por Leonardo Vinhas
“Viciado em chorume”, “frangote de classe média”, “picareta de internet”, “ombudsman do mundo”: as auto-definições que o cartunista Ricardo Coimbra apresenta em uma conversa de pouco mais de uma hora grudam na cabeça com força, em especial porque o homem enuncia cada uma dela com autodepreciativa convicção. Para aliviar, em seu site “Vida e Obra de Mim Mesmo”, ele se apresenta como o “Obina do Amor”. OK, pensando bem, isso não alivia nada…
Mineiro de Recreio, mas radicado em São Paulo, Coimbra começou a publicar suas tiras online em 2009 e segue com elas até hoje, sem periodicidade fixa. Não há qualquer indulgência em seu trabalho, muito pelo contrário: seu humor não toma lados. Religiosos, ateus, militantes e gente que ainda divide o mundo em esquerda e direita, jovens empreendedores, velhos empresários, pró-ativos, jogadores de futebol e muitos outros: todo mundo tem seu momento sob a ótica do autor, que é uma lupa muito eficaz ao evidenciar incoerências, miudezas e momentos ridículos dessas figuras. E, evidentemente, sobra muita virulência para ele próprio – não à toa, o seu blog foi batizado de “Vida e Obra de Mim Mesmo”.
A produção online de Coimbra entre 2009 e 2014 foi compilada em um livro, “Vida de Prástico”, que inclui também trabalhos publicados na revista independente Xula (que publica também os quadrinhos de Bruno Maron, Bruno Di Chico e Calote). Recentemente, também foi responsável pelo sétimo volume da coleção de livros de bolso UGRITOS, com a história “FIRED”. Lidos na sequencia, são prova inequívoca da indisposição do autor com o universo corporativo, mas funcionam também como um documento, irônico e impiedoso, de nossos tempos superficiais. Por isso, mesmo que ele se arrependa de sua auto-definição como “ombudsman do mundo” imediatamente após criá-la, não dá para não dizer que ele não cumpra tal propósito. Se a sociedade humana veio com defeito de fabricação, ele não está disposto a aceitar tranquilamente o prejuízo.
Mais que isso, impressiona a agudez de seu raciocínio, desacostumado a respostas conciliatórias ou discursos prontos. A conversa com o Scream & Yell, mineiramente cheias de reminiscências e pontuada por sua fala pausada, foi tranquila e agradável. Nem por isso seu conteúdo deixa de ser bastante contundente.
Quando se lê o “Vida de Prástico”, dá para notar a evolução do seu trabalho. No começo, suas tiras eram mais rabugentas e mais autocentradas. Hoje, elas têm outro timing e são mais despersonalizadas. Você também nota essa mudança?
Esse foi o principal problema da montagem do livro. Sou desses caras que vai para entrevistas de emprego dizendo “sou perfeccionista” e tal, mas tenho muita vergonha das coisas mais antigas. Na verdade, tenho vergonha de coisa que desenhei ontem. Na hora que estou fazendo acho maravilhoso, mas na hora que publiquei passo a não gostar. As coisas mais antigas, então, são um problema complicado: tem piadas que eu nunca faria hoje em dia. Quando fui montar o livro, sentei com o Zé Rodolfo e a Ana Muriel (ambos da Editora Gato Preto) e decidimos que a missão da coletânea era justamente essa, a de mostrar o que eu vinha fazendo nos últimos anos, inclusive o que eu considerasse embaraçoso. Não sei se foi realmente uma evolução. Concordo que teve uma mudança, e que ficou menos autocentrada. Só que quando vejo algumas coisas antigas, apesar de uma qualidade lamentável, vejo um pouco mais de espontaneidade, de descompromisso com a própria linguagem. Me explico: quando você começa a fazer alguma coisa do nada, ainda não se comprometeu com nenhum tipo de linguagem, e aí parece que a coisa sai mais solta. Depois de seis, sete anos fazendo o blog, você começa a se localizar dentro do próprio trabalho, e aí começa o que eu chamo de “síndrome de Iron Maiden” (risos), que é virar cover de si mesmo.
