabalharam juntos nas camadas das faixas. Além disso, a Ilha do Corvo é um oasis pra qualquer músico: instrumentos vintages espalhados por todo uma atmosfera acolhedora. Foi uma experiência incrível que anseio repetir.
Em “Deserto” você une dream pop com letras melancólicas em ode ao cotidiano. Como foi o processo de composição do EP?
Sinto em “Deserto” uma unidade estética que não foi intencional no momento da composição. “Madrugada”, terceira faixa do EP, é a música mais antiga das quatro, compus há muitos anos, enquanto as outras três são de dois anos pra cá. Por não ter uma pretensão consciente à época, não compus pensando em um disco, eram músicas soltas, inspiradas em momentos vividos. “Deserto” e “Nunca Mais” eram canções que eu depositava muita fé, que me orgulhavam bastante, e elas acabaram ditando o universo do registro. Já penso em um próximo trabalho e pra este pretendo me lançar a uma atmosfera num momento primário.
Então o nome artístico LULI pode ser compreendido como um alter-ego ou é uma extensão de sua personalidade?
LULI certamente é uma extensão da minha personalidade, o auge da minha sensibilidade. Sou sensível, qualquer coisa me provoca, me esquenta, me esfria, me constrange. Tenho os poros muito abertos, uma intuição muito grande, e isso ora me fortalece, ora me machuca. LULI expandiu meus horizontes e me entrega papéis em branco toda manhã pra eu rabiscar o que quiser.
O lirismo de suas letras acaba por estabelecer um diálogo aparente com a literatura. Procede?
Das artes, a literatura talvez seja a que menos tive contato direto. Tenho meus livros preferidos e, claro, eles me tocaram muito e mudaram minha relação com a língua. Porém, absorvo também o lirismo da própria música de figuras como Adriana Calcanhoto e Caetano Veloso, artistas que usam o português (e o inglês, no caso do Caetano) como ninguém. Os autores que tenho lido bastante são Jorge Amado e Fernando Pessoa. Tenho o grande desejo de me aprofundar na escrita feminina, nesse olhar mais próximo da minha realidade.
Devido a sua experiência como produtora cultural, quais as dicas você daria para quem está começando?
Acredito que publicar uma obra é um gesto sem volta. Posto no mundo aquilo não é mais só seu e você não tem controle de onde aquilo pode chegar. Por causa disso, preferi pensar bastante o que eu realmente queria com música antes de me ingressar na aventura. Deixei pra gravar quando senti que aquilo me representava e me dava orgulho. Acho que esse é o primeiro passo. Prefiro sentir que é a hora de fazer alguma coisa pra não se arrepender depois. Se não for pra dar o meu melhor, prefiro não fazer. Mas, claro, isso é pessoal. Entendo e admiro a magia acerca do “do it yourself”, de fazer acima de qualquer coisa, ainda que mal feito. Mas falo de confiança. Você confia no seu trabalho? Se sim, corra atrás, faça com quem as pessoas cheguem até você, que ouçam seu som e que fiquem por perto. Produzir conteúdo (videoclipes, fotos, singles), trabalhar bem as redes sociais, fazer novos amigos e tocar bastante por aí é uma receita que costuma trazer bons frutos.
Ano passado rolou uma iniciativa de mapear a cena musical feminina brasileira. Até o presente momento são mais 300 bandas cadastradas, mas ainda sim um número pequeno recebe a devida exposição. Na sua opinião, o que falta para fazer com que essa lacuna seja preenchida?
Infelizmente, o machismo e a misoginia estão muito enraizadas na nossa cultura. Isso exige posturas constantes e olhos sempre abertos da nossa parte. Nos unir tem sido um caminho viável na busca da expansão do nosso território. De maneira geral, tenho visto mulheres contratando apenas mulheres para serviços os mais diversos e isso é genial! Se não nos dão espaços que nós nos demos. Choramingar no quarto nunca levará ninguém a lugar algum. Na música é um orgulho assistir a ascensão de poderosas como a Karol Conka, a Salma (Carne Doce), a Tulipa Ruiz e tantas outras. Confesso que minha torcida é ainda maior quando é mulher porque sou e sei o que é ser, sei quantas portas seguem fechadas pra nós, sei que a média exigida a troco de qualquer respeito é muito maior.
De uns tempos para cá a música independente tem conquistado espaço maior por diversos fatores. Você e Nobat tem estabelecido uma relação de diálogo não só com artistas locais, mas também firmado parcerias para além das Minas Gerais. O caminho para que a cena cresça é este?
Os desafios movem a humanidade. Tocar na sua cidade é fundamental, mas é pouco. Há sempre pessoas que se interessariam pelo seu trabalho, seja ele qual for, e elas estão espalhadas pelo mundo. E poucas coisas são mais ricas que a troca humana, principalmente para os compositores, que vivem de histórias e inspirações. Sair da sua cidade, do seu estado e do seu país pra apresentar uma coisa tão íntima que é sua música expande todas as suas possibilidades. Vivi isso de muito perto com o Nobat. Sou sempre a primeira pessoa a ouvir uma composição nova e assistir àquela música tocada no quarto ainda de pijama atravessar o oceano e desembarcar em Portugal, por exemplo, foi de um orgulho sem precedentes. Foi emocionante mesmo. Não digo que é este o caminho, acho que ele é composto por uma série de fatores, mas como disse Milton Nascimento: “Para cantar, nada era longe”.]
– Bruno Lisboa (@brunorplisboa) é redator/colunista do Pigner e do O Poder do Resumão. As fotos de LULI são de Rafael Sandim / Divulgação