Você chega a ter esse tipo de trava quando está criando? De pensar algo como “isso não está “Ricardo Coimbra” o suficiente?
Não sei se chego a pensar desse jeito. Esse talvez seja um dos problemas do meu trabalho (ri): só começo a pensar nas coisas depois que já fiz.. Na hora que estou fazendo, procuro desligar qualquer tipo de filtro e de auto-censura e produzir de uma maneira mais solta. Mesmo assim, depois que você fez uma quantidade de vezes a mesma coisa por vários anos, vem aquela de “talvez você esteja se repetindo” ou “talvez isso não combine com teu trampo”. Não é nem pensar “você não está sendo ‘Ricardo Coimbra’ o suficiente”, como se fosse uma marca. É que procuro ver o espectro dentro do qual trabalho, porque não adianta eu ficar muito fora disso.
Tive contato com seu trabalho em 2013, quando eu estava saindo do mundo corporativo, um de seus alvos mais frequentes nas tiras, e…
Você trabalhou no mundo corporativo?
Por muito tempo. Em editora, agência, multinacional, tudo isso. É um mundo exasperador. Pagou minhas contas, mas é difícil. Enfim, tomei contato com seu trabalho nesse momento, e logo fui atrás do material mais antigo. E encontrei nele muito rancor. Era mais rancor que mordacidade. O que não vejo hoje no seu trabalho atual. Logo, imagino que você começou a fazer a tira por um misto de falta do que fazer, como você já disse, com muita raiva.
Exato. Os elementos de rancor e ressentimentos são muito fortes mesmo. Sou daquele grupo de frangotes de classe média, como meu amigo Bruno Maron costuma falar. Tava falando com ele que o que nos uniu não foi nem os quadrinhos – que a gente gosta muito – mas sim esse ressentimento de frangote de classe média. E esse ressentimento aumentou quando trabalhei no mercado corporativo. Perdi a conta de quantas tirinhas e ideias de gags eu tive enquanto estava rabiscando bloquinho em reunião de trabalho, ou sentado no refeitório da empresa. O ressentimento me movia muito. Tenho que admitir que sou muito rabugento mesmo. Tem gente que me conhece e acha que sou tipo aquele Cláudio Assis (risos), um cara que vem cuspindo na sua cara, com bafo de pinga. Mas não sou assim, cara. Acho que me encaixo mais num registro passivo-agressivo. (nota: Assis é o diretor de filmes como “Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas” e “Big Jato”).
Defina “frangote de classe média”, por favor.
(ri) É assim, cara: tenho 38 anos. Passei por esse período de uma adolescência localizada ali por 92, 93, mais ou menos. Era um moleque de classe média do interior, o clássico moleque apaixonado por rock, só queria saber de Rush, Led Zeppelin, Iron Maiden e tal, e vivia nesse nosso país dominado pela ostensividade sexual da axé music. Sou da geração que não se identificava muito com essa coisa corporal do brasileiro médio. Acho que está um pouco aí a coisa do ressentimento do frango de classe média. Com meus amigos, era uma coisa muito parecida: enquanto o resto dos moleques estava jogando futebol e tentando namorar umas gatinhas, eu estava trancado no quarto lendo revista Mad, ouvindo Rush e coisa e tal.
Bem, esse é o mesmo universo de onde venho. Tenho, inclusive, a mesma idade que você. Mas acho que esse ressentimento não está só nisso. Tem uma coisa meio “Clube da Luta”: à essa geração foram prometidos muitos “El Dorados”. Seja o “El Dorado” do mundo corporativo, o da falácia da “realização através do que se gosta”…
Então: por um lado, eu odeio o mundo corporativo. Mas por outro, não aderi muito a esse lado de “vamos abandonar tudo para ir em busca do sonho” e tal. As pessoas sempre me falam que odeio tudo, critico tudo. Acho que é por aí (ri), nada tá bom mesmo. Esse “El Dorado” de “vou abandonar tudo para viver minha vida e ser meu próprio chefe”, não confio muito nisso não.
Imagino então que todo esse movimento atual que envolveu a Bel Pesce deve ter te dado vontade de fazer muitas tiras, não?
Vou ser sincero: acho que devia ser mais antenado com as coisas que acontecem, sobretudo na internet, levando em conta que publico primordialmente para esse público. Vi um pouco por alto a história dessa menina aí, e tem comunicação com o que eu falo. Quer dizer: quem sou eu para dar receita para alguém ser feliz ou dizer como ela tem que viver para ser feliz? Meu papel como cartunista é no máximo criticar, desconstruir, fazer piada. Eu até admito que pode ter alguém que se encontra nesse modelo de abandonar tudo para ser empreendedor individual. O que me irrita e que tanto no mundo corporativo como nesse mundo da felicidade pelo empreendedorismo individual é que as pessoas criam fantasias em torno dessas opções de vida e elas acabam virando uma espécie de religião. As pessoas começam a criar cacoetes de discursos que vão ficando caricaturais. De certa forma, em todos os assuntos que abordo, toco nessa necessidade que as pessoas têm em encontrar um discurso pronto no mundo, um discurso no qual elas possam adotar em sua integralidade e não precisem pensar mais.
Na sua série “Heróis do Nosso Tempo”, você aborda muito esse tipo de comportamento…
O que me incomoda, e que vejo na maioria das pessoas, é… (pausa) Olha, algum crítico pode dizer, “ah, você está se achando superior às pessoas”, e talvez eu esteja, mas no meu trabalho não me sinto obrigado a deixar de criticar as coisas que acho erradas ou que não curto porque as pessoas vão me achar arrogante. Mas enfim, essa estrutura religiosa de pensamento para todos os assuntos me deixa irritado. Principalmente por vivermos numa sociedade da informação em que as modas circulam de uma maneira muito acelerada, e ao mesmo tempo muito eficaz, as pessoas adotam essa estrutura de rebanho com muita facilidade. Então o cara que vai discutir política com você, ele não está realmente debatendo, e sim repetindo o discurso pronto de outras pessoas. O mesmo vale para o cara que te coloca dentro de uma reunião motivacional no mundo corporativo, a Bel Pesce tá fazendo a mesma coisa, falando o discurso bonitinho que as pessoas querem ouvir. Eu ataco essa artificialidade nas tirinhas. E sempre antecipando aos espertões da internet: talvez o meu próprio discurso seja pronto. Sei lá.
Tudo isso que você disse me leva a duas perguntas: a primeira aproveita um gancho da entrevista que a revista Trip publicou nesse mês com o Marcius Melhem, redator dos programas Zorra e Tá no Ar, da Globo. Ali ele fala que os programas precisam estar “do lado certo da piada”, meio que “temos que bater em todo mundo, mas não bem ‘todo mundo’” (risos). Você não diferencia alvos: tem alvos preferenciais, mas nas suas tiras, todo mundo leva o seu. Existe lado certo da piada?
Esse é especificamente mais um caso em que se repete discurso pronto. O cara que tá falando isso sabe que é um discurso que vai soar bem e que as pessoas vão gostar de ouvir. Na internet, eu identifico o começo dessa conversa fiada num documentário – que eu acho bem ruim – que é “O Riso dos Outros”, um filme que reuniu pessoas que trabalham com humor para perguntar justamente essa história que você está me perguntando. Parece que, de uma maneira politicamente enviesada, chegou-se à conclusão de que o humor tem que atacar o opressor e não o oprimido. Isso para mim é só mais uma maneira política de tentar instrumentalizar o discurso do humor. O humor não é uma linguagem instrumentalitazável. É claro que você pode usar o humor para fazer política, mas essa é apenas uma das facetas possíveis. Até concordo com esse pensamento de que o humor precisa atacar o status quo, mas esse documentário, por exemplo, vem me dizer do que eu posso ou não rir, ele se torna também status quo e portanto passível de ataque. O humor é uma linguagem volátil e não tão facilmente legislável quanto essa galera quer definir. Do mesmo jeito que acho que um oligarca rico, um banqueiro ou alguém da elite é passível de ser ridicularizado, acho também que quem define o que é ou não alvo do humor é passível do mesmo ridículo.
Vira a tal cagação de regras que é justamente contrária à essência do humor. Então temos o humor a serviço de causas, o que pode ser bem perigoso.
Pra mim, a regra de ouro do humor é: nada é sagrado. Tudo que está ficando sacralizado é alvo do humor. Um exemplo prático: enquanto esse discurso que a gente localiza hoje como reacionário, conservador, ele era alvo, e ainda é. A partir do momento que surge um discurso em contraposição a esse e começa a se achar muito sagrado, esse segundo discurso também vira alvo. É um processo dinâmico e impossível de ser parado. Por isso que digo que se você tenta domesticar o humor para uma causa ou outra, uma hora essa bomba vai explodir na sua mão. Tudo que começa a adquirir essa arrogância de discurso inatacável, o humor vai atacar. E tem outro detalhe: quem diz que o humor deve atacar o opressor e não o oprimido não define quem vai te dizer quem é um e quem é outro. Isso não vem explicado. A pessoa que fala isso já definiu essas posições para você a priori. Então a pessoa que tem esse discurso está dizendo: seu humor deve atacar quem eu quero que você ataque. E essa domesticação o humorista não pode aceitar.
O André Forastiei sempre repete nos textos dele que “liberdade de expressão é a liberdade de uma pessoa que você despreza dizer algo absolutamente repugnante”. É por aí?
Exatamente. Dependendo da situação que a gente se encontra no momento, as conquistas do Ocidente começam a ser relativizadas. Por exemplo: quando as pessoas tentam enquadrar um humorista quando ele está dizendo o que a gente não quer ouvir, as pessoas começam a relativizar o valor da liberdade de expressão. Não sei se você já reparou nisso. Agora mais recentemente com essa coisa dos “justiceiros sociais” começou essa história de “não existe direito absoluto”, “a liberdade de expressão não é um direito absoluto”. É assim que vai a coisa. Concordo com o Forastieri, e essa ideia nem é nova. Tem pelo menos 100 anos que se fala que a liberdade de expressão não existe para blindar as pessoas que falam coisas complicadas de ouvir. Ela serve justamente para proteger as pessoas que estão falando coisas incômodas, que causam embaraço. Tenho um problema sério com as pessoas que criaram essa categoria de “discurso de ódio”. Parece ter sido criada com boa intenção, mas na prática funciona como cerceamento de linguagem. Porque tudo que desagrada à pessoa, ela coloca na prateleira do discurso de ódio, entendeu? “A gente não quer censurar, só não queremos que seja veiculado discurso de ódio”. Mas beleza, o que é discurso de ódio? Quem define? É nessa hora que a maionese desanda. Porque qualquer coisa que desagrada a qualquer grupo passa a ser discurso de ódio. Aí vem essa coisa que temos agora dos “trigger warnings” (nota: literalmente, “avisos de gatilho”, que são avisos de que determinado conteúdo pode despertar emoções latentes), tudo que é desagradável para alguém tem que ser precedido por um aviso, um disclaimer. Para o caso específico do humor, isso é um assassinato, pois uma de suas características é usar o elemento surpresa. Um aspecto biológico do riso vem de pegar a pessoa de surpresa. E como vou pegar a pessoa de surpresa se antes eu digo: “olha, pessoal, eu vou fazer uma piada pesada, cuidado que vocês podem se ofender, hein?”. Você já matou a piada aí.
Tenho certeza que, por seu trabalho estar na internet, ele tem resposta imediata, e que essa sempre tem a presença de gente cobrando postura, de haters e coisas do tipo.
A internet é esse terreno livre, pro bem e pro mal. Acho até bom. Não sou desses caras cheio de frescurinhas, “ai meu deus, tudo que se comenta na internet é chorume”, “o que eu leio nos comentários afeta minha sensibilidade”. Tô cagando e andando, cara (o repórter ri). Quero mais é que as pessoas falem, desçam a lenha mesmo, falem o que querem falar! E sim, as pessoas falam coisas horrorosas para mim, cara (risos), tanto nos comentários abertos como por inbox. Vou te dizer: não sei se sou um masoquista ou um adicto, porque sou um viciado em chorume (o repórter gargalha), eu gosto mesmo. Não tenho fanpage: desde que comecei a colocar quadrinhos online posto no meu perfil pessoal, e aceito todo pedido de amizade. Não filtro o feed, então meu feed é um caos, é nego falando loucura o tempo inteiro: feminista radical de um lado, neonazista de outro, empreendedor de um lado… Eu não tô nem aí, cara. É nesse universo caótico que quero transitar. O interessante é que de um lado acham que sou um reacionário de extrema direita, as pessoas de direita acham que eu sou anarquista (ri), as pessoas do centro acham que eu sou maçon (ri mais). É assim que funciona, e por mais bizarro que possa parecer, eu acho divertido.
Outro alvo preferencial das suas tiras é o pessoal que vive a adolescência tardia, os nerds que brigam entre si porque uns preferem filmes da Marvel aos da DC, gastam fortunas com produtos inspirados por “Star Wars”… Você acha que a geração dos “frangotes de classe média” demorou a crescer?
Pois é, isso aí é uma discussão que já vem de muito tempo. Tem uma ligação, sim. Muitas das coisas que estou criticando leva as pessoas a pensarem que me acho superior, mas às vezes o que estou criticando é algo que concerne a mim, tô criticando a mim mesmo, de certa forma. Costumo dizer que venho de um grupo no qual você tinha duas opções: em 1992, ou você virava um “playboy” ou um “nerd”, e esclareço para as pessoas de hoje que em 92 nerd significava outra coisa. Eu tinha elementos de playboy e elementos de nerd, então eu ficava num limbo. Não consegui ser nem um nem outro, mas em mim ficou muito dessa coisa de nerd, de gostar de Rush, de quadrinhos, essa coisa de frangotinho que se acha inteligente e depois vê que não é inteligente porra nenhuma, que em qualquer esquina tem alguém que sabe mais sobre tudo do que você. Mas voltando: isso que a gente chama hoje de geek e nerd é um nicho de mercado, de consumismo. É algo estimulado por grandes empresas, porque o ser que se entende por nerd é um bicho extremamente consumista. Acho que não sou nada original falando nisso. E essa é uma geração que tem vantagens e desvantagens: essa infantilização, essa incapacidade de lidar com alguns aspectos do mundo adulto é negativo. Mas depende do que a gente entende por mundo adulto, né Leo? Porque uma coisa é ser um nerd pré-internet, outra é ser pós-internet. Somos uma geração de transição.
De fato. Eu mesmo só fui ter internet em casa – e discada – lá por 2003.
Pois é. Como sou um humorista muito vagabundo, e como você mesmo disse, muito ressentido, faço piadinha passivo-agressiva. Mas vejo já um desgaste dessa crítica, viu? Todo mundo, quando quer aparecer muito “mauzão”, muito ácido, muito sarcástico, joga essa carta de criticar essa adolescência tardia. O tempo vai dizer para nós se essa crítica fazia sentido ou se era apenas humor de velho igual à gente.
Outra coisa que mudou dessa época da sua adolescência para cá é o mercado de quadrinhos. Se não temos hoje o que seria um cenário capaz de permitir à maioria dos cartunistas e quadrinistas viverem de seu trabalho, por outro lado há mais plataformas de publicação, impressas e online. Como é para você estar nesse cenário?
Vou ser sincero: sou só um picareta de internet com acesso a scanner e banda larga. Só isso. De resto, tudo que você me perguntar sobre a cena de quadrinhos, não vou saber te responder. É óbvio que conheço algumas pessoas no mercado e tal, acho que a internet e as plataformas de financiamento facilitam o trabalho independente e fizeram muita coisa aparecer. Mas não sei se isso é só um frisson de momento ou se vai se concretizar numa cena de nomes que publicam com constância e têm público. Vendo de fora e de uma maneira leiga, acho tudo muito segmentado. Minha experiência pessoal é de participar em feiras. Meu contato com o grande mercado é nulo. Uma única vez publiquei em uma revista grande. Participo em feiras de forma independente, e tenho a impressão que todo mundo que vem comprar comigo é quadrinista, já foi quadrinista ou quer ser quadrinista (risos). Por mais que possa parecer uma coisa mesquinha e materialista da minha parte (ri), mas se a coisa não ganha uma expressão de mercado, não acho que possa ser chamada de cena ou mesmo de “mercado”. E você tem que levar em consideração que no Brasil mercado editorial não é algo em crescimento. Não tenho números, é uma impressão minha, mas me parece que, com as taxas de analfabetismo que temos, com a falta de saneamento básico, falar de mercado editorial parece um debate quase irreal. Agora, acho que tem quadrinista fazendo coisas muito legais, tanto dentro como fora do mainstream. Tem muita variação: artistas brasileiros que trabalham para editoras americanas, outros lançando álbuns de forma independente, tem os quadrinistas que fazem um humor num registro parecido no qual eu me encontro. Mas acho que não configura um mercado. Acho que quando surgir alguém com capacidade para canalizar de forma mercadológica esse impulso criativo gigante de muitas pessoas que estão fazendo isso de forma independente, tenho impressão que essa pessoa vai ganhar dinheiro. E essa pessoa possivelmente não será um quadrinista. E tem uma coisa que acho que é necessário acrescentar: para ter cena, é preciso ter público, ter mercado e ter crítica. Quando as pessoas vão fazer críticas sobre quadrinhos, são sempre apaixonados, pessoas que querem incentivar a criação de uma cena, e com isso passam muito a mão na cabeça dos autores. Uma exceção é o Raio Laser, que é feito pelo Ciro Marcondes, de Brasília. Não concordo com tudo o que ele escreve, mas ele é o único que tem uma crítica real, desce a ripa. Isso é bom, ajuda a cena a ficar madura. Senão, ficamos só com críticas condescendentes. Já vi acontecer com amigos meus e até comigo: o cara escreve algo como “ah, o cara é ruim pra caralho, mas temos que dar força pra cena”… Essa crítica condescendente é a pior coisa! É melhor você destrinchar logo e dar à cena a chance de melhorar. “Ah, porque entendo que o cara teve dificuldades…” Além de isso ser uma conversa fiada do caralho, é algo que não colabora em nada. Você não pode ficar passando a mão na cabeça e aceitando coisas medíocres, aceitando erros que a pessoa poderia melhorar.
É um pouco curioso que você seja um cara que faz muito humor com o comportamento das pessoas na internet, faz humor com assuntos que circulam pela rede, mas ao mesmo tempo não tem uma fan page, usa o Blogger, que é uma plataforma considerada obsoleta… Isso sugere que você tenha um pouco de preguiça com o universo da internet, mesmo estando inserido nele.
Vou ser sincero: eu amo a internet! Sou viciado em chorume, como te falei. Em todo universo que é muito diversificado você encontra coisas insólitas. O que eu talvez não seja é um geek. Não sou muito novidadeiro. Não que seja avesso a novidades, só não sou empolgado com elas. No caso do Blogspot, por exemplo: peguei a primeira plataforma que me mostraram e que era fácil de publicar e coloquei. Tenho preguiça de mudar para o WordPress ou qualquer outra plataforma. Para buscar esses experimentalismos, talvez eu não seja muito adepto. Tenho um pouco de desconfiança com coisas novas, demoro um tempo a entender as coisas. Mas acho que isso tem a ver com a minha idade (ri).
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Rafael Roncato / Divulgação.
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